O CONCEITO DE INTELIGÊNCIA
Introdução
Conceituar a inteligência é uma tarefa peculiar porque a inteligência é a função psicológica responsável pela capacidade que temos de compreender o significado das coisas, de conceituar. No processo de conhecimento temos de um lado o objeto a ser conhecido, externo à inteligência, e do outro a inteligência, o instrumento mental que alcança o conceito desse mesmo objeto. Conceituar a inteligência é fazê-la objeto e instrumento simultaneamente, é ter consciência dos instrumento mental que nos permite conhecer o mundo e que está integrado à própria consciência.
A consciência atua conjuntamente à inteligência sendo distinta dela, a inteligência "mostra" para a consciência o significado das coisas percebidas, que elas são diferentes, e mesmo quando fisicamente semelhantes podem ter finalidades diferentes. Por exemplo, uma cadeira é distinta de uma mesa, elas têm funções e aspectos diferentes, duas cadeiras iguais no entanto, podem ter funções diferentes, uma pode servir para o professor sentar-se e a outra para o aluno, o que será percebido a partir da disposição desses móveis numa sala de aula. A inteligência apresenta à consciência a circunstância em que se encontra, permitindo com que ela se situe no contexto em que se encontra, e para a partir disso tomar as decisões mais adequadas, um aluno ao entrar na sala de aula sabe onde pode e onde não pode sentar-se mesmo que ninguém lhe diga. A inteligência é o instrumento que permite a consciência saber que decisão tomar. Para compreender melhor a inteligência precisamos saber também quais são suas fronteiras com as demais funções mentais.
Antes de nos darmos conta do significado de um objeto, necessariamente nos damos conta da existência desse objeto. A tomada de consciência da existência é imediata à percepção. A captação do conceito desse objeto no entanto, seguirá um processo mais demorado, envolvendo experimentação, para que as diferentes faces do novo objeto se apresentem e possam ser compreendidas. Estamos o tempo todo nos dando conta de novos objetos e aprofundando no conhecimento dos objetos já conhecidos através de novas experiências com eles, a inteligência está constantemente atuando, o processo de conceituação está constantemente sendo aprimorado e atualizado.
Para estudar um objeto qualquer precisamos saber o que ele é, mas para sabermos o que ele é, precisamos estudá-lo, então por onde devemos começar? O que vem primeiro, a conceituação ou o estudo do objeto? Junto à informação da existência do objeto geralmente os sentidos nos oferecem informações sobre as características desse objeto, assim vamos completando a idéia, o conceito do objeto com que entramos em contato. Como não há possibilidade de conhecermos os objetos de forma completa e imediata, mas gradualmente, Isto significa que antes de termos conceitos, passamos por preconceitos, pois como não sabemos a extensão do conhecimento que temos dos objetos (se está completo ou não), não sabemos se temos conceitos ou preconceitos a respeito deles. Esta dificuldade nos mostra como somos susceptíveis à erros, ainda que queiramos fazer a coisa certa, estamos sujeitos a cometer equívocos por causa da incompletude do nosso conhecimento e da ignorância que temos sobre essa incompletude. Este pode ser o primeiro benefício da tentativa de conceituar a inteligência: a necessidade de reconhecimento de que pouco sabemos.
O processo de Conceituação
Há objetos simples e outros complexos no que diz respeito à cognição. Simples são aqueles que podem ser compreendidos sem o auxílio de conceitos prévios como a idéia de triângulo ou de rigidez por exemplo. Os conceitos básicos aprendidos desde a infância tornam-se necessários para a compreensão dos conceitos complexos que precisam das idéias básicas para se formarem. Conceitos como vida ou humanidade, por exemplo, são complexos.
A inteligência é um conceito complexo, não sabemos quantos nem exatamente quais são seus conceitos básicos. Conceituar a inteligência significa delimitar suas fronteiras, identificar suas características e diferenciá-las das demais funções mentais envolvidas nos processos cognitivos, como a memória, a atenção (a capacidade de manter ou desviar a atenção), a consciência, a percepção, o juízo, etc.. Além destas, outras funções mentais ainda pouco estudadas também podem estar envolvidas no processo cognitivo, como a auto-eficácia, que na prática influencia o exercício da inteligência, recentemente demonstrado por Ângela Perez (2002). Como ainda não conhecemos todas as fronteiras mentais da inteligência, nem a extensão de cada uma com a inteligência, temos que admitir que o conceito de inteligência na psicologia não está completo.
