O consumo – para repetir o óbvio – é o único fim e o alvo de toda a atividade econômica.
(Keynes, 1973, p.104)
Introdução
Os governos do presidente Lula ganharam alguns rótulos e
interpretações ligeiras. Entre os mais conhecidos é que foram governos
do estímulo ao consumo e do, consequente, endividamento excessivo das
famílias brasileiras. Há, pelo menos, duas outras marcas também
estabelecidas para aqueles governos: (1) -surfaram na calmaria
internacional e no boom de preços das commodities ou ainda (2) -
foram governos que promoveram uma gastança irresponsável de recursos
públicos. São rótulos que tentam comunicar, com poucas palavras, o que
podemos chamar de os fracassos dos sucessos econômicos e sociais que o Brasil alcançou em 2010, após dois governos e oito anos de administração do presidente Lula.
A tentativa de marcar os governos do presidente Lula com
esses rótulos ou interpretações ligeiras tem uma clara e objetiva
intenção. Tem a finalidade de reduzir o tamanho dos resultados
econômicos e sociais daquele período em todas as suas dimensões. É feito
uma espécie de contorcionismo (intelectual e político) para mostrar que
existiram fracassos, apesar dos sucessos. Em outras palavras, busca-se
mostrar que as políticas econômicas e sociais que foram adotadas tiveram
eficiência duvidosa e deixaram efeitos colaterais negativos. Para
tanto, os verdadeiros resultados alcançados são distorcidos ou omitidos.
Os rótulos ou interpretações ligeiras dão explicações
econômicas sintéticas e simples. Mas, de fato, rótulos e interpretações
ligeiras são recursos de comunicação que servem à disputa política.
Explicações econômicas rigorosas e aprofundadas podem mostrar, no caso
em questão, fatos e resultados diferentes e, por vezes, opostos àqueles
indicados. Por exemplo, como é mostrado nesse artigo, o que é chamado de
“a era do consumo” poderia ser chamado de forma mais apropriada de “a
era dos investimentos”. Embora esse último rótulo possa ser mais
adequado para a economia daquele período, não atenderia à narrativa
política da desqualificação ou da diminuição dos resultados alcançados,
muito pelo contrário.
O objetivo do artigo é mostrar que o período 2006-2010 foi
caracterizado de forma muito inadequada. Por exemplo, poderia ter sido
caracterizada como “a era dos investimentos”, já que especialmente o
segundo governo do presidente Lula foi coroado com um aumento
extraordinário dessa variável. O consumo das famílias cresceu no período
Lula, mas pode ser considerado como o motor de partida para que a
economia alcançasse uma condição virtuosa de crescimento com
investimentos e redução drástica do desemprego. Do ponto de visa
quantitativo, vale uma comparação. O consumo das famílias cresceu bem
menos que o investimento durante os governos do presidente Lula.
Portanto, o rótulo fartamente atribuído àquele período é no mínimo muito
impreciso.
O artigo contém mais sete seções. Na próxima, indica-se
que o rótulo “a era do consumo” é muito utilizado, embora não tenha tido
origem em trabalhos acadêmicos. Sua utilização busca diminuir os
resultados econômicos e sociais do período. Como existiu inclusive a
demonização do ato de consumir, indica-se, em seguida, que o consumo é
necessário para que outras variáveis sejam estimuladas, entre elas, a
taxa de salários, lucros, aluguéis etc. Na seção “do consumo ao
investimento”, descreve-se do ponto de vista teórico e real qual foi a
sequência que teve início com o consumo e que culminou com aumento dos
investimentos e a redução do desemprego. Do ponto vista teórico,
mostra-se o keynesianismo da trajetória econômica a partir dos escritos
de J.M.Keynes e de H.Minsky. E do ponto de vista quantitativo, mostra-se
que o investimento cresceu muito mais que o consumo na era Lula. A
seção seguinte trata do endividamento das famílias. Destaca-se que a
desaceleração de 2011 não foi causada pelo excesso de endividamento das
famílias, mas pode ter sido incentivada pelo aumento da parcela
comprometida com o pagamento de dívida, que por sua vez, sofreu pressão
altista devido à elevação da taxa de juros básica da economia. Antes das
considerações finais, faz-se uma breve comparação internacional.
Conclui-se que o Brasil no período 2006-2010 esteve entre os países que
tiveram as maiores taxas de crescimento do consumo quanto do
investimento. A conclusão geral do artigo é que o rótulo “a era do
consumo” poderia ser substituído por “a era dos investimentos” sem
prejuízo de análise ou omissão de resultados econômicos e sociais
alcançados – muito embora mais importante que rótulos sejam as análises
apuradas.
A temática discutida no artigo é abordada a partir da
teoria econômica de John Maynard Keynes e da tradição pós-keynesiana
expressa nas visões de Hyman Minsky, Paul Davidson e outros.
O rótulo “a era do consumo”
Embora tenha tido muito debate sobre o tema, com muitos
textos de opinião, ainda foi produzida uma quantidade reduzida de
artigos acadêmicos sobre o modelo e resultados econômicos e sociais dos
governos Lula – o que é aceitável porque o tempo é necessário para que
conjunturas sejam transformadas em história analisada. Destacam-se entre
os trabalhos produzidos os artigos de Morais & Saad-Filho (2011),
Barbosa & Souza (2010), Ferrari-Filho e Paula (2015) e Serrano &
Summa (2015). Há também dois livros-ensaios escritos por Sicsú (2012) e
Dulci (2012), mas que não pretenderam fazer discussões no plano
acadêmico.
Morais & Saad-Filho (2011) reconheceram que houve mudanças desenvolvimentistas
que buscavam equidade social e a elevação do investimento no segundo
governo Lula. Buscaram equacionar teoricamente e empiricamente como tais
mudanças conviviam com políticas liberais que, segundo os autores, foram herdadas do primeiro mandato.
