"Varrer" e "aniquilar": a apologia do extermínio dá as caras na eleição
por Matheus Pichonelli
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O ex-presidente desconfia da capacidade cognitiva de quem não
vota como ele. A colunista do jornalão nem desconfia: tem certeza de que
parcela da população é incapaz de apertar os botões 1 + 3 + Confirma – e
isso, aposta ela, teria efeito considerável no resultado das urnas. O
ator global acha que votar no atual governo equivale a contrair ebola. E
o colunista que defende em público o seu voto no governo, com ou sem
ebola, é escorraçado no restaurante que não deveria frequentar - pois
quem defende pobre e come caviar só tem direito a comer baratas, e não a
defender que todos, inclusive ele, comam o que quiserem e quando
quiserem.
A sequência de episódios diz mais, muito mais, da virulência de um mundo em desordem do que supõe o marketing político dos dois finalistas deste segundo turno. O descolamento da realidade parece ser um fenômeno amplo a atingir eleitores e candidatos. A arrogância e a falta de autocritica, também.
Mas a virulência, nessa história, tem lado. A direita que jura viver em uma ditadura (gayzista, bolivariana, da insegurança, etc) é a primeira a agredir, verbal ou fisicamente, quem não vota como ela. É sintomático. No caso das ameaças ao ator e escritor Gregório Duvivier, o agressor tinha a cartilha decorada, aquela tentativa rocambolesca de juntar as palavras “perigo”, “vai pra Cuba”, “ditadura”, “esquerda caviar”, “roubalheira” sem necessariamente criar um raciocínio. Quem jamais defendeu o regime castrista que se vire: no estigma não cabem ponderações, a não os bíceps.
Quando falo sobre esse grupo, não me refiro aos que se dizem cansados do atual governo, que defendem reformas no sistema tributário e aceitam a diminuição do papel do Estado em prol de uma tal competitividade empreendedora. Posso discordar, mas acho compreensível e legítima a contraposição ao atual projeto de governo. Mas uma coisa é se opor. A outra é se opor à existência do projeto, dos arquitetos do projeto e de apoiadores do projeto.
Nas ruas, postes, posts e vidros de carros blindados, a opção de voto chega acompanhada de um imperativo, quase sempre expresso nas conjugações dos verbos "varrer", "eliminar", "exterminar", "expulsar", "aniquilar". Varrer, eliminar, exterminar e aniquilar quem, cara pálida? Quem não vota como você? Não basta votar contra? Em que momento da História esta disposição ao justiçamento acabou bem?
Não importa. Basta deixar o interlocutor à vontade para falar, de preferência em sua área de conforto, sua roda de amigos, a varanda de sua casa, amparado por um copo de chope ou uísque, e o resultado será o velho delírio autoritário de quem se refere ao outro como o "inimigo". São os mesmos que chamam os organizadores de rolezinho de “cavalões” (relembre), que questionam se o aeroporto virou rodoviária (relembre), que dedica parte do seu Natal para questionar o Natal de presidiários (relembre), que dizem ser compreensível amarrar, bater e prender no poste o jovem infrator que não se emenda (relembre), que bate em manifestante com bandeira de partidos em protesto (relembre), que acha que corrupção tem um lado só e se combate com vermífugo (relembre). É como definiram nas mesmas redes que hoje concentram o ódio: não dá para discutir Bolsa Família com quem ainda não aceitou a Lei Áurea. No Brasil os viúvos do escravismo se aglutinam em multidões. Como diz a música: eles são muitos, mas não podem voar. Mas vociferam quando se veem na rabeira da História.
O caráter higienista da arrogância social travestida de posicionamento político deixou claro, mais que claro, o quanto o espaço ao contraditório é apenas uma miragem em um país que não parece ter assimilado as tragédias de suas experiências autoritárias. Um tempo em que, diante da projeção inflacionada do chamado “mal maior” (as reformas – comunistas? – de base de ontem são o “mar de lama” de hoje), aceitava-se a mediocridade, a lama, a bota, o chão, o silêncio. A indigência de hoje não é outra se não a consequência de um passado não-esclarecido, de um presente que se nega a expor os horrores da supressão de direitos diluídos na escuridão das masmorras e dos centros de tortura.
Porque, na vida real, seguimos torturando e aceitando que tortura em corpos alheios é refresco (ou vacina): presos morrem confinados sem direito a julgamento, pobres são diariamente humilhados ao circular ao arrepio da ordem, manifestantes tomam balas de borracha no olho quando questionam que ordem, afinal, é essa. Uns pedem direitos, outros, camarotes - e masmorras - quantas forem necessárias. É onde os militantes do jipe, citados por Duvivier, e parte da população - os infectados pela ignorância, segundo o ex-presidente, a colunista demofóbica, o ator global - se distinguem.
