“[Os homens] viviam dispersos pelo mundo e não existiam cidades. Apesar de possuírem a sabedoria técnica, seu conhecimento não era suficiente para proteger-se contra as feras. Tentavam reunir-se e fundar cidades para se protegerem das feras, porém se atacavam uns aos outros, pois faltava a ‘sabedoria política’. Então Zeus, para que a raça humana não se extinguisse, enviou Hermes para distribuir a justiça e a prudência, a todos os humanos, para que houvesse ordem e amizade nas cidades.”
(Mito de Prometeu, segundo Platão, no “Protágoras”).
Se a baliza do nosso discernimento nas eleições presidenciais de 2018 no Brasil for o marco dos direitos humanos, não há margem para hesitação: Fernando Haddad é a única saída. Não que seja o ideal. O partido que o carrega, o PT, padece de males conhecidos, como os afagos que distribui a regimes ditatoriais e a incapacidade crônica de identificar e punir aqueles que, dentro da legenda e da máquina no Estado, praticaram atos de corrupção.
O PT é um problemaço. Mais ao final deste artigo, vou esmiuçar esse problemaço, mas, antes, há assuntos mais prementes a tratar. O outro candidato, Jair Bolsonaro, encerra ameaças mais desestruturantes. Ele se apresenta como a negação furiosa dos esforços que as democracias ocidentais e a ONU empenharam, desde meados do século XX, para assegurar a dignidade das pessoas, tanto no plano do direito quanto no plano concreto dos fatos. Jair Bolsonaro rejeita o marco civilizatório almejado pelos valores do humanismo. Sua vitória tende a sitiar a civilização e dar vazão a pulsões desumanas.
Para começar, procurarei articular em termos lógicos o que muitos já perceberam de forma intuitiva. Nos três primeiros tópicos, vou mostrar por que, em pelos menos três frentes distintas, a pregação de Bolsonaro – expoente de falanges disformes que atuam como vetores ainda brutos do que poderíamos chamar de extrema direita brasileira – lança infâmias contra a cultura dos direitos humanos. No quarto, tratarei da omissão das lideranças de centro, que postergam o anúncio de apoio ao único candidato que tem compromisso com os direitos humanos. No quinto, explorarei brevemente as dificuldades do PT.
1 – LINGUAGEM: O PALAVREADO INFAMANTE
Comecemos pela linguagem. Em suas incontáveis perorações, muitas vezes proclamadas aos berros, Jair Bolsonaro insulta mulheres (como quando afirmou que não estupraria a parlamentar Maria do Rosário porque ela “não merecia”) e faz apologia da tortura (como no dia 17 de abril de 2016, na sessão da Câmara dos Deputados que deu admissibilidade ao processo de impeachment contra a então presidente Dilma Rousseff, quando ele, ao declarar seu voto a favor do impeachment, homenageou o torturador Brilhante Ustra e disse que esse torturador era “o pavor de Dilma Rousseff”). Não satisfeito, ofende quilombolas (que, segundo o candidato, não serviriam nem para “procriar”) e desfere rajadas de desaforos contra gays, militantes de esquerda, intelectuais, gente de imprensa e tantos outros.
Nesses casos, Bolsonaro e seus seguidores desensinam o que é democracia. Para eles, a democracia se resume à prevalência – mesmo que um pouquinho à força – da vontade da maioria. Propositadamente, fazem esquecer que a democracia, além de observar e seguir a vontade da maioria nas decisões coletivas, protege, com o mesmo vigor, os direitos das minorias e as garantias individuais. Bolsonaro fala como quem quer destruir a cultura dos direitos humanos.
Na política do nosso tempo, a ação se tece por meio das palavras. Se o discurso emula preconceito, ódio e intolerância, a ação que dele decorrer se traduzirá em atos de ódio e intolerância – o que, aliás, já temos notado (mais sobre isso no tópico 3). Os desaforos pronunciados na campanha da extrema direita – que, aliás, vem se estendendo desde, pelo menos, 2013 – devem ser interpretados como atos políticos de ódio, com a finalidade de inviabilizar a convivência respeitosa entre as pessoas e os grupos sociais.
Vociferar em impropérios contra a dignidade de pessoas humanas equivale agredi-las com violência. O direito positivo já assimilou há tempos essa obviedade. Acontece que, a toda hora, deparamos com argumentos extremistas (de direita) que tentam fazer pouco das declarações de Bolsonaro, alegando que o candidato é apenas pouco polido e demasiado franco no seu modo de falar. No fundo, ele seria gente da paz. Alegam que os atos do eventual governante Bolsonaro não seguiriam as palavras do candidato Bolsonaro. Atenção para esse tipo de desculpa; ela é mentirosa e mal-intencionada. Um líder político é aquilo que ele fala, assim como um eleitor é aquele em quem ele vota.
Não custa lembrar a “Declaração de Princípios sobre a Tolerância”, aprovada pela 28ª Conferência Geral da UNESCO, em Paris, no dia 16 de novembro de 1995. No preâmbulo do documento, os estados-membros chamam a atenção para a horror em que se converteu a intolerância. Eles se declaram “alarmados com a intensificação atual da intolerância, da violência, do terrorismo, da xenofobia, do nacionalismo agressivo, do racismo, do antissemitismo, da exclusão, da marginalização e da discriminação contra minorias étnicas, religiosas e linguísticas, dos refugiados, dos trabalhadores migrantes, dos imigrantes e dos grupos vulneráveis da sociedade e também pelo aumento dos atos de violência e intimidação cometidos contra pessoas que exercem sua liberdade de opinião e de expressão, todos comportamentos que ameaçam a consolidação da paz e da democracia no plano nacional e internacional e constituem obstáculos para o desenvolvimento”.