Serrano & Summa (2015), embora tratem diretamente do
primeiro governo Dilma (2011-2014), também analisaram o período
2003-2010. Esses autores concluíram que houve uma ampla transformação no
período 2004-2010 que envolveu o crescimento do investimento, do
consumo, do emprego formal e da infraestrutura – e que políticas
orientadas para esses objetivos foram utilizadas.
Ferrari-Filho & Paula (2015) destacam que no período
2007-2010 o crescimento foi promovido pelo consumo, investimento e
exportações. Argumentaram, contudo, que no período da crise
internacional de 2008-2009 o governo Lula adotou uma política contra
cíclica de cunho keynesiano que foi episódica. Alertam que o governo
deveria ter mantido tal política associado a estratégias de
desenvolvimento de forma permanente, mesmo em tempos de normalidade.
Barbosa & Souza (2010) fizeram um “balanço geral” dos
dois governos Lula e concluíram que houve uma “inflexão” na trajetória
econômica: da posição liberal para uma orientação desenvolvimentista.
Estavam focados em explicar a “estabilidade macroeconômica” alcançada,
ou seja, inflação controlada, redução do endividamento do setor público e
diminuição da vulnerabilidade externa.
Como visto, em nenhum desses trabalhos buscou-se
caracterizar os governos Lula como aqueles cuja marca teria sido somente
o estímulo ao consumo. A despeito dos parcos trabalhos científicos
produzidos, tanto os analistas da mídia hegemônica no Brasil quanto
grande parte do senso comum (que é influenciado por essa mídia)
interpretam, mais que simplesmente rotulam, os governos do presidente
Lula como “a era do consumo”.
A descrição a partir daquele rótulo, em primeiro plano, é
eivada de um sentido negativo que tenta mostrar que o gasto de consumo é
algo inferior; que o correto teria sido o estímulo ao gasto de
investimento. Alguns sugerem até que é sempre melhor poupar do que
consumir. São estabelecidas, de forma subjacente, uma hierarquia e uma
classificação: o consumo é algo inferior e quase ruim e o investimento é
muito bom e superior. Em segundo plano, tenta-se mostrar que houve
aumento do consumo porque as famílias se endividaram excessivamente.
Aqui também o endividamento das famílias é tratado como algo muito
negativo, um juízo de valor que não existe na teoria econômica.
Basta uma pesquisa na Internet, via Google por exemplo,
que o resultado são inúmeros endereços que indicam: desde a
ultraesquerda até a direita mais ignorante formando um aparente consenso
sobre os governos Lula como sendo “a era do consumo” e do endividamento
excessivo das famílias brasileiras. Para além dos artigos de opinião e
entrevistas disseminados, há um artigo científico sobre o tema, de
Kharroubi & Kohlscheen (2017), que vale a pena ser avaliado. Os
autores se propõem a analisar a problemática do crescimento puxado pelo
consumo (consumptiom-led growth).
Eles definem economias cujo crescimento é puxado pelo
consumo todos aqueles casos em que a taxa de crescimento do consumo das
famílias é maior que a taxa de crescimento de toda a economia. A análise
é feita a partir de uma comparação entre países selecionados. Destacam
que no período 2002-2007, para alguns países desenvolvidos, o
crescimento foi puxado por um equilíbrio entre investimento e consumo,
mas que de 2011 a 2016, teria sido puxado somente pelo consumo. Fazem
referência também ao Brasil, mas somente a partir de 2010. Indicam que
no ano de 2010 não houve crescimento puxado pelo consumo. Contudo,
consideram que nos anos seguintes predominou tal modelo de crescimento.
Suas conclusões são instigantes: (a) as taxas de
crescimento são menores quando puxadas pelo consumo em comparação aos
modelos cujo crescimento depende de outras variáveis e (b) que o
crescimento puxado pelo consumo não é sustentável quando é baseado no
endividamento das famílias. Isso ocorreria porque as famílias teriam no
futuro que usar seus rendimentos para pagar suas dívidas e deixarão de
consumir o que reduzirá a taxa de crescimento da economia.
Em relação a caracterização de uma economia com modelo em
que o consumo puxa o crescimento, o critério adotado por Kharroubi &
Kohlscheen (2017) somente indicaria, nos governos Lula, o ano de 2005
como um ano onde o consumo das famílias impulsionou o crescimento. A
partir desse ano, sua caracterização não explicaria o caso brasileiro
porque não somente o consumo cresceu mais do que o PIB no período em
análise. O investimento também cresceu mais do que o PIB e mais que o
consumo, tal como será visto a seguir.
A caracterização dos autores quando aplicada ao Brasil
corrobora as conclusões do artigo, já que o ano de 2005 revelou-se o
motor de partida de um modelo que se consolidou nos anos seguintes em
que consumo e investimento cresceram conjuntamente e, ambos, cresceram
mais que o produto da economia. No período 2007-2010, tal modelo se
consolidou.
Sobre o endividamento das famílias brasileiras também
serão apresentadas algumas considerações à frente. O endividamento dito
excessivo é uma questão relacionada à sustentabilidade (ou esgotamento)
de uma fase, tal como indicam Kharroubi & Kohlscheen (2017). O
esgotamento ou sustentabilidade não é o foco desse artigo. Contudo, será
mostrado que a parcela dos rendimentos das famílias comprometida com o
pagamento de dívidas cresceu muito pouco durante os governos do
presidente Lula. E, embora o grau de endividamento das famílias tenha
crescido, ainda é baixo quando comparado com países selecionados.
Demonização do consumo causa desemprego
O rótulo “a era do consumo” tem também como objetivo
denegrir o ato de consumir. Há motivo para a insistência no rótulo. O
motivo é a mais plena ignorância daqueles que querem ver o investimento,
mas desdenham o consumo. Contudo, não há lógica econômica que possa
explicar o investimento que não é precedido pela expectativa de consumo –
que é formada em grande medida com base no consumo corrente. Além
disso, o consumo está interligado com as demais variáveis econômicas. O
consumo não ocorre de forma isolada.
