EXCLUSIVO: Mírian Dutra diz que Globo foi beneficiada com dinheiro do BNDES ao ‘exilá-la’
20 de fevereiro de 2016
Esta é a primeira matéria da série sobre a reeleição de
Fernando Henrique Cardoso. O projeto foi financiado pelos leitores
através de um crowdfunding na plataforma Catarse. Fique ligado.
Existem muitas maneiras de entender o que foi e como foi executado o projeto de poder que resultou na aprovação da emenda que permitiu a reeleição do presidente Fernando Henrique Cardoso, mas duas são particularmente reveladoras.
Uma delas é traçar o perfil dos deputados acreanos que venderam o voto para mudar a Constituição por R$ 200 mil reais em 1997 (R$ 923 mil corrigidos pelo IGP-M até janeiro deste ano).
A outra maneira de buscar um quadro mais nítido do episódio da reeleição é entrevistando a jornalista Mirian Dutra Schmidt, que conhece Fernando Henrique Cardoso como poucos e viveu esse período como “exilada” na Europa, por ter um filho que ela diz ser dele.
Percorri os dois caminhos, e o que emergiu foi uma história que une as duas práticas. Uma delas é a da política do Brasil profundo, de fronteira, onde a moeda sonante é o argumento mais eficaz para mudar consciências.
A outra prática é a do Brasil central, com políticos e profissionais de comunicação que trocam o silêncio por prestígio ou poder e, no final das contas, acabam por transferir riqueza a grupos privilegiados.
Vamos começar esta série pelo episódio atual, Mirian Dutra, que deu entrevista à revista Brazil com Z (publicação para brasileiros que vivem na Europa) e falou pela primeira vez de seu relacionamento com Fernando Henrique Cardoso.
Mirian se formou em jornalismo na Universidade Federal de Santa Catarina e, em 1982, aos 22 anos de idade, ancorava em Florianópolis pela RBS (afiliada da Globo) o horário local do TV Mulher.
“Para mim, aconteceu tudo muito rápido. Eu era estudante, trabalhava na rádio Itapema e fui chamada para apresentar o TV Mulher, logo depois apresentava no jornal do almoço um quadro sobre turismo em Florianópolis”, diz Mirian.
Nesse período, casou-se com um fotógrafo e teve uma filha, Isadora. O casamento durou cerca de um ano. “Eu queria cobrir política, era minha paixão e pedi à Globo outro local para trabalhar. Me ofereceram apresentar o jornal local de Minas, mas eu queria política e fui para a Manchete em Brasília”, diz.
Ela chegou à capital da República em 1985, com 24 anos de idade e uma filha de um ano e meio. Seis meses depois, Antônio Britto deixou a TV Globo para ser porta-voz de Tancredo Neves, e, com os remanejamentos internos da Globo em Brasília, surgiu uma vaga para trabalhar no Bom Dia Brasil.
“Eu fui a primeira mulher a trabalhar no Bom Dia Brasil, porque o trabalho lá é difícil. Tem que levantar às 4 da manhã e dormir às 7 da noite. Eu era divorciada, mulher casada que trabalha no ritmo desses perde o casamento.”
O casamento da sucessora dela no Bom Dia Brasil, a jornalista Beatriz Castro, não resistiu seis meses.
Eram os dias de intensa cobertura em Brasília, por causa da doença e morte de Tancredo Neves e do início do governo José Sarney, o primeiro civil depois de 20 anos de ditadura militar, quando Mirian conheceu Fernando Henrique Cardoso no restaurante Piantella.
O Piantella, hoje propriedade do advogado Antônio Carlos de Almeida Castro, o Kakay, era reduto de políticos e jornalistas. Ali costumavam ocorrer às terças-feiras jantares que definiam a pauta do Congresso, primeiro com Ulysses Guimarães à frente, depois Luiz Eduardo Magalhães e, mais recentemente, Michel Temer.
Como bebida destrava a língua, para jornalistas era um prato cheio frequentar o Piantella. Mirian conta que estava jantando com colegas de profissão quando Fernando Henrique Cardoso chegou e foi convidado para se sentar à mesa.