Nessa declaração histórica, estabelece-se uma relação direta entre a cultura da paz e a comunicação social. Um padrão respeitoso de comunicação resulta num padrão de convivência pacífica e respeitosa entre as pessoas. Se a comunicação não observa os valores dos direitos humanos, põe em risco a convivência respeitosa. É assim que a tolerância, segundo a Unesco, só se pode construir a partir de uma comunicação que não agrida e que acolha os diferentes.
Em seu artigo primeiro, a Declaração explicita ainda mais a relação direta entre padrões de discurso e padrões de tolerância:
“A tolerância é o respeito, a aceitação e o apreço da riqueza e da diversidade das culturas de nosso mundo, de nossos modos de expressão e de nossas maneiras de exprimir nossa qualidade de seres humanos. É fomentada pelo conhecimento, a abertura de espírito, a comunicação e a liberdade de pensamento, de consciência e de crença. A tolerância é a harmonia na diferença. Não só é um dever de ordem ética; é igualmente uma necessidade política e jurídica. A tolerância é uma virtude que torna a paz possível e contribui para substituir uma cultura de guerra por uma cultura de paz.”
Se partirmos dessa chave conceitual, concluiremos que a maior parte das manifestações de Bolsonaro e suas formas de comunicação atentam contra a cultura da paz e da tolerância. Logo, atentam contra os direitos humanos.
2 – HISTÓRIA: O ASSASSINATO DA MEMÓRIA
O segundo flanco pelo qual o candidato extremista percebeu que pode fazer sangrar o nosso precário repertório de direitos humanos é a dimensão da memória. A sua fala tem na alça de mira os fundamentos históricos sobre os quais se alicerçam o pacto que resultou na Constituição de 1988. O objetivo é explodir o legado histórico – a memória coletiva – sobre o qual se assentou a nossa democracia.
No ponto de partida da democracia brasileira contemporânea, na sua gênese, a nação se reencontrou em torno de um consenso: o regime militar, que se estendeu de 1964 a 1985, usurpou o poder político e instaurou uma ditadura baseada na violação continuada de direitos humanos. O consenso inicial foi muito simples e claro: ele consistiu em chamar de ditadura a ditadura. Então, os brasileiros reconheceram a necessidade de uma nova Constituição – a “Constituição Cidadã” de 1988 – para consagrar a liberdade plena (com a proibição da censura), a criminalização da tortura, o instituto do habeas corpus, os direitos das minorias, as garantias individuais. Chamando de ditadura a ditadura, o pacto que construiu a democracia presente no Brasil se definiu também como um ato de recusa a qualquer forma de ditadura.
É essa memória, essa base histórica, que o discurso de Bolsonaro procura desestruturar. Seu proselitismo militarizado glorifica a ditadura militar e procura eternizar suas causas. Tanto é assim que a articulação da oratória de “restauração” se dá nos exatos moldes discursivos adotados pelos que usurparam o poder político entre 1964 e 1965. Segundo diziam, a violência estatal empregada contra cidadãos desarmados – violência que incluiu a tortura – era o recurso necessário para vencer uma guerra contra o comunismo internacional em terras brasileiras. Eram tempos da Guerra Fria e da subsequente Doutrina de Segurança Nacional, que via num jovem universitário do interior, com 22 ou 23 anos de idade, a fisionomia do temível inimigo externo.
Hoje, Bolsonaro prolonga a mesma ladainha. Diz que a ditadura não foi tão ditatorial assim (desgraçadamente, ele não é o único a pronunciar o embuste; há outros que batem o martelo na mesma tecla). Insiste, de forma explícita ou por alusões elípticas, que a ditadura e seus instrumentos de repressão não golpearam a democracia, mas salvaram a democracia. Para ele, quem foi antidemocrático foram os “comunistas” que a ditadura combateu, prendeu, matou e venceu.
A extrema direita entrou em guerra contra a memória nacional. Ela não suporta, especialmente, o resultado do trabalho da Comissão Nacional da Verdade. Quer que nos esqueçamos de que a ditadura foi uma ditadura. Por todos os meios, inclusive este, tenta enxovalhar o significado dos direitos humanos.
3 – VIOLÊNCIA: ARREMEDOS DE FASCISMOS NAS RUAS
Em terceiro lugar, devo fazer referência a um, digamos, “fascismo incipiente”. É certo que não se pode caracterizar Bolsonaro como fascista. Tal afirmação pecaria por ser, no mínimo, precipitada. Como o personagem ainda não exerceu o poder, não dispomos de elementos para defini-lo conclusivamente como fascista. Não se sabe, até aqui, de que forma ele amarraria (ou não) relações de cooptação entre o Estado e os sindicatos. Não sabemos qual seria sua escola de nacionalismo. Não sabemos em que escala, em que grau de capilaridade e com que persistência um governo seu reprimiria os movimentos de oposição. Nesse quesito, as perguntas ainda não foram respondidas pelos fatos.
Bolsonaro reforçaria os meios de controle do Estado sobre a vida cultural e sobre o mercado? Poria rédeas curtas na comunicação social? Nada disso se sabe. Portanto, não se pode dizer se ele é – ou seria – um governante de perfil fascista.