O consumo de cada indivíduo se relaciona diretamente com
resultados agregados. Portanto, nunca o consumo individualizado, que ao
mesmo tempo foi o ato de milhões no caso brasileiro, deveria ser
condenado. Vale a explicação de Keynes no prefácio de sua Teoria Geral
à edição francesa em 1939: “... a demanda resultante do consumo e do
investimento de um indivíduo é a fonte da renda de outros indivíduos, de
tal forma que as rendas em geral não são independentes, pelo
contrário...” (Keynes, 1973, p.xxxiii). Keynes enfatizou que o gasto de
consumo, de um lado, representa lucros, salários, impostos, aluguéis e
juros, de outro. Portanto, sem consumo as outras rendas estariam
comprometidas.
Ainda no mesmo prefácio, Keynes destacou que o emprego
depende do que os agentes esperam em relação ao consumo presente e
futuro, já que o ato de consumir vem necessariamente após a decisão e a
realização da produção. Nas palavras de Keynes:
... o nível real de produção e o emprego não dependem da
capacidade de produzir ou do nível das rendas preexistentes, mas das
decisões correntes de produzir, que dependem por seu turno das decisões
correntes de investir e das expectativas presentes do consumo corrente e futuro. (1973, p.xxxiii – grifos nossos)
A abstenção ao consumo ou seu adiamento, como muitos
avaliam que deveria ter ocorrido durante os governos Lula, não
necessariamente implicaria mais gastos no futuro de tal forma que o
futuro compense a redução do emprego e da renda correntes. Existem
inúmeras possibilidades de como o potencial consumidor poderá, no
futuro, utilizar os seus recursos poupados. A única coisa que é certa é a
redução da demanda, da renda e do emprego correntes. Nas palavras de
Keynes:
Um ato de poupança individual significa — por assim dizer —
uma decisão de não ter jantar hoje. Mas isso não obriga uma decisão de
jantar ou de comprar um par de botas em uma semana ou em um ano ou de
consumir uma coisa particular numa data especifica. Assim, isso deprime
as atividades relativas à preparação do jantar de hoje sem estimular
atividades de preparação de algum ato futuro de consumo. Não é uma
substituição de demanda de consumo presente por uma demanda de consumo
futuro - mas uma diminuição líquida de tal demanda. (Keynes, 1973,
p.210)
Estimular, portanto, o ato de poupar de forma generalizada
pode levar a uma redução do emprego e da renda correntes sem que no
futuro tenhamos mais consumo ou uma decisão adicional de investimento
para compensar o passado perdido. Logo, demonizar o consumo significaria
desestimular o conjunto da atividade econômica.
Do consumo ao investimento
“O tempo é um dispositivo que impede que tudo ocorra de
uma vez.” (Davidson, 1994, p.88) Esta frase do economista pós-keynesiano
é absolutamente óbvia e brilhante. Grande parte da vida econômica
ocorre de forma sequencial, ou seja, uma coisa após a outra – e, em
grande medida, ocorrem sequencias que são bem conhecidas - embora seja
de díficil previsão o tempo e a intensidade de cada fase. A marca da Teoria Geral
de Keynes é a apresentação de um modelo de causação marshalliana e a
recusa da ocorrência de simultaneidade do modelo de equilíbrio geral
walrasiano.
No início do seu primeiro governo, o presidente Lula, em
conjunto com as centrais sindicais, tomou duas decisões: valorizar o
salário mínimo e estruturar o crédito à pessoa física estabelecendo
garantias aos bancos - modalidade que ficou conhecida como crédito
consignado. Ambas as decisões produziram, em sequência, resultados
extraordinários. Uma regra de valorização real para o salário mínimo foi
acordada em 2007, enviada ao Congresso em 2009 e aprovada em 2011. Mas,
antes do acordo com as centrais sindicais, o salário mínimo já tinha
tido aumento real vigoroso desde 2005. A proposta de crédito consignado
foi regulamentada através de Medida Provisória em setembro de 2003.
Além dessas duas medidas, que podem ser chamadas de
abre-alas dos governos Lula, existiram outras iniciativas que
contribuíram para auxiliar e potencializar os resultados que estariam
por vir. A instituição do programa Bolsa-Família e a bancarização da
população de baixa renda foram importantes. Por exemplo, a Caixa
Econômica Federal lançou um programa que permitia a abertura de contas
correntes sem a obrigação de comprovação de endereço ou renda. De 2003 a
2010, a Caixa “... permitiu o acesso ao mercado bancário de
aproximadamente 11 milhões de brasileiros por meio da Conta CAIXA Fácil”
(Caixa, 2010). O Programa Bolsa-Família, um programa de transferência
de renda para as famílias em condição de pobreza e de extrema pobreza,
foi instituído em 2003/4. Segundo o Ministério do Desenvolvimento
Social, no ano de 2003, havia 3,6 milhões de famílias no Programa cujo
valor total dos benefícios era de R$3,2 bilhões. Em 2010, alcançou 12,9
milhões de famílias que receberam R$14,4 bilhões.
Todas essas medidas favoreceram o consumo de forma
disseminada regionalmente e em diferentes estratos de renda,
particularmente nas camadas de renda mais baixa. Especialmente o salário
mínimo é piso para o valor dos benfícios pagos pela Previdência Social e
é piso e referência para as negociações de quem ganha baixos salários
no mercado formal de trabalho. Além disso, é referência para as camadas
que recebem baixa remuneração em suas negociações no mercado informal de
trabalho. Enfim, houve uma avalanche de recursos que entrou na economia
pelo mercado de trabalho, através de benefícios sociais e, também, pelo
mercado de crédito.