Era 1985, e Fernando Henrique Cardoso estava cotado para disputar a prefeitura de São Paulo, o que viria a ocorrer. “Eu admirava o Fernando Henrique pelos livros que ele tinha escrito, mas não pintou nada, nada”, diz.
Na versão dela, depois de muitos telefonemas, com Fernando Henrique ‘dizendo que estava apaixonado’, os dois começaram a namorar. Em 1991, quando Collor cogitou levar Fernando Henrique para o Ministério das Relações Exteriores, Mirian o desaconselhou, por cobrir o governo.
“Ele chegou em casa às duas horas da manhã, depois da reunião em que o Mário Covas foi contra o PSDB entrar no governo, e disse: ‘Você acabou com a minha vida’”.
Alguns meses depois, segundo ela, Fernando Henrique repetiria algo nessa linha, ao dizer que Mirian não poderia levar adiante a gravidez anunciada. “Você pode ter filho de quem quiser, menos meu.”
Segundo Mirian, estava foi a última vez que os dois falaram como namorados. “Para mim, acabou. Vi o tipo de homem que era.”
Pergunto: mas Fernando Henrique era o pai da criança?
“Claro que é.”
Mas e os DNAs posteriores, que provam o contrário?
“Ele diz que fez os exames nos Estados Unidos e o correto teria ter sido feito na minha presença, com a coleta do meu sangue. Por que fez lá? Por que demorou tanto para fazer, se eu pedi que fizesse quando fiquei grávida?”
Mirian diz estar disposta a um novo exame e afirma que tentou convencer seu filho a fazê-lo.
“Mas ele não quis. O Fernando Henrique deu a ele o que eu, como jornalista, nunca poderia dar: estudo de graduação na Georgetown University, uma das mais conceituadas do mundo, 60 mil dólares por ano, no mínimo, bancou sua permanência lá, e depois deu um apartamento de 200 mil euros, cash, em Barcelona. Para o Tomás (nome do filho), está bem feito. Para que questionar?”
Aspectos privados da vida de Fernando Henrique, Mirian Dutra e do filho dela pertencem a eles, mas o assunto deixou a esfera da privacidade quando o então senador Fernando Henrique, líder do PSDB e um dos formuladores da política em Brasília, colocou em marcha a engrenagem de mídia para iludir a opinião pública.
“O Fernando Henrique me ligou várias vezes e me pediu que recebesse a revista Veja em Florianópolis, onde eu estava para ganhar o bebê, e dissesse que o filho era de outra pessoa. Era uma coisa meio esquisita. Quem eu era para aparecer na Veja?”
Uma fotógrafa da agência Somm, Suzete Sandin, que Mirian Dutra conhecia dos tempos da Universidade Federal de Santa Catarina, foi contratada pela revista para um freelance, e procurou Mirian, que aceitou posar.
“Uma repórter, que eu não conheço, acho que era de outra cidade, me procurou e vi que ela tinha uma única missão: pegar a declaração que o Fernando Henrique tinha passado para mim”, afirma.
Na coluna Gente da edição de 24 de julho de 1991, a de número 30 do 24º ano de Veja, é publicada uma frase atribuída a Mirian:
“O pai da criança, um biólogo brasileiro, viajou para a Inglaterra para fazer um curso e voltará para o Brasil na época do nascimento do bebê.”
E existe esse biólogo?
“Claro que não. Isso é mentira. Era o que Fernando Henrique queria ver publicado, e foi publicado”, diz hoje a arrependida Mirian.
“Minha mãe quase enlouqueceu e disse: ‘Você não pode fazer isso.’ Eu tinha contado para ela quem é o pai. A barra foi muito pesada e eu quase perdi a gravidez”!
Mirian revela que ouviria mais tarde de Paulo Moreira Leite, na época um dos editores executivos de Veja, que a ordem para apurar e publicar a nota tinha partido de Mario Sergio Conti, que tinha assumido pouco tempo antes a direção de redação da revista.
“Foi uma armação do Fernando Henrique com o Mario Sergio”, diz a jornalista.
Ela diz que esta foi a primeira das muitas vezes em que viu a sua gravidez (e posterior nascimento do filho) ser usada para angariar prestígio. O governo era de Collor e ainda se cogitava abertamente a possibilidade de Fernando Henrique disputar a presidência, embora desfrutasse de prestígio como poucos na política, sobretudo por sua relação com a imprensa. Mas, segundo Mirian, chegar à presidência era o projeto de vida dele.