Mas, desde já, podemos afirmar, com segurança, que o estilo de arregimentação de seguidores que Bolsonaro põe em marcha condiz – até mesmo no detalhe do mau gosto – com a cartilha fascista de fundir força bruta e atividade política. A força bruta bolsonarista está aí, nas ruas, de modo escancarado. Está aí a formação de gangues que se identificam partidariamente e espalham terror por meio da banalização de agressões físicas no bojo da campanha eleitoral. Nesse ponto, o bolsonarismo é uma cópia escarrada, embora mais rudimentar e primária, dos Camisas Pretas que grassaram na Itália dos anos 1920. Logo, ainda que seja precipitado denominar de fascista o estilo do candidato da extrema direita, já se pode observar que há analogias entre o modo (selvagem) de agir dos comandados de Mussolini e alguns cabos eleitorais a serviço do presidenciável do PSL.
O discurso raivoso do candidato anima a ira das gangues que o idolatram. Além das palavras, Bolsonaro emprega um gestual belicoso e uma linguagem corporal que vai na mesma linha. Na sua coreografia personalíssima, encena o manejo de diversos tipos de armas, mesmo quando vai cumprimentar uma criança. Ele capricha nas mímicas, como quem atira com um revólver cujo cano é o dedo indicador, ou como quem dispara rajadas de uma metralhadora pesada.
Dia desses, fez trepidar os braços enquanto empunhava o tripé de uma câmera de vídeo, como se aquele tripé fosse uma supermetranca, dessas que derrubam avião. Aí, falando num microfone enquanto “atirava” com sua metralhadora imaginária, fez uma de suas piadas grostescas: disse que era preciso “fuzilar a petralhada”. Com essa performance própria de esquadrão da morte, o político da extrema direita autoriza, encoraja e abençoa a agressividade verbal ou física.
A nota macabra dessa escalada de bestialidades surgiu de modo inesperado, com o atentado que quase tirou a vida dele próprio, Bolsonaro. Foi na tarde de 6 de setembro, durante uma manifestação em que era carregado nos ombros de seus apoiadores, em meio a uma pequena multidão, no centro da cidade mineira de Juiz de Fora. Um golpe de faca o alcançou na barriga, mas não conseguiu matá-lo. Para sorte do país e da democracia, Bolsonaro sobreviveu. A onda de violência, no entanto, seguiu seu curso, ganhando mais intensidade. Recentemente, o candidato chegou a ensaiar um recuo: disse que condenava qualquer prática criminosa de seus eleitores. Já é tarde. A normalidade institucional se encontra em xeque no Brasil. Uma epidemia de agressividade cega a espreita.
4 – O SOFISMA DA EQUIVALÊNCIA
Muitos votam em Bolsonaro por desinformação, iludidos por um doutrinarismo moralizador sem maiores fundamentações. Outros porém, embora tenham plena clareza sobre o risco que ele representa, teimam em permanecer em cima do muro. Temos aí um dos capítulos mais preocupantes do presente.
Omitir-se diante da ameaça que Bolsonaro traz para a ordem democrática equivale a coonestar com a destruição deliberada da nossa – incipiente, embrionária – cultura de paz e de respeito pelas minorias e pelos mais frágeis. Tudo bem que votar no PT não é fácil para milhões de eleitores. O PT silencia diante de ditaduras como a de Cuba e a da Venezuela.
No mesmo diapasão, o PCdoB, partido de Manuela D’ávila, candidata a vice-presidente na chapa de Haddad, jamais reconheceu publicamente os crimes de seu maior inspirador, o genocida totalitário Joseph Stalin, ditador da União Soviética entre 1924 e 1953. Ainda hoje, Stalin se presta à idolatria de muitos dos camaradas de Manuela, para os quais ele teria sido um estadista genial, embora hoje seja injustiçado por uma História escrita por “intelectuais burgueses” ou “revisionistas traidores”.
Pior ainda: nem o PT, nem o PC do B, nenhum dos dois pronunciou uma só reprimenda contra a corrupção comprovada nos governos Lula e Dilma. Tudo isso é uma pequena tragédia, uma pequena tragédia moral e ideológica. Voltarei a esse tema no final deste texto, mas, antes disso, devo demarcar um erro mais sério, porque de consequências mais imediatas e mais irremediáveis, que devemos e podemos corrigir no curto prazo: trata-se do erro histórico das lideranças de centro que se esquivam do dever de impedir a vitória da extrema direita.
O silêncio do PT sobre as ditaduras vizinhas ou sobre os atos de corrupção praticados por seus filiados já causou boa parte dos estragos que poderia ter causado; o mutismo do PCdoB sobre os crimes de Stalin é virtualmente irrelevante. Quanto à omissão das lideranças políticas de centro em não rejeitar claramente a alternativa Bolsonaro e não chamar voto em Haddad, essa poderá abrir a porteira para que tenhamos um presidente cujos compromissos com a ordem democrática são, para dizer o mínimo, desconhecidos. Por isso, antes de tratar das mazelas do PT, convém expor e denunciar a irresponsabilidade dessa omissão.
Para alguns expoentes de agremiações de centro, o extremismo de Bolsonaro seria equivalente ao “extremismo” que apontam no PT. Eles argumentam que Bolsonaro seria um mal simétrico ao representado pela candidatura de Haddad.
Trata-se de um sofisma, uma tergiversação. A partir dessa prestidigitação retórica, essas lideranças se sentem autorizadas a declarar “neutras” no segundo turno. Parecem acreditar que haveria um ponto de equilíbrio entre as duas candidaturas, como se pudesse existir um ponto de equilíbrio entre um ideário autoritário e o regime democrático.
