5.23.2009

Colesterol: Novas pesquisas sugerem que as pílulas mais receitadas não beneficiam a maioria dos pacientes

O publicitário Fernando Lozano, de 48 anos, infartou em 2003 e não está disposto a arriscar


Colesterol: Novas pesquisas sugerem que as pílulas mais receitadas não beneficiam a maioria dos pacientes

O professor Wanderley Marques Bernardo, da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (USP), é um sujeito persistente. Não sossega enquanto não prova por A mais B que as vantagens apregoadas pelo fabricante de determinado remédio são excelente peça de marketing baseada em ciência discutível. Nos últimos seis anos, Bernardo se dedica a avaliar o custo–benefício de tratamentos. Cirurgião torácico, trocou o bisturi pelo laptop. Cruza inúmeros dados para responder às secretarias de Saúde se vale a pena comprar as novidades oferecidas pela indústria. Um de seus alvos preferidos são os remédios para reduzir o colesterol. Ele não está sozinho. As drogas mais usadas para esse fim – chamadas estatinas – têm sido motivo de grandes discussões. Uma das mais importantes aconteceu em abril, durante o congresso do American College of Cardiology, realizado em Chicago, Estados Unidos. Análises feitas por diferentes pesquisadores em todo o mundo sugerem que o benefício dos remédios pode ser bem menor que os consumidores imaginam.

O debate foi iniciado por especialistas da chamada medicina baseada em evidências. A área criada nos anos 80 por David Sackett, da Universidade McMaster, no Canadá, é composta de médicos que tentam avaliar se um tratamento faz diferença a partir da análise fria dos estudos publicados. Não estão preocupados com histórias pessoais de sucesso ou insucesso. A ferramenta deles é a estatística. Bernardo aprendeu o novo ofício na Universidade de Oxford. “É importante que a população seja esclarecida sobre os limites da ciência e dos remédios”, diz. “É uma forma de minimizar o marketing malvado que não educa ninguém.”

As estatinas são a maior história de sucesso da indústria farmacêutica. Nenhuma outra categoria rendeu tanto dinheiro. São consumidas por 25 milhões de pessoas no mundo. No ano passado, produziram um faturamento de US$ 27, 8 bilhões. Metade desse valor foi conquistada pelo Lípitor (atorvastatina), da Pfizer. Em faturamento, ele é o primeiro do ranking da indústria. Os brasileiros compram nas farmácias 1 milhão de caixinhas de estatina a cada mês. O mais consumido é o genérico sinvastatina. O número dois é o Lípitor.

As estatinas são a maior história de sucesso da indústria farmacêutica. Nenhuma outra categoria rendeu tanto dinheiro. Em 2007, foram US$ 27,8 bilhões


A forma agressiva como ele é anunciado ajuda a explicar tamanho sucesso. Nos EUA, a propaganda de remédios vendidos com receita médica pode ser feita diretamente ao consumidor. Isso não ocorre no Brasil, onde as empresas procuram convencer os médicos a receitar seus produtos. Pelas regras americanas, os anúncios de remédio podem aparecer em qualquer parte: TV, revistas, jornais, outdoors. Segundo o anúncio do Lípitor, o remédio reduz em 36% o risco de infarto em pacientes com outros fatores de risco além do colesterol alto (hipertensão, por exemplo). Poucos consumidores prestam atenção ao asterisco e às letras pequenas colocadas no pé da página. Elas informam que, num amplo estudo, 3% dos pacientes que tomaram pílulas sem efeito (placebo) tiveram um infarto. No grupo que tomou Lípitor, o índice foi de cerca de 2%.

O que os números significam? A cada cem pessoas, três no grupo placebo e duas no grupo do remédio tiveram um infarto. O benefício creditado à droga é de um infarto a menos a cada cem pessoas. Ou seja: para evitar um infarto, é preciso que cem pacientes tomem o remédio por mais de três anos. É o que os estatísticos chamam de número necessário para tratar (NNT). Os outros 99 pacientes não tiveram nenhum benefício mensurável.

O cirurgião torácico trocou o bisturi pelo laptop. Nos últimos seis anos, se dedica a avaliar o custo–benefício de medicamentos como as estatinas. “A população precisa ser informada sobre os limites dos remédios”

E de onde vieram os 36%? Isso é o que os especialistas chamam de risco relativo, uma artimanha freqüentemente usada pela indústria para tornar mais atraentes os resultados dos estudos. A conta não é mentirosa, mas não expressa com clareza o real benefício dos remédios. O risco de infarto verificado no grupo que tomou Lípitor (1,94%) é dividido pelo risco observado no grupo placebo (3%). O resultado da divisão é 0,64. O passo seguinte é verificar quanto o remédio evitou que os riscos fossem iguais nos dois grupos. Basta subtrair 0,64 de 1. O resultado é 0,36, ou 36%.