“Ouvi dele muitas vezes que seria presidente, porque os políticos no Brasil não sabiam de nada, eram mequetrefes. É claro que um filho fora do casamento, de uma mulher que todo mundo em Brasília sabia que era a namorada dele, prejudicaria seus planos.”
O filho nasceu e Mirian foi perdendo espaço de vídeo na Globo. Por razões que não ficaram para mim muito claras, na entrevista de mais de três horas que fiz com ela, Mirian Dutra decidiu ir para Portugal e logo estava empregada numa emissora em que Roberto Marinho era sócio.
Fernando Henrique já era ministro da Fazenda do presidente Itamar Franco e apontado como um nome forte para a sucessão no ano seguinte. Mirian chama sua saída do Brasil de um autoexílio, e diz que o diretor de jornalismo da Globo à época, Alberico de Souza Cruz, padrinho do seu filho Tomás, o ajudou muito nessa saída.
“Eu gosto muito do Alberico, e ele dizia que me ajudou porque me respeitava profissionalmente. Éramos amigos, conhecíamos segredos um do outro, mas eu fiquei surpresa quando, mais tarde, no governo de Fernando Henrique, ele ganhou a concessão de uma TV em Minas. Será que foi retribuição pelo bem que fez ao Fernando Henrique por me ajudar a sair do Brasil?”
No caso de Alberico, ela não passa da insinuação, mas quando o assunto é uma de suas irmãs, Margrit Dutra Schmidt, a jornalista é direta. Segundo Mirian, a irmã era dona da Polimídia, uma empresa de lobby em sociedade com o marido, Fernando Lemos, que cresceu nos anos 90, com a venda de serviços de gestão de crise.
“A minha irmã tinha as portas abertas em tudo quanto é lugar e era chamada de ‘a cunhadinha do Brasil.’ Agora soube que ela tem um cargo de assessora do Serra no Senado e não aparece para trabalhar. Eu não sabia, mas não fiquei surpresa. Este é o bando de gente para quem ela sempre trabalhou. E o Serra eu conheço bem.”
“Por que a imprensa não vai atrás dessas informações? A minha irmã, funcionária pública sem nenhuma expressão, tem um patrimônio muito grande. Só o terreno dela em Trancoso vale mais de 1 milhão de reais. Tem conta no Canadá e apartamentos no Brasil. Era a ‘cunhadinha do Brasil’”.
No que diz respeito a seu contrato com a Globo, nos anos que ela considera de exílio no exterior, Mirian quebra o silêncio e vai além das declarações protocolares. “Sabe o que eles fizeram comigo? Ensaboa mulata, ensaboa…”, diz, cantarolando a música de Cartola.
Segundo ela, quem ensaboava era Carlos Henrique Schroeder, atual diretor geral da Globo, na época o número 2 do jornalismo.
“Em 1997, eu estava cansada do trabalho que fazia em Portugal, sem nenhuma importância, e me apresentei para trabalhar no escritório em Londres. Na época, quem dirigia era o Ernesto Rodrigues e ele me disse, na cara: ‘Enquanto eu dirigir este escritório, nenhuma amantezinha vai trabalhar aqui.’”
Mirian diz que voltou para o Brasil e se reuniu com Evandro Carlos de Andrade, sucessor de Alberico na direção de jornalismo, e comunicou que ou voltaria para o Brasil, ou pediria demissão. “O Evandro disse, na frente do Schroeder e do Erlanger (Luís Erlanger, que dividia com Schroeder as funções de número 2 no jornalismo): “Ninguém mexe com essa mulher. Ela mostrou que tem caráter”, conta.
Schroeder foi então, conforme o relato de Mirian, destacado para ser uma espécie de padrinho dela na TV Globo. “Poxa, você conquistou o chefe”, disse ele.
Apesar disso, Mirian não desistiu da ideia de voltar para o Brasil. “Eu fui repórter do Jornal da Globo na época da Constituinte, fiz Jornal Nacional e estava na geladeira. Isso derruba qualquer um.”