Mas algo parece estranho quando o mesmo eleitor que condena a chamada Bolsa Esmola, os programas de inclusão na universidade e a chegada de médicos à periferia faz uma defesa tão apaixonada por quem jura de pé junto não mexer em nada disso. Essa direita, porta-voz dos preconceitos e das soluções autoritárias, não é só violenta. É míope e surda.
A sequência de episódios diz mais, muito mais, da virulência de um mundo em desordem do que supõe o marketing político dos dois finalistas deste segundo turno. O descolamento da realidade parece ser um fenômeno amplo a atingir eleitores e candidatos. A arrogância e a falta de autocritica, também.
Mas a virulência, nessa história, tem lado. A direita que jura viver em uma ditadura (gayzista, bolivariana, da insegurança, etc) é a primeira a agredir, verbal ou fisicamente, quem não vota como ela. É sintomático. No caso das ameaças ao ator e escritor Gregório Duvivier, o agressor tinha a cartilha decorada, aquela tentativa rocambolesca de juntar as palavras “perigo”, “vai pra Cuba”, “ditadura”, “esquerda caviar”, “roubalheira” sem necessariamente criar um raciocínio. Quem jamais defendeu o regime castrista que se vire: no estigma não cabem ponderações, a não os bíceps.
Quando falo sobre esse grupo, não me refiro aos que se dizem cansados do atual governo, que defendem reformas no sistema tributário e aceitam a diminuição do papel do Estado em prol de uma tal competitividade empreendedora. Posso discordar, mas acho compreensível e legítima a contraposição ao atual projeto de governo. Mas uma coisa é se opor. A outra é se opor à existência do projeto, dos arquitetos do projeto e de apoiadores do projeto.
Nas ruas, postes, posts e vidros de carros blindados, a opção de voto chega acompanhada de um imperativo, quase sempre expresso nas conjugações dos verbos "varrer", "eliminar", "exterminar", "expulsar", "aniquilar". Varrer, eliminar, exterminar e aniquilar quem, cara pálida? Quem não vota como você? Não basta votar contra? Em que momento da História esta disposição ao justiçamento acabou bem?
Não importa. Basta deixar o interlocutor à vontade para falar, de preferência em sua área de conforto, sua roda de amigos, a varanda de sua casa, amparado por um copo de chope ou uísque, e o resultado será o velho delírio autoritário de quem se refere ao outro como o "inimigo". São os mesmos que chamam os organizadores de rolezinho de “cavalões” (relembre), que questionam se o aeroporto virou rodoviária (relembre), que dedica parte do seu Natal para questionar o Natal de presidiários (relembre), que dizem ser compreensível amarrar, bater e prender no poste o jovem infrator que não se emenda (relembre), que bate em manifestante com bandeira de partidos em protesto (relembre), que acha que corrupção tem um lado só e se combate com vermífugo (relembre). É como definiram nas mesmas redes que hoje concentram o ódio: não dá para discutir Bolsa Família com quem ainda não aceitou a Lei Áurea. No Brasil os viúvos do escravismo se aglutinam em multidões. Como diz a música: eles são muitos, mas não podem voar. Mas vociferam quando se veem na rabeira da História.
O caráter higienista da arrogância social travestida de posicionamento político deixou claro, mais que claro, o quanto o espaço ao contraditório é apenas uma miragem em um país que não parece ter assimilado as tragédias de suas experiências autoritárias. Um tempo em que, diante da projeção inflacionada do chamado “mal maior” (as reformas – comunistas? – de base de ontem são o “mar de lama” de hoje), aceitava-se a mediocridade, a lama, a bota, o chão, o silêncio. A indigência de hoje não é outra se não a consequência de um passado não-esclarecido, de um presente que se nega a expor os horrores da supressão de direitos diluídos na escuridão das masmorras e dos centros de tortura.
Porque, na vida real, seguimos torturando e aceitando que tortura em corpos alheios é refresco (ou vacina): presos morrem confinados sem direito a julgamento, pobres são diariamente humilhados ao circular ao arrepio da ordem, manifestantes tomam balas de borracha no olho quando questionam que ordem, afinal, é essa. Uns pedem direitos, outros, camarotes - e masmorras - quantas forem necessárias. É onde os militantes do jipe, citados por Duvivier, e parte da população - os infectados pela ignorância, segundo o ex-presidente, a colunista demofóbica, o ator global - se distinguem.
Mas algo parece estranho quando o mesmo eleitor que condena a chamada Bolsa Esmola, os programas de inclusão na universidade e a chegada de médicos à periferia faz uma defesa tão apaixonada por quem jura de pé junto não mexer em nada disso. Essa direita, porta-voz dos preconceitos e das soluções autoritárias, não é só violenta. É míope e surda.
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