É importante ressaltar alguns fatores que determinam o
comportamento das famílas relativo ao consumo que não foram abordados,
por exemplo por Keynes, mas que fazem parte do arcabouço pós-keynesiano.
Quando Keynes tratou da problemática do consumo ainda não existia o
crédito bancário de forma disseminada para este fim. Uma síntese
pós-keynesiana sobre o comportamento das famílias foi bem pontuada por
Phillip Arestis:
O comportamento das famílias ... é determinado por alguns
fatores. Incluem não só a propaganda e outras formas de condicionamentos
sociais, mas o crescimento dos níveis de renda dentro de cada classe
social, assim como o crédito que as famílias podem obter. (...) É
assumido que as famílias tem uma ordem de prioridades em termos de
mercadorias que elas podem comprar quando suas rendas crescem. Essa
ordem de prioridades reflete, ambos, as necessidades materiais objetivas
e o tipo de condicionamento social que elas estão sujeitas. (Arestis,
1992,p.125)
À época dos governos Lula, pouco era esperado do aumento
do salário mínimo e da elevação oferta de crédito à pessoa física em
termos de resultados mais duradouros sobre o desemprego e o investimento
privado, já que a sequência sugerida, por exemplo por Keynes, tem
início com o investimento público – e não com o consumo. Em processo
sequencial bastante conhecido, Keynes receitou que para que houvesse
redução do desemprego e aumento dos investimentos, seria necessário dar a
partida com o investimento público.
A sequência proposta por Keynes era a seguinte: após o
investimento público viria uma rodada de aumento do emprego, do consumo
e, posteriormente, do investimento privado (nessa ordem). Em seguida,
obtem-se menos desemprego, mais consumo e mais investimentos privados.
Após algumas rodadas (de operação do mecanismo do multiplicador
amplamente divulgado por Keynes a partir de 1936 em sua magnum opus),
o objetivo final seria alcançado. Contudo, Keynes reconhecia que
poderiam ocorrer situações onde a partida poderia não ser dada pelos
investimentos. Essa situação é descrita no capítulo 22 de sua Teoria Geral quando se dedicou a tratar das variações da eficiência marginal do capital e os movimentos do ciclo econômico.
De forma intuitiva, o presidente Lula adotou tal
recomendação de política econômica sugerida por Keynes em condições de
dificuldades de dar a partida a partir do investimento - já que havia
algum nível de restrição aos gastos públicos imposto pelo Ministério da
Fazenda, empresásrios agiam como financistas especuladores (estavam
semi-paralisados e desacostumados a tomar decisões de investir) e, além
disso, a taxa de juros Selic era muito alta. Vejamos a sequência
sugerida por Keynes nessas condições específicas:
Nas condições (...) em que o volume de investimento não é
planejado nem controlado, sujeito aos caprichos da eficiência marginal
do capital, que é determinada pelo julgamento privado de indivíduos
ignorantes ou especuladores, e sujeito à influência de uma taxa de juros
de longo termo, que raramente ou nunca fica abaixo de um nível
convencional (...). Para tais condições, não há outro meio capaz de
elevar o volume médio de emprego a um nível mais favorável. Se é
materialmente impraticável aumentar o investimento, obviamente não
existe nenhum meio de assegurar um nível mais alto de emprego exceto
aumentando o consumo. (Keynes, 1973, pp.324-5, grifos nossos)
As medidas adotadas pelo presidente Lula de aumento real
do salário mínimo e de ampliação do crédito através da modalidade
chamada de consignado provocaram o aumento do consumo. O salário mínimo
teve extraordinário crescimento real, subindo ano após ano acima da
inflação (tal como mostrado no gráfico 1). Segundo dados do Banco
Central, o crédito livre à pessoa física cresceu de 7,3% do PIB em
dezembro de 2004 para 14,9% no mesmo mês de 2010 (como é evidenciado no
gráfico 2). A partir de séries disponibilizadas pelo Banco Central,
pode-se inferir que aproximadamente 65% do crédito livre era crédito
consignado. O resultado foi que o consumo começou a aumentar e o
desemprego começou a cair - a taxa de desemprego entre dezembro de 2003 e
dezembro de 2010 foi reduzida em mais de 50% (com trajetória indicada
no gráfico 3).
A redução do desemprego associado ao aumento real do
salário mínimo deu impulso para uma elevação disseminada dos outros
rendimentos do trabalho. Segundo a Pesquisa Mensal de Emprego do IBGE,
no ano de 2010, tinha havido um aumento real de 19% em relação a 2003 do
rendimento médio habitual dos trabalhadores. E a massa de rendimento
médio habitual dos ocupados aumentou em termos reais 41,1% entre 2003 e
2010. Esse aumento generalizado dos rendimentos do trabalho, individuais
e da massa, reforçou o processo em curso de estímulo ao consumo. Entre
janeiro de 2003 e dezembro de 2010, o volume de vendas do comércio
varejista ampliado, composto pelo varejo mais as vendas de veículos,
motos, partes e peças e material de construção, cresceu 94,3% (Pesquisa
Mensal do Comércio/IBGE).
Pode ser observado no gráfico 4 que as medidas adotadas
pelo presidente Lula nos primeiros anos do seu governo, dada a defasagem
temporal estabelecida em um processo sequencial, começaram a apresentar
resultados contundentes sobre o investimento a partir de 2006-7. Cabe
destacar, no entanto, que apesar das dificuldades herdadas de períodos
anteriores, o investimento apresentou trajetória de reação, embora muito
tênue, desde 2003. Por outro lado, o consumo das famílias cresceu em
trajetória basicamente linear de 2003 a 2010 como resultado do aumento
real dos salários, da ampliação do volume de crédito e da redução do
desemprego, que por sua vez, ampliou ainda mais o consumo e a demanda
por mais crédito. A operação do multiplicador Keynes-Kahn se repetia.