A “neutralidade”, no momento presente, poderá determinar um desastre nacional de proporções ainda imprevisíveis. Não obstante, algumas lideranças de centro e alguns dos chamados “formadores de opinião”, como articulistas e editorialistas na imprensa profissional, se aferrem a repetir que Bolsonaro e Haddad se equivalem, que ambos são extremistas, que nenhum dos dois ajuda em nada. Fingem não saber que Bolsonaro está fora do campo democrático e que Haddad, apesar dos problemas que carrega, é o único candidato comprometido com as instituições democráticas.
Bolsonaro está claramente fora do campo democrático quando sabota a comunicação política baseada no respeito aos semelhantes, quando insiste em promover o esquecimento sobre o significado da ditadura militar, quando estimula a disseminação do discurso do ódio. E não só aí. Bolsonaro se põe também fora do campo democrático quando amontoa acusações contundentes, mas sem provas, sobre a confiabilidade das urnas eletrônicas, jogando no esgoto, e de roldão, a credibilidade das autoridades da Justiça Eleitoral. Nesses momentos, ele parece dizer “ou a democracia serve para me conferir o poder ou não servirá de coisa alguma”. Aliás, por várias vezes ele afirmou que não reconhecerá a vitória de outro candidato que não seja ele.
Bolsonaro também se coloca fora do campo democrático quando investe contra a legitimidade dos adversários, negando-se a reconhecer neles as credenciais para participar da disputa eleitoral. Trata-os como inimigos do Brasil e como bandidos. Chama a todos, indistintamente, de corruptos e de ladrões. Nesses momentos, transmite a seus seguidores a convicção de que todo o sistema político no Brasil é uma farsa e que, portanto, a democracia não passa de um teatro fajuto.
Bolsonaro se situa fora do campo democrático quando põe um sinal de igual entre as palavras “política” e “corrupção” e quando dá curso à ideia de que ninguém na política é honesto. Ele induz seus interlocutores a concluir que a política que temos é incapaz de abrigar canais virtuosos de entendimento ou processos decisórios limpos. Por meio dessa pregação, prepara os que o chamam de “mito” para que venham a aceitar, no futuro próximo, a tese de que será necessária uma força que venha de fora da política para resolver os problemas que a política não consegue superar.
Essa “força de fora” poderia ser um Judiciário partidarizado, a repressão política pura e simples, a intimidação física promovida pelas gangues de esquina ou qualquer outro rasgo de barbárie. Bolsonaro, nesse ponto, é um agente das trevas: o oposto da liberdade iluminista. Ao estimular delírios autoritários, ao olhar com nostalgia para o tempo da ditadura militar, ele se apresenta, por suas próprias palavras, como um ator político situado fora do campo democrático.
Com o PT de Haddad e com o PCdoB de Manuela D’Ávila não é assim. Os dois partidos sofrem de atrasos graves de cultura política, mas não recusam o campo democrático. Não se alijam dele. Ao contrário: são partícipes da construção da democracia meio capenga que estamos erguendo aos poucos. Muito se fala sobre a corrupção no PT. Alguns chamam o partido de “quadrilha”. Mas isso, a ocorrência de todos esses lastimáveis episódios de corrupção, não transformam o PT numa força que investe contra a ordem democrática.
A corrupção nos governos do PT alcançou níveis escabrosos, como provavelmente “nunca antes na história deste país” – isso é fato. Também é fato que o PT jamais reconheceu os crimes de corrupção praticados por alguns de seus mais notórios dirigentes, embora eles tenham sido condenados por provas materiais irrefutáveis. Mesmo assim, o PT não está fora do campo democrático. Nem mesmo esses erros – e esses crimes – bastam para caracterizá-lo como um partido que rejeita o campo democrático.
É muito fácil mostrar por quê. Todos os petistas acusados de corrupção, lavagem de dinheiro, formação de quadrilha e outros crimes responderam e respondem a seus processos nos termos da lei. Os que sofreram condenações, cumprem suas penas. Apenas um tentou fugir, um que era coadjuvante, e esse um já voltou. Os demais recorrem de suas condenações, sempre nos termos da lei. Nenhum pediu asilo por meio de manobras estranhas, nenhum deixou de cumprir todas as ordens judiciais, mesmo as comprovadamente abusivas. Nenhum petista minou o funcionamento da Justiça. Os que cumprem pena não podem exercer cargos públicos. As decisões judiciais foram acatadas pelo conjunto do partido. A legenda reclama – “jus esperneandi” – mas acata. O partido se encontra rigorosamente enquadrado pelo Estado de Direito. O argumento da corrupção pode ser válido para criticar o partido, mas não vale para afirmar que o PT é uma ameaça à democracia.
Também por essa razão, o candidato Haddad não pode ser tratado como se encarnasse um risco equivalente (de sinal invertido) ao risco representado pelo candidato Bolsonaro. Haddad não tem parte com esse passado de corrupção e nunca fez insinuações que enaltecessem um regime de exceção – no Brasil ou fora do Brasil.
Não há, portanto, qualquer justificativa lógica para que lideranças de centro lavem as mãos. O programa de Haddad não rompe com o Estado de Direito em nenhuma linha. As propostas esdrúxulas vêm do lado de Bolsonaro.
A proposta de convocar juristas “notáveis” para escrever uma nova Constituição – uma proposta de ruptura com a ordem democrática – é da autoria do general Hamilton Mourão, vice de Bolsonaro (o próprio candidato o desmentiu, mas o mal-estar persistiu). A proposta de mudar as regras de composição do Supremo Tribunal Federal, meio à la Venezuela, veio do mesmo general. A propósito, há mais semelhanças entre Bolsonaro e Hugo Chávez do que entre Haddad e Chávez. Em 1999, Bolsonaro elogiou o estilo pouco afável de Chávez. Disse que o líder militar venezuelano era uma “esperança para a América Latina” e declarou esperar que “a filosofia dele chegasse ao Brasil”.