Os planos de Mirian chegaram ao conhecimento dos amigos e um deles, Luís Eduardo Magalhães, que foi presidente da Câmara dos Deputados e líder de Fernando Henrique no Congresso, a convidou para um almoço.
“Sobre o Luís Eduardo, tem uma coisa interessante: eu era amiga dele antes do Fernando Henrique e fui eu que aproximei os dois.”
No almoço, Luís Eduardo levou o pai, o senador Antônio Carlos Magalhães, que ela também conhecia, e ouviu deles, mas principalmente de ACM, que não era hora de voltar, que Fernando Henrique disputaria a reeleição e ela deveria ter paciência.
“Foi quando entendi que eu deveria viver numa espécie clandestinidade. Se eu voltasse, não seria bem recebida e as portas se fechariam para mim”, conta.
Mirian tomou a decisão de comprar um apartamento em Barcelona e ir para lá, como contratada da Globo, e produzir matérias de lá. A empresa topou, mas, mesmo pagando a ela um salário de 4 mil euros (cerca de R$ 18 mil), não aprovou a realização de nenhuma pauta em muitos anos.
“Me manter longe do Brasil era um grande negócio para a Globo”, diz. “Minha imagem na TV era propaganda subliminar contra Fernando Henrique e isso prejudicaria o projeto da reeleição.”
Mas o que a empresa ganhou com isso?
“BNDES”.
Como assim?
“Financiamentos a juro baixo, e não foram poucos”.
Mirian afirma que a demissão da TV Globo, em setembro do ano passado, foi o que a levou a decidir fazer um relato da sua vida.
Foi um episódio que ela considera cruel. Depois de 25 anos de Globo, entre afiliada em Santa Catarina e Brasília, recebeu um e-mail de José Mariano Boni de Mathis, diretor executivo da Central Globo de Jornalismo. Curto e seco, ele informou: seu contrato não será renovado.
“A partir daí, eu não era mais a Mirian da TV Globo e me senti livre para fazer o que sempre quis, mas não podia: desenterrar os ossos e enterrar de novo, era como publicar um diário. Mas vi que esse cadáver incomoda muita gente, e a repercussão foi maior do que eu imaginava. Agora eu tenho que ler até o artigo de uma jornalista que me conhece e sabe bem dessa história, a Eliane Cantanhede, que me compara ao caso da Luriam, Miriam Cordeiro. Esse pessoal perde a compostura quando é para defender seus amigos. Absurdo.”
No almoço com Luís Eduardo Magalhães, havia uma quarta pessoa, cujo nome prefere não revelar no momento. Era representante da TV Globo. Na quinta-feira passada, quando a Folha de S. Paulo publicou entrevista de Mirian, ela recebeu um telefonema de Mariano Boni (diretor-executivo da Central Globo de Jornalismo).
“Ele queria saber quem era o representante da TV Globo no almoço em Brasília. Sabe o que respondi para ele? Você acha que eu vou contar para você? Acho que o microfone estava aberto e, se eu conheço a Globo, o Ali Kamel (diretor de jornalismo) estava ouvindo a conversa. O Boni disse: mas a Globo sempre foi muito correta com você. Disse que ele era cínico e falei outras coisas pesadas. Fui bem malcriada, e desliguei o telefone. A secretária do Boni me ligou várias vezes, e eu não atendi.”
O telefonema em que ela conversou com Boni foi por volta das 14 horas, no horário de Madri, onde hoje ela mora, 11 horas no fuso brasileiro. Duas horas depois, o Jornal Hoje repercutiu a entrevista de Mirian à Folha e o apresentador Evaristo leu uma nota da emissora, em que a direção afirma:
“Durante os anos em que colaborou com a TV Globo, Miriam Dutra sempre cumpriu suas tarefas com competência e profissionalismo.”
Mirian faz uma ironia com a declaração: “Quando vi, pensei que eu tivesse morrido. Elogio assim só em obituário. Mas sei qual é a intenção deles: me calar com elogio fácil.”
E qual a relação do seu exílio com o projeto de poder representado pela emenda da reeleição?