O gráfico 4 mostra que a partir de 2006-7, surgiu uma
trajetória bastante acentuada de aumento do investimento – tal como
esperado. Afinal, empresários somente investem quando esperam vender.
Então, somente investiram quando suas expectativas de que o processo que
foi iniciado em 2004-5 se reproduziria também no futuro. Assim, o
investimento adotou trajetória extraordinária a partir de 2006-7 e
diminuiu somente por dois trimestres consecutivos na passagem de 2008
para 2009 quando a economia brasileira sofreu os efeitos da crise
financeira americana. Mas logo em seguida, ainda em 2009, retomou o
crescimento rumo à trajetória anterior. A trajetória de 2010 é a busca
da continuidade do movimento que estava em curso desde 2006-7.
Segundo os dados do IBGE, expostos no gráfico 4, enquanto o
consumo cresceu 48,2% durante os governos Lula, o investimento cresceu
74,3%. Havia uma demanda reprimida tanto de consumo quanto de
investimentos. Afinal, entre o primeiro trimestre de 1996 e o primeiro
trimestre de 2004, o consumo das famílias, medido pelo IBGE, teve um
crescimento modesto. Cresceu apenas 15% nesses oito anos. Sendo assim,
modestíssimos investimentos (9% de crescimento ao longo de todo período)
e a mera ocupação de capacidade ociosa atenderam aquele fraco aumento
do consumo. Já no período seguinte que vai até 2010, tivemos crescimento
considerável do consumo. Portanto, para esse período, investimentos
mais vigorosos foram necessários e foram realizados – tal como mostrado
no gráfico 4.
Como visto, a política de estímulo ao consumo dos governos
Lula alcançou o investimento privado por vias plenamente explicáveis a
partir do diagnóstico e receituário de Keynes. Além de Keynes, há ainda
uma abordagem pós-keynesiana que trata o consumo como peça principal que
merece ser analisada. Hyman Minsky propôs uma alternativa para reformar
estruturalmente o capitalismo chamada de estratégia do alto consumo
(high-consumption estrategy). Tal estratégia objetiva “...reduzir a
dependência do sistema ao investimento privado – ... [mas, para tanto
seria necessário] mudar a distribuição de renda assim como a propensão
privada média a consumir, e acompanha-las com consumo e investimento
públicos” (Minsky, 1975, p.167). Minsky era um crítico da estratégia que
chamava de alto investimento que, por sua vez, é associada à política
de altos lucros, e que tinha como engrenagens empresas e instituições
financeiras gigantes. Tal institucionalidade gesta na estabilidade uma
instabilidade financeira sistêmica, além de concentração de riqueza. Em
outras palavras, essa estratégia revela a volatilidade do investimento e
que, portanto, tal variável não pode garantir o pleno emprego de forma
contínua. (Minsky, 1975, pp.167-168)
A alternativa do estímulo ao consumo de Minsky é outro
arcabouço teórico que pode oferecer uma interpretação da economia nos
governos Lula. Minsky era um radical defensor da melhoria da
distribuição da renda para que o consumo fosse estimulado e sustentado.
Sugeria que uma “... taxação sobre a renda e a riqueza... [deveria ser]
desenhada para reduzir a desigualdade”, que “...a renda dos
trabalhadores e dos pobres melhor[asse]...” e que a “...renda do pobre
... [deve ser] aumentada e sustentada diretamente...” (Minsky, 1975,
pp.167-168). Minsky avaliava que o consumo era uma variável mais estável
que o investimento. E mais: que uma estratégia alternativa deveria ter
como objetivos o pleno emprego e alto consumo.
Especialmente a crise 2008-9 no Brasil pode ser observada
sob a ótica da estratégia do alto consumo de Minsky. É muito conhecida a
interpretação minskyana sobre a crise financeira americana a partir da hipótese da instabilidade financeira.
A crise de 2008-9 corroborou a hipótese de Minsky, mas mais do que isso
deve ser observado. No caso brasileiro, comprovou a correção da
estratégia alternativa do alto consumo: mostrou a volatilidade do
investimento e a estabilidade do consumo das famílias. O ano de 2009 foi
para o Brasil um ano de recessão muito branda e de forte contenção do
desemprego. Embora o desemprego tenha aumentado durante o ano de 2009,
em dezembro desse ano já estava no mesmo nível de dezembro de 2008
(6,8%, segundo a PME/IBGE).
Endividamento das famílias e a desaceleração de 2011
No período de 2005 a 2010, a oferta de crédito à pessoa
física por parte do sistema financeiro correspondeu em algum grau a uma
mudança no padrão de endividamento das famílias. Esse endividamento pode
ser analisado a partir de duas variáveis: a proporção da renda
comprometida com o pagamento de dívidas contraídas e o grau de
endividamento, que é o total das dívidas contraídas como proporção da
renda das famílias devedoras.
No período, houve aumento da parcela comprometida da renda
das famílias com o pagamento de dívidas, mas principalmente houve
aumento do grau de endividamento. Contudo, tal parcela de
comprometimento não aumentou de forma tão significativa, era 15,8% em
março de 2005 e foi para 19,5% em dezembro de 2010 (aumento menor que 4
pontos percentuais). Já o grau de endividamento aumentou de forma
vigorosa, dobrando de valor no mesmo período, saiu de um pouco menos de
20% para quase 40% em relação à renda acumulada em 12 meses, tal como
mostrado no gráfico 5.
Embora a parcela comprometida com o pagamento de dívidas
tenha aumentado pouco, o seu nível (entre 15 e 20% durante os governos
Lula) é considerado alto em termos internacionais. Por exemplo, em 2016,
segundo o Financial Soundness Indicators (FMI), o comprometimento da
renda familiar com o pagamento de dívidas era 10,7% na França, 3,6% na
Suécia, 10% nos Estados Unidos, 10,3% na Itália, 11,8% na Áustria, 1,3%
em Portugal e 8,6% na Austrália. Nesse ano, o Brasil atingiu 21,5%.