A omissão do centro, sua insistência em se esquivar do dever de apoiar Haddad, deixa no ar um prenúncio de reviver pesadelos do século XX. Não quero aqui falar das eleições da Alemanha dos anos 1930, quando o Partido Comunista (KPD) se recusou a se somar ao Partido Social-Democrata (SPD), com o resultado conhecido. Não seria razoável traçar um paralelo entre os nazistas dos anos 1930 e a extrema direita no Brasil de hoje, mas o tema da irresponsabilidade política deve ser posto em destaque.
Na escolha entre Bolsonaro e Haddad, não há sustentação para se dizer que ambos se equivalem. Se as lideranças de centro não forem capazes de agir com grandeza, a nação mergulhará num cenário de incerteza ainda pior do que este em que se encontra hoje. Essas lideranças devem deixar de lado seus ressentimentos, abrir mão de seus interesses imediatos e apoiar pública e enfaticamente a candidatura de Haddad – que, de seu lado, vem procurando sinalizar abertura para dialogar. É hora.
5 – O PT, SILÊNCIOS ENSURDECEDORES
Agora, enfrentemos as questões mais sensíveis do PT. O mal do partido é, por assim dizer, uma afecção do espírito. Ou, para me valer de outra imagem, uma somatização que fez adoecer a sua cultura identitária.
Os problemas do PT aparecem com estridência em dois mutismos ensurdecedores: o primeiro aparece no silêncio obsequioso em relação aos crimes de corrupção praticados por integrantes de suas fileiras; o segundo é o ar de paisagem que o partido adota quando o assunto são as violações de direitos humanos praticados por ditaduras “amigas”.
Se o corrupto ou o ditador se proclamam “de esquerda”, será endeusado. Fidel Castro, no tempo em que desempenhava sua função de tirano, chegou ao cúmulo de mandar encarcerar homossexuais em campos de concentração. O que o PT diz a respeito? Nada. Hoje, paramilitares que apoiam Ortega atiram contra passeatas em Manágua. Matam gente. Para o PT, tudo bem.
Os dois mutismos inspiram enorme desconfiança entre os eleitores. Com razão. O PT finge que não nota. Eis aí a sua pequena tragédia. Os dois mutismos denunciam um esgarçamento do compromisso radical que o PT deveria ter com a cultura de direitos humanos – esgarçamento que o PT finge que não existe. Por que não tratar disso, e logo?
Comecemos pela corrupção. Embora não seja tão direta, existe uma relação essencial entre a permissividade com práticas corruptas e o desprezo pelos direitos humanos. Numa democracia, a subtração dos recursos públicos para fins privados – lembremos que os fins partidários são fins privados, pois os partidos são entidades privadas – atenta contra a dignidade humana. Isso se dá por pelo menos dois motivos. Em primeiro lugar, porque, desviando investimentos de áreas como a educação e a saúde, a corrupção condena ao abandono seres humanos que padecerão sem cuidados básicos a que teriam direito (assegurados pela Declaração Universal de 1948).
Mas a consequência mais danosa que a corrupção acarreta para o projeto de uma sociedade justa e solidária não está no roubo propriamente dito, e sim no desvirtuamento da finalidade da política em geral e da administração pública em particular. Este é o segundo motivo – de implicações muito mais perversas que o primeiro. A formação de quadrilhas com o propósito de pilhar o dinheiro dos cidadãos, à sombra do Estado e dos partidos distorce totalmente o organograma do serviço público: imprime ao funcionamento do governo e de outros poderes da República um feixe de finalidades estranhas ou mesmo antagônicas aos fins precípuos estabelecidos na Constituição.
O negócio da corrupção, que hoje tem a complexidade e a sofisticação de um conglomerado multinacional, faz com que a máquina pública inverta sua razão de ser. Em vez de trabalhar para o bem comum, ela passa a operar, sistemática e metodicamente, para interesses privados que aprisionam e exploram o bem comum. É nesse sentido que a corrupção, além de corromper seus agentes, corrompe o poder – e este, corrompido, passa a combater surdamente todos os postulados dos direitos humanos.
O negócio da corrupção, instalado em franjas do Estado, ou mesmo no seu cerne, sufoca os princípios da transparência e da publicidade, o direito à informação, a liberdade de expressão, o funcionamento da Justiça, a segurança jurídica e tantos outros pilares do Estado de Direito. Faz adoecerem a República e a democracia. Não precisamos ir longe para ver tudo isso acontecer. Basta olhar para o caso brasileiro. Que o PT não assuma a sua responsabilidade nisso é algo de aterrador.
Em lugar de adotar postura adulta, madura e responsável, em vez de reconhecer os crimes e tomar providências internas para que eles não se repitam, o PT se refugia numa fantasia de martírio, numa via sacra profana, num melodrama de expiação em que delega o papel de vítima para seus cardeais caídos. Na coreografia desse ritual lacrimoso e fake, entram soquinhos no ar, palavras de ordem com voz grossa e uma certa (ou mesmo errada) mise en scene de orgulho másculo ferido. É uma lástima, em dois sentidos. No primeiro sentido, é uma lástima porque é uma lamúria. No segundo sentido, é uma lástima porque vem a público como atestado de cinismo.
