2.13.2017

Depois da censura, que falta para a ditadura?

Beto Barata
Nas próximas horas, algum defensor da liberdade de imprensa e de expressão, algum zeloso guardião do Estado democrático de Direito, há de recorrer ao STF contra a decisão do juiz Hilmar Castelo Branco Raposo Filho, da 21ª Vara Cível de Brasília que, acolhendo petição de Marcela Temer, proibiu a publicação de notícias, baseadas em processo judicial que já teve o sigilo levantado, sobre a tentativa de extorsão que ela sofreu de um hacker que clonou seu celular. E quando isso acontecer, esperamos todos a oportunidade de ouvir novamente a ministra Cármem Lúcia dizer: “cala a boca já morreu, quem diz é a Constituição”.
Impossível também não ficar imaginando a estridência com que as grandes mídias e suas organizações corporativas estariam protestando se algo parecido tivesse ocorrido nos governos Lula ou Dilma. Teria havido uma sublevação patriótica, algaravia de vozes indignadas contra a violação constitucional indicadora da trama para implantar uma ditadura bolivariana no Brasil. Ao longo deste sábado, entretanto, nem O Globo nem a Folha de S. Paulo, alvos diretos da decisão do juiz, insurgiram-se contra esta iniciativa que não tem outro nome senão censura. Quem protestou com veemência foi a Abraji – Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo -, que em sua nota cobra um posicionamento do Supremo, anulando a liminar. Mas para isso o STF tem que ser provocado. E assim vamos marchando para a ditadura, num governo não eleito, com um Congresso amestrado e amplamente delatado, a escalada crescente de repressão aos protestos e movimentos sociais e a declarada disposição do governo, verbalizada pelo ministro Padilha, de “colocar ordem” em manifestações contra as reformas previdenciária e trabalhista.
O precedente é grave, como destacou em entrevista à CBN o advogado Alexandre Fidalgo, que atua em defesa da liberdade de expressão, porque partiu da mulher do presidente da República. Mas na medida em que ela foi representada na Justiça pelo subchefe da SAJ (Secretaria de Assuntos Jurídicos da Casa Civil da Presidência da República), Gustavo do Vale Rocha, tornou-se um ato de governo, ainda que se alegue que ele atuou como advogado pessoal de Marcela. Esta sim, uma grossa mistura entre o público e o privado. Junte-se o fato de que as informações das reportagens publicadas por O Globo e pela Folha de S. Paulo tiveram origem em documentos oficiais, num processo judicial que não está sob sigilo de Justiça. Não “invadiram” a privacidade de Marcela. Apenas reproduziram informações que não estão sob interdição judicial.
Ninguém publicou (ainda) conteúdos do celular clonado e muito menos o teor da mensagem de áudio de Marcela para seu irmão, que na avaliação do hacker poderia jogar “o nome de vosso marido na lama”. Ninguém investigou (ainda) que tipo de serviços de “baixo nível” prestaria ao presidente um certo marqueteiro referido pelo hacker. A Folha de S. Paulo apurou que se trata de Arlon Viana, assessor de Temre. O que soubemos pelas matérias, baseadas nos autos do processo, foi apenas que ele tentou arrancar R$ 300 mil de Marcela para não divulgar o conteúdo. Ela resistiu e acusou-o de ter feito uma montagem para chantageá-la. Acionou o marido, que recorreu ao então secretário de segurança de São Paulo, Alexandre de Moraes, que mobilizou uma grande equipe de investigadores e em poucos dias prendeu o criminoso, agora preso em Catanduva. Credor, Temer o nomeou ministro da Justiça e agora o indicou para uma vaga no STF.  É estranho que o conteúdo do celular não integre o processo, o que deveria tranquilizar Marcela. Mas ela quer silêncio sobre o caso. Em se tratando de mulher do presidente da República, e havendo no crime referências diretas a ele, Temer, o assunto suplanta a privacidade e torna-se de interesse público. Também por isso, não cabe censura.
O caso é clamoroso, mas não representa a primeira investida do governo ilegítimo contra a liberdade de imprensa e de expressão. Nas Olimpíadas de julho, após gestões do governo ainda interino, o Comitê Olímpico Internacional tentou proibir o “fora Temer” nas arenas. Um juiz garantiu a liberdade de expressão política dos cidadãos, desde que não perturbassem os jogos. Há poucos dias, o Planalto proibiu a circulação de jornalistas no quarto andar, a não ser que acompanhados de um funcionário da Secom. Isso é uma violação ao exercício do jornalismo. Um repórter teria que compartilhar com o fiscal da Secom sua pauta e seus interlocutores, quando a Constituição lhe garante o sigilo da fonte. Na EBC, nem falar. A matéria da Agência Brasil que registrou a abertura de inquérito sobre a “solução Michel” – os diálogos gravados por Sergio Machado com Jucá, Renan e Sarney sobre a necessidade de derrubar Dilma para estancar a Lava Jato – passa ao largo do centro da trama: colocar Michel na cadeira de Dilma e dar curso às ações para impedir o avanço das investigações.
Como dizia Paulo Francis, estamos virando mesmo um “bananão”. Uma imensa republiqueta, onde os segredos da primeira-dama sobrepõem-se a um fundamento constitucional basilar.

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