“Mostra o jogo pesado que foi a continuidade do governo de Fernando Henrique Cardoso. Só olhar para o que aconteceu no segundo governo: as privatizações mais selvagens. Não podia dar errado, a Mirian não podia atrapalhar os grandes negócios. Está na hora de quebrar a blindagem desse pessoal. Mas onde estão os jornalistas, que não investigam?”
por Joaquim de Carvalho
20 de fevereiro de 2016
Existem muitas maneiras de entender o que foi e como foi executado o projeto de poder que resultou na aprovação da emenda que permitiu a reeleição do presidente Fernando Henrique Cardoso, mas duas são particularmente reveladoras.
Uma delas é traçar o perfil dos deputados acreanos que venderam o voto para mudar a Constituição por R$ 200 mil reais em 1997 (R$ 923 mil corrigidos pelo IGP-M até janeiro deste ano).
A outra maneira de buscar um quadro mais nítido do episódio da reeleição é entrevistando a jornalista Mirian Dutra Schmidt, que conhece Fernando Henrique Cardoso como poucos e viveu esse período como “exilada” na Europa, por ter um filho que ela diz ser dele.
Percorri os dois caminhos, e o que emergiu foi uma história que une as duas práticas. Uma delas é a da política do Brasil profundo, de fronteira, onde a moeda sonante é o argumento mais eficaz para mudar consciências.
A outra prática é a do Brasil central, com políticos e profissionais de comunicação que trocam o silêncio por prestígio ou poder e, no final das contas, acabam por transferir riqueza a grupos privilegiados.
Vamos começar esta série pelo episódio atual, Mirian Dutra, que deu entrevista à revista Brazil com Z (publicação para brasileiros que vivem na Europa) e falou pela primeira vez de seu relacionamento com Fernando Henrique Cardoso.
Mirian se formou em jornalismo na Universidade Federal de Santa Catarina e, em 1982, aos 22 anos de idade, ancorava em Florianópolis pela RBS (afiliada da Globo) o horário local do TV Mulher.
“Para mim, aconteceu tudo muito rápido. Eu era estudante, trabalhava na rádio Itapema e fui chamada para apresentar o TV Mulher, logo depois apresentava no jornal do almoço um quadro sobre turismo em Florianópolis”, diz Mirian.
Nesse período, casou-se com um fotógrafo e teve uma filha, Isadora. O casamento durou cerca de um ano. “Eu queria cobrir política, era minha paixão e pedi à Globo outro local para trabalhar. Me ofereceram apresentar o jornal local de Minas, mas eu queria política e fui para a Manchete em Brasília”, diz.
Ela chegou à capital da República em 1985, com 24 anos de idade e uma filha de um ano e meio. Seis meses depois, Antônio Britto deixou a TV Globo para ser porta-voz de Tancredo Neves, e, com os remanejamentos internos da Globo em Brasília, surgiu uma vaga para trabalhar no Bom Dia Brasil.
“Eu fui a primeira mulher a trabalhar no Bom Dia Brasil, porque o trabalho lá é difícil. Tem que levantar às 4 da manhã e dormir às 7 da noite. Eu era divorciada, mulher casada que trabalha no ritmo desses perde o casamento.”
O casamento da sucessora dela no Bom Dia Brasil, a jornalista Beatriz Castro, não resistiu seis meses.
Eram os dias de intensa cobertura em Brasília, por causa da doença e morte de Tancredo Neves e do início do governo José Sarney, o primeiro civil depois de 20 anos de ditadura militar, quando Mirian conheceu Fernando Henrique Cardoso no restaurante Piantella.
O Piantella, hoje propriedade do advogado Antônio Carlos de Almeida Castro, o Kakay, era reduto de políticos e jornalistas. Ali costumavam ocorrer às terças-feiras jantares que definiam a pauta do Congresso, primeiro com Ulysses Guimarães à frente, depois Luiz Eduardo Magalhães e, mais recentemente, Michel Temer.
Como bebida destrava a língua, para jornalistas era um prato cheio frequentar o Piantella. Mirian conta que estava jantando com colegas de profissão quando Fernando Henrique Cardoso chegou e foi convidado para se sentar à mesa.
Era 1985, e Fernando Henrique Cardoso estava cotado para disputar a prefeitura de São Paulo, o que viria a ocorrer. “Eu admirava o Fernando Henrique pelos livros que ele tinha escrito, mas não pintou nada, nada”, diz.