Entre os países informantes, que não são muitos, o Brasil tinha a taxa
mais alta entre todos. Somente a Rússia e a Espanha apresentaram números
também elevados, 18,5% e 15,9%, respectivamente.
Durante todo o período analisado, o comprometimento de
parcela elevada da renda familiar para o pagamento de dívidas sempre
existiu, sempre foi bem mais alto do que é a média internacional. Essa
parece ser uma característica da economia brasileira que é decorrente em
grande medida dos elevados juros cobrados das famílias, tal como pode
ser visualizado no gráfico 6: em média, um pouco mais que 1/3 da parte
da renda comprometida com o pagamento de dívida é devido à carga de
juros embutida nas parcelas.
Por outro lado, segundo o Financial Soundness Indicators
(FMI), o grau de endividamento que aumentou no Brasil de forma acentuada
no período 2005-2010 é ainda baixo quando comparado com o nível de
outros países. Enquanto, em 2016, as famílias brasileiras tinham um grau
de endividamento que era 19,8% do PIB, esse número era 43,5% na África
do Sul, 55,8% na Itália, 80,1% nos Estados Unidos, 83% em Portugal,
85,6% na Suécia, 55,2% na Áustria, 120,7% na Dinamarca, 105,3% na
Austrália e 69,1% na Espanha. Portanto, pela ótica da mera comparação
internacional o que ocorreu no período 2005-2010 com o grau de
endividamento das famílias foi pouco significativo; cresceu sim, mas
continuou ainda muito baixo para os padrões internacionais.
Em 2010, último ano de governo Lula, a economia cresceu
7,5%, mas em 2011 caiu para uma taxa de crescimento de 4%. Portanto,
vale analisar se tal queda ocorreu em função do processo sugerido por
Kharroubi & Kohlscheen (2017): uma elevação do grau de endividamento
(presente) provocaria um aumento da parcela dos rendimentos
comprometida com o pagamento de dívidas (no futuro) o que reduziria o
consumo – e, em consequência, derrubaria a taxa de crescimento.
Não há indicações que tenha havido essa combinação
sugerida por Kharroubi & Kohlscheen (2017) do grau de endividamento
com o nível de comprometimento do rendimento das famílias para pagar
dívidas. No gráfico 5, é mostrado que a parcela de rendimentos
comprometida deu um salto abrupto durante o ano de 2011, saindo do
patamar de aproximadamente 19,5% para o patamar de 22,5%. No mesmo
gráfico, é observado que o grau de endividamento das famílias cresceu de
forma contínua de 2005 até meados de 2013, quando começou a crescer
menos, mas continuou crescendo até meados de 2015. Portanto, a mudança
de patamar da parcela comprometida dos rendimentos não foi uma resposta
das famílias com o objetivo de reduzir o grau de endividamento. Contudo,
existiu um aumento da parcela comprometida dos rendimentos que deve ser
analisada.
No caso do Brasil, a influência do comportamento das
famílias endividadas sobre a variação do volume de consumo parece não
aderir à possibilidade apontada por Kharroubi & Kohlscheen (2017),
pelo menos para o período sob análise. O motivo dessa falta de aderência
pode ser que não houve um super endividamento das famílias tal como
indicado pelas comparações internacionais. Outra possibilidade é que as
famílias brasileiras dão pouca importância ao grau de endividamento e
concentram as suas preocupações na capacidade de honrar os pagamentos
com a parcela comprometida. O que parece evidente é que, durante o ano
de 2011, a parte comprometida da renda para o pagamento de dívidas
aumentou devido à elevação da carga de juros embutida nas parcelas, tal
como pode ser visto no gráfico 6. Pode ser observado no mesmo gráfico
também que existe forte correlação entre essas duas variáveis.
O consumo cresceu 5% em 2011 (como está indicado na tabela
1). Cresceu, contudo, menos que em 2010, quando atingiu a taxa de 6,2%.
Portanto, é possível afirmar que o aumento da parcela comprometida com
os rendimentos pode ter tido alguma influência sobre a redução da taxa
de crescimento do consumo. Cabe destacar que, durante o ano de 2011,
outra variável que teve queda na sua taxa de crescimento foi o
investimento, que caiu de 17,9% para 6,8% (como indicado na tabela 1).
Observando o gráfico 5, pode-se perceber que o grau de
endividamento das famílias tem algum grau de correlação com o ciclo
econômico. A desaceleração da taxa de crescimento do produto e posterior
recessão são acompanhadas pela redução da taxa de crescimento do grau
do endividamento e, posteriormente, pela sua redução. Portanto, no
período analisado, a elevação do patamar do nível de comprometimento da
renda com o pagamento de dívidas não ocorreu devido ao excesso de
endividamento, mas sim devido à elevação da carga de juros embutida nas
parcelas, que por sua vez, está relacionada com a taxa de juros básica
da economia. De janeiro a agosto de 2011, o Banco Central elevou a taxa
de juros básica da economia de 10,75% para 12,5% ao ano.
A desaceleração de 2011 não teve como causa o processo
endógeno sugerido por Kharroubi & Kohlscheen (2017). Mas é possível
que a elevação da parcela comprometida da renda das famílias tenha
reduzido o ímpeto de crescimento do consumo. Tal parcela comprometida
aumentou em decorrência da carga de juros embutida nos compromissos de
pagamento de dívidas. Os juros cobrados nos empréstimos bancários às
famílias dependem do nível da taxa de juros básica da economia cuja
definição ocorre de forma exógena à economia – e foi elevada pelo Banco
Central em 2011. Outras variáveis exógenas podem ter contribuído para a
desaceleração daquele ano: houve redução significativa do investimento
do governo federal, queda de 21%, e de suas estatais, diminuição de 9,7%
(cálculos feitos com base em Orair, 2016). Houve ainda redução da taxa
de crescimento do consumo do governo que caiu de 3,9%, em 2010, para
2,2%, em 2011.