Dizer que o remédio reduz o risco em 36% é mais impactante que explicar que apenas um infarto em cem será evitado, certo? “É verdade que a publicidade usa a cifra mais bombástica”, diz Eurico Correia, gerente-médico de grupo de produtos da Pfizer. “Mas a redução de risco de 1% ou 2% no enorme universo de consumidores significa salvar a vida de muita gente.”

Sim, mas, em nome da transparência que os consumidores merecem, eles precisam saber que poucos terão vantagem. “A maioria está tomando um remédio sem ter nenhuma chance de benefício e sofrendo o risco de enfrentar efeitos colaterais”, disse James M. Wright, professor da University of British Columbia, à revista BusinessWeek. Wright concluiu que as estatinas salvam vidas no grupo de pessoas que já tiveram um infarto. Nessa situação, os remédios realmente evitam a ocorrência de novos infartos e reduzem o risco de morte. Para essas pessoas, as estatinas são fundamentais.

No caso de quem nunca infartou, a situação é diferente. Wright verificou uma grande redução nos níveis de colesterol em homens de meia-idade que tomam estatinas. Mas a queda no número de infartos foi pouco significativa. Apesar dessas evidências, o bombardeio da propaganda pró-estatina é fortíssimo nos EUA. Alguns especialistas chegam a dizer – ainda que em tom de brincadeira – que as estatinas são tão importantes para o combate das doenças cardiovasculares que deveriam ser colocadas na água encanada, como o flúor que evita cáries.

É um evidente exagero. No Brasil, não se escuta esse tipo de comentário, mas poucos médicos têm uma visão crítica em relação aos remédios. A maioria dos pacientes que chega ao consultório com colesterol um pouco acima do normal sai com receita de estatina.
Além das principais marcas – Lípitor (atorvastatina) e Crestor (rosuvastatina) –, há vários produtos genéricos (sinvastatina, pravastatina, lovastatina…).
Seu benefício na prevenção do primeiro infarto é semelhante ao do Lípitor.


CÉLIA CARAN
50 anos
A artesã não tinha colesterol extremamente alto, mas o histórico de infarto na família convenceu seu médico a receitar estatina. “Resolvi mudar de vida.” Ela faz alongamento em praças públicas, caminha uma hora por dia e ainda pratica ioga

Um estudo divulgado no congresso do American College of Cardiology gerou mais discussão. Os médicos ouviram os resultados da pesquisa realizada com o remédio Vytorin, fruto da parceria entre as empresas Merck e Schering-Plough. A droga é uma combinação entre uma estatina genérica (sinvastatina) e outro tipo de redutor do colesterol chamado Zetia. O estudo revelou que o Vytorin não é mais eficaz que o produto genérico consumido isoladamente. Segundo os fabricantes, o estudo não é prova de que o Vytorin não funciona. As empresas argumentam que a pesquisa avaliou apenas o efeito do remédio sobre a espessura da artéria carótida – um parâmetro usado para analisar o acúmulo de colesterol e prever o risco de infarto. De fato, o estudo não responde definitivamente se o remédio reduz ou não o risco de infarto ou derrame. Mas as empresas conheciam o resultado do estudo e só o divulgaram quase dois anos depois do término da pesquisa. Enquanto isso, continuaram ganhando muito dinheiro com o Vytorin, que custa três vezes mais que o remédio genérico.

A justificativa dos médicos para tantas prescrições é a necessidade de combater o colesterol ruim (LDL) e aumentar o colesterol bom (HDL). O LDL contribui para a formação de placas de gordura nas artérias (leia a ilustração). Isso prejudica a passagem do sangue e aumenta o risco de infarto e derrame. O HDL age como um detergente nas artérias, ajudando a eliminar o LDL. Os remédios atuam nas duas frentes. Nos últimos anos, as metas de colesterol preconizadas pelas entidades médicas caíram sensivelmente. No início dos anos 90, um LDL de 130 miligramas por decilitro de sangue era considerado normal. Atualmente, é desejável que seja inferior a 100 miligramas por decilitro. Pessoas com outros fatores de risco além do colesterol (tabagismo, hipertensão, diabetes, histórico de infarto na família, obesidade, sedentarismo, nível elevado de triglicérides) devem manter o LDL em 70 miligramas por decilitro. É possível reduzir o colesterol com a adoção de uma vida saudável – atividade física, alimentação baseada em carnes magras, fibras, frutas e cereais integrais. A maioria das pessoas, no entanto, não consegue uma redução tão drástica sem tomar os remédios. Se as metas de colesterol continuarem caindo ano após ano, em breve talvez ninguém escape de tomar as estatinas. E, na maioria dos casos, sem ter benefício.