A veneração petista pelos seus corruptos, um culto servil e humilhante, contribuiu para que a política se desmoralizasse aos olhos da massa. Essa veneração, por sinal, aprofundou os níveis de despolitização da sociedade. Não foi apenas a esquerda que saiu desmoralizada do terremoto ético que atingiu a sociedade brasileira de 2005 para cá: foi a própria política. O PT tem – e deve assumir que tem – responsabilidade direta pelo estado atual de deterioração e de desmoralização da política.
A mania petista de culpar o juiz Sergio Moro pela crise – o velho recurso escapista de jogar a culpa no outro – agravou a desmoralização da política. Só os fanáticos não enxergam. Promotores e magistrados são funcionários públicos. Embora tenham abusado de suas prerrogativas em algumas das etapas da grande debacle, os representantes do Ministério Público e os juízes, como Joaquim Barbosa ou Sergio Moro, cumpriram suas funções constitucionais. Muito mais destruidores do que os excessos de promotores e juízes foram os agentes de corrupção e, em maior escala, a recusa obstinada do PT e de outros partidos em admitir os crimes.
A letargia ética dos partidos passou ao povo a imagem de uma cumplicidade corporativista incondicional com os corruptos, uma “omertà” fora de lugar. Isso, sim, desmoralizou a esquerda e desmoralizou a política. Desmoralizou tanto que abriu a deixa para a entrada em cena de aventureiros e franco-atiradores, como o personagem de Bolsonaro. Sejamos objetivos: ele só ganhou projeção que ganhou porque soube surfar na onda de raiva difusa contra os políticos, uma raiva que já se encontrava instalada no corpo social.
Bolsonaro teve a arte – recuso-me a dizer a “virtu” – de se lançar como representante do asco, do nojo contra os políticos, embora ele mesmo, Bolsonaro, deputado federal desde 1991, seja um político profissional como os demais. Ele teve a sorte – recuso-me a dizer a “fortuna” – de se beneficiar do imobilismo ético dos partidos. Aproveitou a brecha e vestiu sua melhor fantasia de justiceiro moralista. É terrível constatar isso agora, mas o PT ajudou a acender os holofotes para Bolsonaro.
Não foi só o PT, que fique bem claro. Todos os partidos falharam aí. Da imensa maioria deles, porém, ninguém esperava coisa alguma. No MDB, por exemplo, essa ameba ideológica do tamanho do continente, nada se busca que não seja cargo ou dinheiro. Mas um outro partido, além do PT, poderia ter feito diferença. Trata-se do PSDB, uma agremiação que tem (ou tinha) mais identidade. Quando estouraram as denúncias de ladroagem mais recentes, o que fizeram os tucanos mais vistosos? No máximo, quando constrangidos, fingiram que não conheciam os seus corruptos mais vexatórios. Mudaram de restaurante. De resto, o PSDB deu legenda para Aécio Neves se eleger deputado federal por Minas Gerais. Isso jogou uma bacia amazônica no moinho da desmoralização.
Não foi só o PT – mas com o PT foi pior. Claro que não foram os petistas os inventores desse ramo lucrativos de desviar dinheiro público. Claro que a gatunagem nas repartições públicas é mais antiga que as capitanias hereditárias. Mesmo assim, na desmoralização geral, a responsabilidade específica do PT foi maior. Por ter uma história mais ligada aos direitos humanos e ao combate à corrupção, dele se esperava mais.
Quando passou pelo governo, o PT deixou lá dentro um legado de malfeitos que ainda clamam por arrependimento público e por providências saneadoras. Com o PT no poder, as engrenagens do ilícito, em sinergia silente e eficiente entre os interesses partidários e os filamentos ocultos da administração púbica, alcançaram patamares de maestria e engenhosidade que fizeram corar os mais inescrupulosos fantasmas do Brasil colônia. Ao acobertar sua própria banda podre, o PT voltou as costas para o seu passado, escondendo-se no truque de acusar de golpistas qualquer um que lhe pedisse explicações. Esse talvez tenha sido o capítulo mais funesto.
Daí em diante, parcelas cada vez mais densas da sociedade brasileira foram perdendo o respeito. Muitos se perguntam: “Voltando ao poder, ainda que seus maiores criminosos estejam presos, o PT reincidirá nas mesmas ilicitudes?”. Como o partido não fez a crítica de seu passado – ou, para usar aqui o léxico mais caro à tradição de esquerda, não fez a sua “autocrítica” –, não tem uma resposta para essa interrogação legítima de eleitores que poderiam votar em Haddad.
6 – A CULTURA POLÍTICA DA ESQUERDA
Como mudar essa postura? É possível mudar? Em termos mais amplos, a cultura da esquerda no Brasil pode se reciclar e se renovar? A ver. Com alguma timidez, Haddad deixa entrever, nas entrelinhas de seus pronunciamentos, que tem apreço pela mudança de mentalidade. Deverá ser mais claro nos próximos dias – e, depois, qualquer que seja o resultado eleitoral, deverá ser radicalmente mais claro nos próximos anos. O futuro da democracia no Brasil depende desse aggiornamento.
A subserviência de espírito de muitas das fileiras de esquerda em relação a corruptos-que-dizem-defender-a-causa não é distinta da subserviência que os mesmos atores dedicam aos tiranos-que-dizem-defender-o-socialismo. Ambas têm uma raiz comum. Há um traço de infantilidade aí. Há um lugar estrutural para o papai-que-sabe-mais-do-que-nós, uma crença no senhor que nos guia pelo caminho certo. Há algo de tribal na subserviência intelectual, ou mesmo algo de religioso.