Para ilustrar o processo de captação do conceito tomemos por exemplo a idéia de cadeira. Perguntar o que envolve o conceito de cadeira é o mesmo que perguntar quais são suas características essenciais. Olhando apenas uma cadeira não há como saber se o que vemos é essencial ou acessório, por isso é indispensável olhar várias cadeiras. Após a inspeção de várias começamos a perceber o que há de comum entre todas elas, a idéia das partes comuns, daquelas que estão sempre presentes, constituem a essência da cadeira. Nossa inteligência é capaz de separar o acessório do essencial, ou seja, é capaz de diferenciar o que é comum a todas do que pode ou não estar presente, é capaz então de abstrair o conceito de cadeira após se deparado com várias delas.
O conceito é algo que não muda com o tempo nem com a localização de onde o objeto se encontra, a idéia que fazemos de um objeto não depende de quando nem onde esse objeto existiu. Os objetos mudam, evoluem, mas quando o fazem transformam-se noutra coisa, passam a constituir outro conceito. Os animais evoluem, deixam de ser uma coisa e passam a ser outra, mas a essência daquilo que eram continua existindo mesmo que o animal se extinga. O conceito pode tornar-se passado mas não evolui junto com o animal, conceitos não se transformam, não evoluem. Na medida em que as coisas antigas se transformam em novas, surgem novos conceitos e os antigos continuam existindo enquanto idéia, enquanto passado, não mais como objeto atual. O conceito que temos de cadeira hoje é o mesmo que havia na antigüidade, embora as formas e materiais empregados fossem outros naquela época.
Qual é então a essência de uma cadeira? Pela observação empírica vemos que precisa ser feita de material rígido e ser proporcional às dimensões humanas na posição sentada e encostada. Precisam ter pelo menos dois planos, um para assentar outro para encostar. A rigidez não exclui acolchoamento, basta obedecer à função de sustentar o peso de uma pessoa. O fato de ser ou não acolchoada muda a essência da cadeira? Não muda, mas muda uma cadeira em particular, muda um acessório, acrescenta uma característica que como não é essencial precisa ser conceituada, por isso ao nos referirmos às cadeiras acolchoadas temos que mencionar o acolchoamento porque senão pensaremos numa cadeira pura. As características acessórias então, por definição são aquelas que não precisam estar presentes, são variáveis. As cores da cadeira são outro aspecto dela, apesar da cor da cadeira ser necessária, não há necessidade de uma cor específica, a cor seria então uma característica essencial ou acessória? O fato de ter uma cor é um aspecto essencial, mas uma determinada cor é um aspecto acessório, porque sabemos de todos os objetos da natureza da mobília possuem cores, algo que as torne visíveis, como não existe cadeira invisível não precisamos citar a característica de visibilidade como um fator essencial pois ele estará presente sempre.
O exemplo da cadeira serve como base para mostrar os processos que envolvem a conceituação dos objetos. O nosso objeto é a inteligência, a característica psicológica responsável pela captação dos conceitos, pela abstração da essência dos objetos. Para conceituar inteligência precisamos realizar o mesmo processo feito com a cadeira, descrever suas características, identificar os aspectos essenciais e diferenciá-los dos acidentais, é necessário portanto estudar várias inteligências buscando o que há de comum (essencial) e o que há de variável (acessório) entre elas.
A dificuldade de conceituar a inteligência
Existem muitas dificuldades no processo de conceituação da inteligência, primeiro porque não podemos tocar nem vê-la, segundo porque é um conceito complexo e ainda nem sabemos seu grau dessa complexidade, terceiro porque enquanto característica psicológica ela interage com outras funções psicológicas confundindo-se com elas. Uma pessoa com uma memória prodigiosa pode ser confundida com uma pessoa inteligente. Se a inteligência é a capacidade de resolver problemas, uma pessoa com boa memória pode se lembrar de como se resolve determinados problemas, e usar a memória para isso, nesse caso não se está criando uma solução, mas recordando-se de uma. É difícil embora possível, isolar o comportamento para obtermos uma resposta pura em psicologia, como é feito em outras ciências. No teste de WISC onde é apresentado nove cubos com cores e formas definidos, pede-se para reproduzir certas imagens com eles. Esse tipo de testagem avalia a inteligência humana dispensando o uso da verbalização, da matemática, ou de assuntos que requeiram aprendizado. Uma pessoa analfabeta ou pertencente a qualquer outra cultura pode ter um bom desempenho nesse teste se for inteligente, ou ainda, podemos determinar padrões de inteligência para faixas etárias utilizando esse teste.
Um dos princípios científicos declara que para se estudar uma determinada grandeza é preciso saber que estamos observando apenas uma e não outras características "contaminantes". As técnicas psicológicas procuram e conseguem com certo grau de sucesso, elaborar testes que obtenham respostas "puras". Acima foi exemplificado o teste dos cubos de WISC, que mede a inteligência pura, isentando-se da contaminação do grau de formação educacional. Neste sentido, construir formas de testagem pura é necessário para se definir as fronteiras da inteligência e podermos defini-la com mais precisão. Os testes de inteligência podem então ser usados para se alcançar o conceito da própria inteligência.