Na versão dela, depois de muitos telefonemas, com Fernando Henrique ‘dizendo que estava apaixonado’, os dois começaram a namorar. Em 1991, quando Collor cogitou levar Fernando Henrique para o Ministério das Relações Exteriores, Mirian o desaconselhou, por cobrir o governo.
“Ele chegou em casa às duas horas da manhã, depois da reunião em que o Mário Covas foi contra o PSDB entrar no governo, e disse: ‘Você acabou com a minha vida’”.
Alguns meses depois, segundo ela, Fernando Henrique repetiria algo nessa linha, ao dizer que Mirian não poderia levar adiante a gravidez anunciada. “Você pode ter filho de quem quiser, menos meu.”
Segundo Mirian, estava foi a última vez que os dois falaram como namorados. “Para mim, acabou. Vi o tipo de homem que era.”
Pergunto: mas Fernando Henrique era o pai da criança?
“Claro que é.”
Mas e os DNAs posteriores, que provam o contrário?
“Ele diz que fez os exames nos Estados Unidos e o correto teria ter sido feito na minha presença, com a coleta do meu sangue. Por que fez lá? Por que demorou tanto para fazer, se eu pedi que fizesse quando fiquei grávida?”
Mirian diz estar disposta a um novo exame e afirma que tentou convencer seu filho a fazê-lo.
“Mas ele não quis. O Fernando Henrique deu a ele o que eu, como jornalista, nunca poderia dar: estudo de graduação na Georgetown University, uma das mais conceituadas do mundo, 60 mil dólares por ano, no mínimo, bancou sua permanência lá, e depois deu um apartamento de 200 mil euros, cash, em Barcelona. Para o Tomás (nome do filho), está bem feito. Para que questionar?”
Aspectos privados da vida de Fernando Henrique, Mirian Dutra e do filho dela pertencem a eles, mas o assunto deixou a esfera da privacidade quando o então senador Fernando Henrique, líder do PSDB e um dos formuladores da política em Brasília, colocou em marcha a engrenagem de mídia para iludir a opinião pública.
“O Fernando Henrique me ligou várias vezes e me pediu que recebesse a revista Veja em Florianópolis, onde eu estava para ganhar o bebê, e dissesse que o filho era de outra pessoa. Era uma coisa meio esquisita. Quem eu era para aparecer na Veja?”
Uma fotógrafa da agência Somm, Suzete Sandin, que Mirian Dutra conhecia dos tempos da Universidade Federal de Santa Catarina, foi contratada pela revista para um freelance, e procurou Mirian, que aceitou posar.
“Uma repórter, que eu não conheço, acho que era de outra cidade, me procurou e vi que ela tinha uma única missão: pegar a declaração que o Fernando Henrique tinha passado para mim”, afirma.
Na coluna Gente da edição de 24 de julho de 1991, a de número 30 do 24º ano de Veja, é publicada uma frase atribuída a Mirian:
“O pai da criança, um biólogo brasileiro, viajou para a Inglaterra para fazer um curso e voltará para o Brasil na época do nascimento do bebê.”
E existe esse biólogo?
“Claro que não. Isso é mentira. Era o que Fernando Henrique queria ver publicado, e foi publicado”, diz hoje a arrependida Mirian.
“Minha mãe quase enlouqueceu e disse: ‘Você não pode fazer isso.’ Eu tinha contado para ela quem é o pai. A barra foi muito pesada e eu quase perdi a gravidez”!
Mirian revela que ouviria mais tarde de Paulo Moreira Leite, na época um dos editores executivos de Veja, que a ordem para apurar e publicar a nota tinha partido de Mario Sergio Conti, que tinha assumido pouco tempo antes a direção de redação da revista.
“Foi uma armação do Fernando Henrique com o Mario Sergio”, diz a jornalista.
Ela diz que esta foi a primeira das muitas vezes em que viu a sua gravidez (e posterior nascimento do filho) ser usada para angariar prestígio. O governo era de Collor e ainda se cogitava abertamente a possibilidade de Fernando Henrique disputar a presidência, embora desfrutasse de prestígio como poucos na política, sobretudo por sua relação com a imprensa. Mas, segundo Mirian, chegar à presidência era o projeto de vida dele.