Quem toma estatina pode até ficar feliz com a queda dos níveis de colesterol. Mas pode infartar do mesmo jeito. Outros fatores de risco precisam ser controlados


Os céticos desconfiam da isenção dos comitês que preparam as diretrizes americanas. Essas diretrizes acabam sendo adotadas em boa parte do mundo – incluindo o Brasil. “É quase impossível encontrar alguém que acredite firmemente nas estatinas e não tenha nenhum vínculo com a indústria farmacêutica”, afirma Rodney A. Hayward, s professor da Universidade de Michigan. Houve uma grande controvérsia quando foram divulgadas as metas de colesterol de 2004. Oito dos nove especialistas tinham vínculos com a indústria.

“Em quase todas as áreas da medicina, uma mesma droga parece ser mais benéfica nos estudos bancados pela indústria que nas pesquisas financiadas pelos governos”, Nortin M. Hadler, professor de Medicina da Universidade da Carolina do Norte em Chapel Hill. Hadler é um crítico da indústria farmacêutica e autor do livro The Last Well Person – How to Stay Well Despite the Health-Care System. Em português, algo como A Última Pessoa Saudável – Como Ficar Bem Apesar do Sistema de Saúde.
“É fundamental que a sociedade aprenda o que é o NNT e passe a cobrar essa informação dos médicos e dos fabricantes.”

O NNT de 100 verificado no caso das estatinas é altíssimo quando comparado com o de outros remédios. Para evitar um infarto em hipertensos, é preciso tratar três pacientes com aspirina (NNT de 3). Para evitar uma morte por meningite, é preciso tratar um paciente com dexametasona (NNT de 1). É fundamental considerar o NNT e também o risco de efeitos colaterais. Que vantagem leva o paciente que paga caro por um remédio, não tem benefícios e ainda sofre reações indesejadas?

“Cerca de 30% dos consumidores de estatinas sofrem algum tipo de efeito colateral, mesmo que seja leve”, diz a cardiologista Suzana Alves da Silva, do Departamento de Pesquisa Clínica do Hospital Pró-Cardíaco, no Rio de Janeiro. Podem ocorrer dores musculares, desconfortos gastrintestinais, náuseas, constipações, insônia. Alguns estudos apontaram dificuldades de memória e até câncer, mas isso não foi confirmado. A pior ameaça é uma grave doença muscular (rabdomiólise), que pode levar à insuficiência renal e à morte. É algo raro: afeta uma pessoa a cada 4 milhões. Em 2001, a estatina Lipobay (cerivastatina), da Bayer, foi retirada do mercado devido ao número de pacientes que apresentaram o problema. Nos Estados Unidos, 31 consumidores do remédio morreram.

Nem sempre os médicos mencionam o risco de efeitos colaterais. A ênfase é colocada nos benefícios do remédio, como se ficar sem eles fosse um atentado contra a vida. A artesã Célia Caram, de 50 anos, recebeu sua primeira receita de estatina há oito anos. “O médico de meu marido disse que eu deveria tomar o remédio porque, na menopausa, ficar sem ele é óbito na certa.” A lógica por trás desse raciocínio é que a redução dos níveis de estrógeno (um protetor das artérias) durante a menopausa aumenta o risco de infarto. O colesterol de Célia não era extremamente alto (LDL de 176), mas ela era ex-fumante e seu pai havia morrido de complicações após uma segunda cirurgia de ponte de safena. Esses fatores pesaram na decisão do médico. Talvez Célia pudesse ter tentado baixar o colesterol com exercícios e mudanças na dieta antes de começar a tomar remédios. Mesmo com as pílulas, ela decidiu melhorar seu estilo de vida. Caminha uma hora por dia e depois faz alongamento em praças públicas. Duas vezes por semana, emenda esse exercício com as aulas de ioga. O colesterol baixou para 109, e Célia pensa em parar de tomar o remédio. “A estatina faz parte de um conjunto. Não faz milagre”, diz.

Quem se beneficia

A dificuldade dos médicos é saber quem vai se beneficiar dos remédios. Mesmo que eles conheçam os dados de NNT, a conclusão pode não se aplicar a um paciente específico. E se aquele indivíduo que o doutor tem diante de si for justamente o único felizardo que será salvo do infarto num grupo de cem consumidores? A diferença entre tomar ou não o remédio pode ser a diferença entre a vida e a morte. Nessa dura tarefa, uma das principais ferramentas usadas pelos cardiologistas é a Escala de Framingham. Ela prevê o risco de infarto dentro de dez anos a partir dos fatores de risco existentes (calcule seu risco). É apenas uma pista do que pode acontecer. A regra seguida pela maioria dos cardiologistas é que pessoas com colesterol acima do ideal e vários fatores de risco devem tomar estatina. Quem já infartou também não deve ficar sem o remédio. Nesse caso, a estatina reduz o risco de um novo infarto e de morte em grande parte dos pacientes.