A era do consumo?
No período de 2006 a 2010, o investimento passou a crescer
anualmente entre duas e três vezes o crescimento do PIB, tal como é
mostrado na tabela 1. Nesse período, o consumo anual cresceu a taxas
significativas, mas nunca cresceu mais que o investimento. Fato notável
ocorreu no ano de 2009, o ano da crise econômica internacional que teve
início nos Estados Unidos. Naquele ano, a variável consumo das famílias
desempenhou o papel de atenuar (ou quase impedir) a contração do
produto. Em 2009, o consumo das famílias cresceu 4,5% enquanto houve
contração do PIB de 0,1% e retração do investimento, tal é indicado na
tabela 1. É nesse ano que o consumo deve ser ainda mais valorizado.
Tabela 1 – Taxa de crescimento real do produto, do investimento e do consumo das famílias – em variação % - período: 2003 a 2010
Cabe lembrar que, em 2008, na sua mensagem de final de ano, o presidente da República em rede nacional de comunicação de televisão e rádio apelou aos brasileiros para que realizassem os seus desejos de consumo. Nas suas palavras: “Se você está com dívidas, procure antes equilibrar seu orçamento. Mas se tem um dinheirinho no bolso ou recebeu o décimo terceiro, e está querendo comprar uma geladeira, um fogão ou trocar de carro, não frustre seu sonho, com medo do futuro”. E o presidente acrescentou explicando com palavras simples a operação do multiplicador Keynes-Kahn: “Se você não comprar, o comércio não vende. E se a loja não vender, não fará novas encomendas à fábrica. E aí a fábrica produzirá menos e, a médio prazo, o seu emprego poderá estar em risco”.
Muitos são os indicadores que poderiam justificar a adoção
de um rótulo como “a era do investimento”, que seria menos impreciso
que “a era do consumo” especialmente para o período 2006-7 a 2010. O
segundo governo do presidente Lula foi uma fase de arrancada rumo a um
novo patamar de investimentos públicos e privados. Por exemplo, houve
aumento extraordinário do volume de financiamentos concedidos pelo BNDES
para projetos de infraestrutura, tal como mostrado no gráfico 7. Esse
volume mais que dobrou entre 2006 e 2010.
Além disso, segundo dados do BNDES, houve aumento
significativo do número de aquisições de bens de capital financiados por
essa instituição. Por exemplo, como mostra a tabela 2, entre 2007 e
2010, o número de caminhões adquiridos com financiamentos do BNDES
aumentou mais que 200%, o de ônibus, mais que 60%, o de tratores, 90%, o
de guindastes, mais que 240% e o de silos, 360%.
Tabela 2 – Número de unidades de bens de capital (BK) financiadas pelo BNDES por ano período: 2007 a 2010
Depois que a partida foi dada pelo consumo, não foi só o investimento privado que entrou em rota de crescimento. O investimento público passou a desempenhar também um papel especial, de muito destaque no período 2007-2010. Elaborado durante o ano de 2006, mas lançado pelo presidente Lula somente no início de 2007, o Programa de Aceleração do Crescimento (PAC) foi um notável programa de investimentos públicos. Com o PAC, o governo retomou a iniciativa de promover a execução de grandes obras de infraestrutura social, urbana, logística e de energia no país. O Programa foi elaborado como um plano estratégico de resgate do planejamento por parte do governo central e de retomada dos investimentos públicos em setores estruturantes da economia e da sociedade. Fonte: BNDES
Além disso, o PAC teve importância para o país durante a
crise financeira mundial entre 2008 e 2009, garantindo emprego e renda,
auxiliando a continuidade do consumo de bens e serviços, mantendo ativa a
economia e aliviando os efeitos da crise. No ano de 2009, a queda dos
investimentos ocorreu no setor privado. Naquele ano, os investimentos
das três esferas de governo cresceram 4,5% em termos reais, os
investimentos do governo central aumentaram 35,6% e os investimentos das
estatais federais, 29,6% (taxas calculadas com base em Orair, 2016).
No período 2007-2010, a taxa média anual de crescimento do
investimento do governo central foi de 26% e das estatais federais de
23,5%, tal como destacado na tabela 3. Por exemplo, a partir de 2005-6, a
Petrobras iniciou um processo ainda tímido de aumento dos seus
investimentos. Mas quando chegou em 2007, acelerou-os de forma aguda,
saindo de US$ 25,4 bilhões para US$ 45,1 bilhões em 2010, tal como
mostrado no gráfico 8.
Os números do investimento do governo central e das
estatais federais durante o segundo governo Lula são admiráveis quando
comparados com os governos de seu antecessor, Fernando Henrique Cardoso
(FHC), e de sua sucessora, Dilma Rousseff. Os números do segundo governo
Lula são bem superiores aos demais. Quanto ao investimento das
estatais, o melhor número dos outros governantes, conforme a tabela 3,
foi a taxa média anual de crescimento de 3,66% do primeiro governo FHC –
uma taxa seis vezes menor que aquela do segundo governo Lula. Quanto ao
investimento do governo central, o segundo melhor número é do próprio
governo Lula em seu primeiro mandato, que foi de 9,91%.