Em outro texto, dei a essa limitação intelectual o nome de “suicídio da consciência”. O fenômeno aparece à esquerda e à direita. É típico de multidões convertidas à adoração de políticos mais ou menos populistas, que prometem combater o establishment e depois se convertem em donos do establishment. Multidões, organizações, seitas ou partidos, desistindo da própria consciência, renunciam à faculdade de exercer com autonomia o juízo de fato: se um fato contraria a linha oficial daquela corrente, daquele partido ou daquele governo, que seja revogado. Ponto. Sujeitadas por um juízo de valor absoluto – a doutrina partidária ou a “razão” de Estado –, as pessoas abrem mão da liberdade de enunciar seu próprio juízo de fato.
Por aí, militantes de causas presumidamente justas gratificam-se em cumprir a ordem de não tomar contato com os fatos proscritos, abdicam da liberdade de conhecer autonomamente a realidade e vangloriam-se da própria covardia como se fosse coragem. É interessante. O “suicídio de consciência”, em sua mecânica, lembra métodos que foram empregados na Igreja Católica medieval, no macarthismo nos Estados Unidos e no stalinismo na União Soviética: o expediente é o veto moral, a vigilância do pensamento.
Quanto aos militantes que suicidam a própria consciência, esses adoram. Experimentam êxtases gozosos. Em estado de “suicídio de consciência”, a militância olha para a esfera pública como quem olha para o território inimigo. O que está fora do partido (o “eles”, o “lado de lá”) é o inimigo. E isso a reconforta. O confinamento do espírito parece reanimá-la.
Emancipar-se desse tipo de “fé” costuma causar dor. Às vezes há traumas nas curvas do caminho. O percurso é tão doloroso como amadurecer, como se tornar adulto, ou, ainda, como descortinar o Princípio de Realidade como contraponto necessário do Princípio de Prazer. Mas não há outra saída. Para entender a virtude do diálogo, tal como ele é preconizado na Declaração de Princípios sobre a Tolerância, da Unesco, o sujeito precisa obrigatoriamente superar o estágio de “suicídio de consciência”.
Dará conta o PT de cumprir essa transição? Pode ser que sim. Ao contrário do que se pensa, o PT já abrigou pensamentos menos ortodoxos, inclusive nos primeiros números da revista Teoria & Debate. Eu me lembro bem. Eu era um dos integrantes do Comitê de Redação, de que participaram também Eder Sader, Alípio Freire, Paulo de Tarso Vensceslau, Ricardo de Azevedo, Maria Rita Kehl e Fernando Haddad. Em 1992, lá se vão 26 anos, o editorial da edição de número 17, ocupando toda a página 1, trouxe críticas frontais à ditadura cubana. Reproduzo a seguir alguns trechos, homenagem a um passado em que se escondem senhas para o futuro.
No fechamento desta edição, fomos surpreendidos pelo paredón cubano, onde foi executado, no dia 21 de janeiro [de 1992], o dissidente Eduardo Díaz Betancourt, condenado por terrorismo. […]
Todos sabemos que a ilha é assunto delicado no âmbito da esquerda brasileira. Embora pareça anacrônico, ainda hoje nos vemos diante de contingências do tipo “você é contra ou a favor de Cuba e de Fidel?”, assim mesmo, uma questão que nos é posta em bloco, de forma irracional. Daí a necessidade que nos impusemos de separar certos alhos de incertos bugalhos – pois eles existem, mesmo dentro da ilha que, para muitos, é sagrada e cercada de ameaças ianques por todos os lados.
Ninguém pode negar o progresso social que adveio à Revolução Cubana. Sobretudo no quadro da América Latina, é notável a dignidade do padrão de vida da população, que tem escolas, hospitais, comida e trabalho, embora conviva com dificuldades econômicas. Lá não existe luxo, com frequência falta conforto, mas os níveis de miséria que vitimam tantos povos nos países atrasados já não se verificam.
Outra história bem diferente são as liberdades democráticas, os direitos humanos. Não podemos tolerar o sacrifício desses valores universais. Nós temos sido contra a instituição da pena de morte no Brasil. Concordar com ela, em Cuba, seria um contra-senso, principalmente neste caso, em que ela foi aplicada a um criminoso político. Argumenta-se que a maior parte da população estava apoiando o fuzilamento, alegação que aceitamos mesmo desprovidos de pesquisas de opinião confiáveis. Mas isso não muda nada. Suponhamos que houvesse um plebiscito no Brasil que consagrasse a pena de morte: isso mudaria nossas convicções? A resposta é não. Mesmo quando uma comunidade inteira mobilizada, e por unanimidade, opta pelo linchamento, isso não o torna mais justo ou mais correto. […]
[Em Cuba] a pena de morte se reveste de autoritarismo político e é animada por ele. O regime de Fidel Castro dá mais uma prova de que não admite divergências. E Fidel teria a oportunidade de comutar a pena, cancelando a execução, o que lhe valeria apoios importantes no mundo inteiro; mas não o fez. […]
Identificamos, aí, uma linha de continuidade do arbítrio. O paredón se vincula à mesma truculência que condena os aidéticos ao confinamento, que mantém presos e exilados de pensamento, que censura as publicações da perestroika. Infelizmente, e somos obrigados a atestar, seria muito difícil fazer uma revista como Teoria & Debate sob aquele regime, uma vez que a critica, a divergência e a problematização da ideologia têm sido impossíveis sob Fidel Castro. É com pesar que repudiamos o paredón, até porque, mesmo entre nós, há aqueles que, na ditadura militar, foram condenados por crimes políticos e aqui estão, hoje, atuando na esfera pública brasileira. Atitudes como este fuzilamento agravam a cada dia a crise política (de consequências cada vez mais ameaçadoras) de Cuba, uma ilha que já foi a inspiração e por vezes o paradeiro dos nossos melhores sonhos de liberdade.