“Ouvi dele muitas vezes que seria presidente, porque os políticos no Brasil não sabiam de nada, eram mequetrefes. É claro que um filho fora do casamento, de uma mulher que todo mundo em Brasília sabia que era a namorada dele, prejudicaria seus planos.”
O filho nasceu e Mirian foi perdendo espaço de vídeo na Globo. Por razões que não ficaram para mim muito claras, na entrevista de mais de três horas que fiz com ela, Mirian Dutra decidiu ir para Portugal e logo estava empregada numa emissora em que Roberto Marinho era sócio.
Fernando Henrique já era ministro da Fazenda do presidente Itamar Franco e apontado como um nome forte para a sucessão no ano seguinte. Mirian chama sua saída do Brasil de um autoexílio, e diz que o diretor de jornalismo da Globo à época, Alberico de Souza Cruz, padrinho do seu filho Tomás, o ajudou muito nessa saída.
“Eu gosto muito do Alberico, e ele dizia que me ajudou porque me respeitava profissionalmente. Éramos amigos, conhecíamos segredos um do outro, mas eu fiquei surpresa quando, mais tarde, no governo de Fernando Henrique, ele ganhou a concessão de uma TV em Minas. Será que foi retribuição pelo bem que fez ao Fernando Henrique por me ajudar a sair do Brasil?”
No caso de Alberico, ela não passa da insinuação, mas quando o assunto é uma de suas irmãs, Margrit Dutra Schmidt, a jornalista é direta. Segundo Mirian, a irmã era dona da Polimídia, uma empresa de lobby em sociedade com o marido, Fernando Lemos, que cresceu nos anos 90, com a venda de serviços de gestão de crise.
“A minha irmã tinha as portas abertas em tudo quanto é lugar e era chamada de ‘a cunhadinha do Brasil.’ Agora soube que ela tem um cargo de assessora do Serra no Senado e não aparece para trabalhar. Eu não sabia, mas não fiquei surpresa. Este é o bando de gente para quem ela sempre trabalhou. E o Serra eu conheço bem.”
“Por que a imprensa não vai atrás dessas informações? A minha irmã, funcionária pública sem nenhuma expressão, tem um patrimônio muito grande. Só o terreno dela em Trancoso vale mais de 1 milhão de reais. Tem conta no Canadá e apartamentos no Brasil. Era a ‘cunhadinha do Brasil’”.
No que diz respeito a seu contrato com a Globo, nos anos que ela considera de exílio no exterior, Mirian quebra o silêncio e vai além das declarações protocolares. “Sabe o que eles fizeram comigo? Ensaboa mulata, ensaboa…”, diz, cantarolando a música de Cartola.
Segundo ela, quem ensaboava era Carlos Henrique Schroeder, atual diretor geral da Globo, na época o número 2 do jornalismo.
“Em 1997, eu estava cansada do trabalho que fazia em Portugal, sem nenhuma importância, e me apresentei para trabalhar no escritório em Londres. Na época, quem dirigia era o Ernesto Rodrigues e ele me disse, na cara: ‘Enquanto eu dirigir este escritório, nenhuma amantezinha vai trabalhar aqui.’”
Mirian diz que voltou para o Brasil e se reuniu com Evandro Carlos de Andrade, sucessor de Alberico na direção de jornalismo, e comunicou que ou voltaria para o Brasil, ou pediria demissão. “O Evandro disse, na frente do Schroeder e do Erlanger (Luís Erlanger, que dividia com Schroeder as funções de número 2 no jornalismo): “Ninguém mexe com essa mulher. Ela mostrou que tem caráter”, conta.
Schroeder foi então, conforme o relato de Mirian, destacado para ser uma espécie de padrinho dela na TV Globo. “Poxa, você conquistou o chefe”, disse ele.
Apesar disso, Mirian não desistiu da ideia de voltar para o Brasil. “Eu fui repórter do Jornal da Globo na época da Constituinte, fiz Jornal Nacional e estava na geladeira. Isso derruba qualquer um.”
Os planos de Mirian chegaram ao conhecimento dos amigos e um deles, Luís Eduardo Magalhães, que foi presidente da Câmara dos Deputados e líder de Fernando Henrique no Congresso, a convidou para um almoço.