Tabela 3 - Taxas de crescimento real dos investimentos do Governo Central e das Estatais Federais – em variação % - período: 1995 a 2015
Ficou evidente a atuação dirigida do governo Lula em prol do investimento público o que auxiliou a impulsionar, juntamente com o consumo, o investimento privado. Foi esse conjunto de variáveis em crescimento que proporcionou uma redução drástica do desemprego. A proeminência do investimento público dentro desse conjunto é mais um elemento que faria jus a uma possível caracterização da administração Lula, especialmente o seu segundo governo, como “a era dos investimentos”. Mais um importante indicador: segundo o IBGE, em 2003, a proporção dos investimentos em relação ao PIB era de 16,6%, em 2006, de 17,2%, quando arrancou para 20,5%, em 2010.Fonte: elaborado pelo autor com base nos dados de Orair (2016)
Esse movimento que partiu do estímulo ao consumo e chegou à
realização do investimento e que, posteriormente, se tornou um
movimento de estímulo a ambas as variáveis marcou a política econômica
da administração Lula no seu segundo mandato. É exatamente esse
movimento de política econômica que Keynes valorizou porque considerava
que tal mix deveria coroar o processo, assim como deveria ser mantido
para que o objetivo do pleno emprego pudesse ser alcançado. A simples
recomendação de Keynes foi a seguinte: “existe espaço, portanto, para
ambas as políticas operarem juntas; - promover o investimento e, ao
mesmo tempo, promover o consumo...” (Keynes, 1973, p.325).
Breve comparação internacional
Foi feito um ranking das taxas anuais de crescimento do
investimento e do consumo das famílias para países selecionados no
período 1995 a 2015. Tal comparação pode ser considerada abrangente na
medida em que envolveu 40 países em desenvolvimento e desenvolvidos de
todos os continentes.
O Brasil, como é mostrado no gráfico 9 que se refere à
taxa de crescimento do consumo das famílias, assumiu sua melhor
trajetória e boas posições a partir de 2005. Antes, o Brasil sempre
esteve entre o 21º e 40º lugares (exceto no ano de 1995). Destaque deve
ser dado a taxa de crescimento do ano de 2009 que foi a quarta mais alta
entre os países selecionados. Foi essa taxa que impediu que o Brasil
tivesse uma recessão aguda devido à crise financeira americana.
Como é mostrado no gráfico 10, que se refere à taxa de
crescimento do investimento, o Brasil alcançou suas melhores posições
exatamente no período de 2007 a 2010. Nessa fase, sempre esteve entre os
dez países que tiveram as maiores taxas anuais de crescimento do
investimento. Embora tenha ocorrido contração do investimento em 2009,
tal contração foi bastante branda quando comparada com os demais países
selecionados.
Ainda que sujeita a imprecisões, a comparação
internacional aqui apresentada corrobora os resultados encontrados
anteriormente que mostraram uma partida inicial dada pelo consumo que
foi acompanhada, posteriormente, por uma arrancada notável do
investimento. A partir de 2007, taxas de crescimento do consumo foram
acompanhadas por taxas de crescimento extraordinárias do investimento.
Observando os dois gráficos (9 e 10) conjuntamente, pode-se constatar
que em 2005 e 2006 as taxas de crescimento do consumo das famílias já
tinham alcançado posições de destaque no ranking internacional. Mas, só
em seguida, em 2007, as taxas de crescimento do investimento atingiram
posições mais elevadas. Em outras palavras, primeiro cresceu o consumo,
depois, o investimento.
Considerações finais
Para a descoberta do conhecimento, rótulos podem ter
efeito de retardamento. Muitos podem ficar aprisionados a rótulos. E, a
partir daí se sentiriam saciados e não ingressariam na aventura de um
processo de pesquisa. Muito melhor que rótulos são as análises, os
estudos e as pesquisas. Rótulos são recursos que estão no âmbito da
agitação e da propaganda. Rótulos, por definição, estão distantes dos
estudos investigativos.
O rótulo “ a era do consumo” dos governos Lula –
apresentado com o falso subtítulo do excesso de endividamento das
famílias – é inadequado. Mais do que qualquer rótulo, vale a revelação
das minúcias do processo econômico e social. Foi mostrado que foi
adotado no Brasil uma prescrição keynesiana pouco conhecida. Uma
dinâmica que partiu do estímulo ao consumo daqueles que possuem baixa
renda, mas que chegou ao investimento e reduziu o desemprego de forma
drástica. Consolidou-se um modelo de estimulo ao consumo, elevação com
taxas vigorosas do investimento público e crescimento do investimento
privado.
Muito mais do que interpretações ligeiras, vale a análise
do padrão de endividamento das famílias. Foi visto que o grau de
endividamento cresceu dobrando de volume. Contudo, tal quantidade ainda é
muito baixa em relação à média internacional. Por outro lado, há uma
elevada parcela dos rendimentos comprometida com o pagamento de dívidas,
diferente do padrão internacional que é bem mais baixo. Isso ocorre no
Brasil porque existe um grande peso do pagamento de juros dentro da
parcela de rendimentos reservada ao pagamento de dívidas.
A elevação dos juros durante o ano de 2011 fez aumentar a
parcela comprometida dos rendimentos das famílias para o pagamento de
dívidas. Esse aumento, provavelmente, fez reduzir a taxa de crescimento
do consumo em 2011 que foi consideravelmente menor que a taxa de 2010. A
desaceleração da taxa de crescimento do produto em 2011 pode ter
ocorrido em função da queda da taxa de consumo e também da queda do
investimento público. Portanto, não foi o excesso de endividamento que
fez com quem as famílias reduzissem a taxa de crescimento do consumo,
mas sim, e provavelmente, a elevação da taxa de juros básica da economia
que elevou todas as demais taxas de juros de empréstimos bancários.
Definitivamente, os anos 2007-2010 conformaram um período
muito rico para a análise econômica. Tal período não pode ser rotulado
de “a era do consumo” e do excessivo endividamento das famílias. Menos
impreciso, embora longe do ideal, é o rótulo “a era dos investimentos”.
Afinal, como dizia Keynes, é melhor estar aproximadamente certo do que
precisamente errado.
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