Esse tipo de crítica já teve lugar no PT. Por que não mais? Por que a cultura dos direitos humanos perdeu o vigor naquelas fileiras? Fora do PT, há sinais estimulantes de renovação da cultura de esquerda no Brasil. Fiquemos atentos.
7 – RESSALVAS OBRIGATÓRIAS
Antes de terminar, uma ressalva se faz obrigatória. De modo algum, este artigo se alia ao veneno oportunista com que a extrema direita ataca a esquerda tendo como pretexto os direitos humanos. Boa parte dos direitistas que acusam os petistas de apoiar violações dos direitos humanos em Cuba ou na Venezuela aplaudem abertamente as violações dos direitos humanos cometidas pela ditadura no Brasil – e pela polícia nos bairros pobres do país.
Não é sempre que isso acontece – mas, ocasionalmente, o uso da bandeira dos direitos humanos pela direita bolsonarista é meramente uma manobra de oportunismo. Para eles, o real problema de Cuba ou da Venezuela não tem nada a ver com direitos humanos, mas com um ideário anticapitalista que se abriga nesses países. É com esse ideário que os bolsonaristas não sabem dialogar. É por isso que eles querem varrer Cuba e Venezuela do mapa. A fúria com que eles se voltam contra as experiências socialistas não brota de qualquer sentimento de solidariedade humana, mas da intolerância.
Outro dado a se levar em conta é que, entre os petistas que hoje apoiam os regimes de Cuba ou da Venezuela, muitos experimentaram na carne o sofrimento da tortura quando foram presos políticos em nosso país. Se eles adotam uma posição política retrógrada, hoje, abaixando a cabeça às tiranias, fazem isso por falta de clareza. Para muitos deles, a matriz das análises de conjuntura ainda remonta aos tempos da Guerra Fria, em que o mundo se dividia em dois polos excludentes.
A posição atual de muitos setores da esquerda em relação a esses temas não decorre de um interesse material de classe, mas de um erro de elaboração política, que pode ser corrigido e superado numa mudança de cultura de perfil humanista. O método, nesse caso, deverá ser a discussão política. Mais política e menos obscurantismo.
Qualquer que seja o resultado eleitoral, Haddad se verá instado a promover uma reciclagem profunda na cultura política das fileiras petistas e da esquerda em geral. Biografia para isso ele tem: uma trajetória limpa, idônea, com um lastro humanista de primeira grandeza. Ganhando ou perdendo, sairá dessa eleição como a principal liderança da esquerda brasileira.
O percurso será pedregoso. Para ser eleito presidente, Haddad terá de demonstrar independência em relação ao segundo escalão do partido (o primeiro escalão se integra de uma só pessoa, que é Luiz Inácio Lula da Silva). Se sua independência não for clara, não atrairá a adesão de círculos mais amplos. Ao mesmo tempo, terá de mostrar independência em relação ao próprio Lula. Seguirá prestando reconhecimento à figura de Lula, seu padrinho e amigo – mas, sem prejuízo desse reconhecimento, digno e leal, precisa deixar mais claro que Lula não receberá dele, tornado presidente da República, nenhum tratamento privilegiado.
As linhas divisórias, demarcadoras de independência, são indispensáveis para os dois cenários possíveis. Se eleito, Haddad terá de ser maior que o PT e mais alto do que Lula. Se derrotado, dependerá das mesmas linhas divisórias para renovar a cultura política da esquerda e para liderar a oposição a Bolsonaro, em linha com os princípios dos direitos humanos.
Volto ao Mito de Prometeu, aquele lá em cima, que me serviu de epígrafe. Peço ao leitor que reflita um pouco. Com as artes que receberam de presente de Prometeu, os homens adquiram a habilidade de controlar o fogo e desenvolveram a sabedoria técnica para fazer casas, calçados e muitas outras coisas prodigiosas. Eles só não conseguiam se entender.
Não se reuniam em cidades felizes. Não eram capazes de deixar de se ferir e de se matar, pois a eles faltava o essencial. Então, condoído de tanto padecimento, Zeus presenteou os homens com aquilo que, na mitologia grega, é chamado de “sabedoria política”. Esse é o maior e o mais lindo presente de grego. Foi com ele, com esse presente que, de indivíduos dispersos, ressabiados uns em relação aos outros, os homens se transformaram finalmente em humanidade.
Isso que há na política é a passagem que nos permite superar o estado de violência para um estado de convivência, de respeito, de congraçamento. O diálogo só se viabilizou porque, a mando de Zeus, Hermes levou até aqueles homens conflagrados as virtudes da Justiça e da Prudência. Sem essas dádivas, eles seriam homens, como já eram, mas não seriam, numa palavra, humanos.
Tudo aquilo que nos aparta da política e nos leva para os regimes de força retira de nós o presente que nos transformou em humanidade. O que nos separa da sabedoria política nos deixa menos humanos. Eu não quero dizer com isso que estejamos no limiar de uma mutação como as que aparecem nas páginas da mitologia grega. Seria muito exagero da minha parte. Com isso, apenas quero pedir que Zeus nos ajude.
15 de outubro de 2018
Eugênio Bucci
(Jornalista, professor titular da Escola de Comunicações e Artes da USP, presidente da Radiobrás entre 2003 e 2007)
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