“Sobre o Luís Eduardo, tem uma coisa interessante: eu era amiga dele antes do Fernando Henrique e fui eu que aproximei os dois.”
No almoço, Luís Eduardo levou o pai, o senador Antônio Carlos Magalhães, que ela também conhecia, e ouviu deles, mas principalmente de ACM, que não era hora de voltar, que Fernando Henrique disputaria a reeleição e ela deveria ter paciência.
“Foi quando entendi que eu deveria viver numa espécie clandestinidade. Se eu voltasse, não seria bem recebida e as portas se fechariam para mim”, conta.
Mirian tomou a decisão de comprar um apartamento em Barcelona e ir para lá, como contratada da Globo, e produzir matérias de lá. A empresa topou, mas, mesmo pagando a ela um salário de 4 mil euros (cerca de R$ 18 mil), não aprovou a realização de nenhuma pauta em muitos anos.
“Me manter longe do Brasil era um grande negócio para a Globo”, diz. “Minha imagem na TV era propaganda subliminar contra Fernando Henrique e isso prejudicaria o projeto da reeleição.”
Mas o que a empresa ganhou com isso?
“BNDES”.
Como assim?
“Financiamentos a juro baixo, e não foram poucos”.
Mirian afirma que a demissão da TV Globo, em setembro do ano passado, foi o que a levou a decidir fazer um relato da sua vida.
Foi um episódio que ela considera cruel. Depois de 25 anos de Globo, entre afiliada em Santa Catarina e Brasília, recebeu um e-mail de José Mariano Boni de Mathis, diretor executivo da Central Globo de Jornalismo. Curto e seco, ele informou: seu contrato não será renovado.
“A partir daí, eu não era mais a Mirian da TV Globo e me senti livre para fazer o que sempre quis, mas não podia: desenterrar os ossos e enterrar de novo, era como publicar um diário. Mas vi que esse cadáver incomoda muita gente, e a repercussão foi maior do que eu imaginava. Agora eu tenho que ler até o artigo de uma jornalista que me conhece e sabe bem dessa história, a Eliane Cantanhede, que me compara ao caso da Luriam, Miriam Cordeiro. Esse pessoal perde a compostura quando é para defender seus amigos. Absurdo.”
No almoço com Luís Eduardo Magalhães, havia uma quarta pessoa, cujo nome prefere não revelar no momento. Era representante da TV Globo. Na quinta-feira passada, quando a Folha de S. Paulo publicou entrevista de Mirian, ela recebeu um telefonema de Mariano Boni (diretor-executivo da Central Globo de Jornalismo).
“Ele queria saber quem era o representante da TV Globo no almoço em Brasília. Sabe o que respondi para ele? Você acha que eu vou contar para você? Acho que o microfone estava aberto e, se eu conheço a Globo, o Ali Kamel (diretor de jornalismo) estava ouvindo a conversa. O Boni disse: mas a Globo sempre foi muito correta com você. Disse que ele era cínico e falei outras coisas pesadas. Fui bem malcriada, e desliguei o telefone. A secretária do Boni me ligou várias vezes, e eu não atendi.”
O telefonema em que ela conversou com Boni foi por volta das 14 horas, no horário de Madri, onde hoje ela mora, 11 horas no fuso brasileiro. Duas horas depois, o Jornal Hoje repercutiu a entrevista de Mirian à Folha e o apresentador Evaristo leu uma nota da emissora, em que a direção afirma:
“Durante os anos em que colaborou com a TV Globo, Miriam Dutra sempre cumpriu suas tarefas com competência e profissionalismo.”
Mirian faz uma ironia com a declaração: “Quando vi, pensei que eu tivesse morrido. Elogio assim só em obituário. Mas sei qual é a intenção deles: me calar com elogio fácil.”
E qual a relação do seu exílio com o projeto de poder representado pela emenda da reeleição?
“Mostra o jogo pesado que foi a continuidade do governo de Fernando Henrique Cardoso. Só olhar para o que aconteceu no segundo governo: as privatizações mais selvagens. Não podia dar errado, a Mirian não podia atrapalhar os grandes negócios. Está na hora de quebrar a blindagem desse pessoal. Mas onde estão os jornalistas, que não investigam?”
por Joaquim de Carvalho
20 de fevereiro de 2016
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