No grupo de pessoas com colesterol alto e que já infartaram, o NNT das estatinas cai para 20. Ou seja: a cada 20 pessoas que tomam o remédio, uma escapa da morte. “Se eu não desse estatina para os pacientes de alto risco, estaria sendo antiético”, diz Raul Dias dos Santos Filho, diretor da Unidade Clínica de Dislipidemias do Instituto do Coração (Incor), em São Paulo. “Nessas situações, elas realmente evitam mortes.”

O publicitário Fernando Lozano, de 48 anos, infartou em 2003 e não está disposto a arriscar. Tinha colesterol alto e fumava muito. O pai sofreu três infartos, o avô foi morto por um. Lozano toma sinvastatina e está com o colesterol controlado. Faz esteira e diz ter tentado s melhorar a alimentação. É do tipo acelerado, nervoso. “Vivo em estado de alerta permanente”, diz. Acha que o estresse foi a causa do pico de colesterol verificado um mês antes de infartar. Ou a própria razão do infarto. O colesterol pode contribuir para os ataques cardíacos, mas não pode ser encarado como o único inimigo. Muitos pacientes tendem a acreditar que a pílula os libera da necessidade de evitar os outros fatores de risco. A indústria também vende a ilusão de que a simples redução do colesterol livra o consumidor do infarto. Quem toma estatina pode até ficar feliz com a queda dos níveis de colesterol. Mas pode infartar do mesmo jeito. “A indústria não vende uma mentira. É verdade que as estatinas reduzem o colesterol”, diz a cardiologista Suzana. “Mas isso não significa que todos os infartos serão evitados.”

O cirurgião Bernardo concorda. Há dois anos ele não faz exames de colesterol. Acha desproporcional a importância dada ao combate da substância fabricada no fígado e presente em alimentos gordurosos. “Não dosamos colesterol todos os dias. Ele pode estar elevado num dia e não estar em outro. É importante que as pessoas percebam que outros fatores podem ceifar a vida independentemente do controle bioquímico de seu sangue.” O pai de Bernardo morreu de infarto no ano passado. Tinha colesterol normal e ia periodicamente ao cardiologista. Atravessava um período de estresse. Bernardo acredita que isso tenha contribuído para a morte. A descarga constante dos hormônios adrenalina, noradrenalina e cortisol lesa a camada interna dos vasos sanguíneos, chamada endotélio. O desgaste dessa parede costuma gerar aglomerados de gordura e células que entopem as artérias.

Cerca de 20% dos brasileiros têm colesterol alto, segundo um levantamento da Sociedade Brasileira de Cardiologia (SBC). Ele pode não ter a importância que as pessoas imaginam. Mas em alguns pacientes não deve ser desprezado. “Nos principais congressos, há sempre debates acalorados entre o pessoal da medicina baseada em evidências e os cardiologistas clínicos”, afirma Antonio Carlos Chagas, presidente da SBC. “O pesquisador diz que não há vantagem para a maioria das pessoas, e o clínico vê que para o paciente dele há benefício.” Segundo Chagas, a maioria dos pacientes tem três fatores de risco. Alguns têm colesterol ruim alto e colesterol bom baixo. “Podem morrer só por isso.” Ele acredita que a divulgação do NNT pode fazer o público achar que não vale a pena tomar os remédios. Não é o que pretende esta reportagem. A intenção de ÉPOCA é contribuir para que cada indivíduo possa ter consciência dos benefícios, riscos e custos dos tratamentos. Antes de entrar na farmácia, as pessoas precisam saber que boa parte delas vai pagar R$ 80 por mês, estar sujeita a efeitos colaterais e ter uma chance remota de benefício.

Muitos médicos têm pouco conhecimento sobre NNT, risco relativo e outros indicadores do custo–benefício dos tratamentos. Tornam-se presas fáceis da propaganda incisiva da indústria farmacêutica. Antes de receitar estatinas, deveriam apostar nas mudanças de estilo de vida. Nem todos os pacientes conseguem concretizá-las. Mas precisam ter a chance de escolha. Em geral, quem começa a tomar estatina fica com ela a vida inteira. O custo de R$ 80 por mês multiplicado por anos a fio se torna absurdo quando se considera que poucos são os beneficiados. Por outro lado, o preço de não tomar o remédio pode ser a morte, ainda que isso ocorra com a minoria. A decisão é difícil e envolve uma avaliação minuciosa feita por um cardiologista preparado. E, cada vez mais, com a participação de pacientes menos passivos e bem informados. Esse é o resultado do trabalho de provocadores incansáveis como Wanderley Bernardo.

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