Falamos acima de inteligência pura, isso significa que existe uma inteligência misturada? Em outras palavras, há partes, subtipos, categorias de inteligência? Admitir isso é partir do principio de que a inteligência é divisível, se é divisível suas partes são equivalentes? Existe alguma parte mais importante do que outra? As atuais teorias da inteligência falam a respeito de inteligência geral e específica, em cristalizada e fluida. Fala-se em capacidades intelectivas, em habilidades, em dons. Certamente muitas são as atividades mentais envolvidas com a inteligência, mas considerá-las todas como parte da inteligência seria correto? O homem sempre anda vestido, podemos por isso considerar a roupa como parte essencial do homem só porque as roupas sempre estão presentes? A experiência empírica prova relações entre a inteligência geral e capacidades intelectuais como para a matemática. Mas qual o fundamento para se afirmar que por existir uma relação trata-se de uma parte integrante? Com este princípio de raciocínio acaba-se encontrando tantas inteligências quantas capacidades cognitivas, para a área emocional, social, espacial, matemática, verbal, etc.. Quanto mais objetos tentamos juntar ao conceito de inteligência mais complicado este conceito fica, talvez a dificuldade de conceituar a inteligência seja devido à estratégias de conceituação equivocadas, e não somente devido à complexidade do conceito de inteligência. Por que não admitir então que a inteligência seja indivisível, como um bloco único operando na consciência?
Até o momento muitas pesquisas sobre inteligência forma feitas, muitas características foram identificadas pelos vários modelos, que foram cientificamente validados. Talvez agora seja o momento de rever a forma da definição, não a definição em si, mas a maneira como as informações relativas a ela são articuladas, não precisamos mais descobrir novas peças, precisamos saber como elas se encaixam. Acredito que a partir do momento atual não reste muito por descobrir em relação a definição da inteligência, resta convencionar como a inteligência deve ser definida, resta escolher o que é essencial para sua definição e o que é acessório.
A possibilidade filosófica de definir inteligência
Filosofia e ciência são atividades do conhecimento humano distintas e complementares. A filosofia para definir um objeto baseia-se na busca de sua essência, o que é feito pelo experiência pessoal de distinção de características essenciais e acessórias. O conceito é algo pertencente ao próprio objeto, o filósofo ou o cientista podem disputar quem chegou antes ao conceito, mas este em si já existia desde que o começo da existência desse objeto, antes talvez da existência do filósofo ou do cientista. A ciência não oferece conclusões, oferece dados, os cientistas é que a partir dos dados chegam às conclusões. Portanto cientificamente não teremos uma definição de inteligência, teremos informações a respeito dela, os cientistas é que através dessas informações, manipulam-na de forma a tirarem conclusões plausíveis. Mas se os filósofos já chegaram a um conclusão a respeito do mesmo objeto de estudo dos cientistas porque esses não aproveitam o conhecimento produzido pelos filósofos para juntamente aos dados científicos obtidos, formularem o conceito de inteligência. Em outras palavras, porque os psicólogos não aproveitam a definição de inteligência obtida pelos filósofos para tentarem validá-la dentro dos conhecimentos científicos?
Conclusão
As questões difíceis de serem respondidas muitas vezes são difíceis não por natureza, mas por equívoco. Tentar explicar o que é um círculo quadrado não é difícil, é insensatez porque tal coisa não existe, se não existe não pode ser definida. Querer definir uma cor que é simultaneamente branca e preta é insensato pois o cinza é uma outra cor que não é nem brando nem preto e uma coisa não pode ser duas simultaneamente, uma cor não pode ser ao mesmo tempo branca e preta. Com a inteligência acontece o mesmo, talvez a dificuldade de defini-la não seja por causa de sua natureza complexa mas por causa do modo equivocado como é feito. A inteligência é a aptidão psicológica que permite ao homem abstrair, captar, entender conceitos, a essência das coisas que tomamos consciência. Junto a essa aptidão outras atividades mentais se integram e atuam em conjunto, como as habilidades matemáticas, verbais, emocionais, etc. por exemplo. Tomar a inteligência pelas suas características acessórias talvez seja o erro que impede a realização de uma definição precisa, talvez a tentativa de resumir todas as aptidões relacionadas à inteligência na própria inteligência esteja dificultando o trabalho de explicar a própria inteligência.
Bibliografia
Robert Sternberg. As capacidades intelectuais humanas. Artes Médicas. 1992
Jacques Maritain. Introdução geral à filosofia. Agir. 1981
Flanagan, Genshaft & Harison. Comtemporaru intellectual assessment. Cap.9. Guilford Press. 1997
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