11.11.2018

“Meu livro é sobre a ditadura. Jamais pensei que seria censurado”, diz autor de ‘Meninos Sem Pátria’



Colégio particular do Rio vetou obra após pais reclamarem de doutrinação comunista.

“Papel do professor é mostrar caminhos aos alunos, sem fazer julgamentos. Não cabe aos pais determinar o que deve ser lido. Fatos e história são incontestáveis”, afirma Luiz PuntelLuiz Puntel (Guaxupé, 1949) escreveu seis livros para a Série Vagalume, célebre coleção da literatura brasileira voltada para o público infantojuvenil. Um deles é Meninos Sem Pátria, inspirado na história do jornalista José Maria Rabelo, que, perseguido pela ditadura militar, foi obrigado a se exilar do país com esposa e sete filhos por 16 anos. A obra está em sua 23ª edição e é uma das mais populares da série, com quase 1 milhão de exemplares vendidos – a maioria deles para uso didático em escolas. Nesta semana, um grupo de pais se revoltou com a indicação do livro para alunos do sexto ano do colégio carioca Santo Agostinho, no Leblon, por suposta “doutrinação comunista”. Depois da queixa, a direção decidiu suspender a leitura. Nesta sexta-feira, outro grupo de pais e estudantes protestou em frente ao colégio e fez um abaixo-assinado contra a censura.



Luiz Puntel Meninos Sem Patria doutrinaçao Santo Agostinho
Luiz Puntel, autor do livro “Meninos Sem Pátria”. DIVULGAÇÃO




Mais de três décadas após o lançamento, Puntel rechaça a 
hipótese conspiratória 
atribuída a sua obra, 
explicando que a trama 
não faz juízo de valor sobre posicionamentos ideológicos
 ao constatar que o Brasil 
experimentou a ditadura 
militar. “É um fato histórico”,
 afirma o autor, que hoje 
dá aulas de português, 
redação e oratória em 
Ribeirão Preto, interior de
 São Paulo.
Pergunta. Como recebe a
notícia de que seu livro
acabou vetado em um
colégio do Rio de Janeiro?
Resposta. Eu fiquei surpreso.
 Meu livro é sobre a ditadura,
 um fato histórico. Jamais
imaginei que, em 2018, seria censurado.
Meninos Sem Pátria rendeu mais de 20
edições, sempre com boa aceitação do
público e, principalmente, das escolas,
que o recomendam para leitura didática.
Não faz sentido acusá-lo de doutrinação
ou proselitismo ideológico.
P. A que atribui essa acusação dos pais?
R. O livro é uma obra de ficção baseada
na história do José Maria Rabelo, fundador
 do jornal O Binômio. Ele passou por Chile
 e Bolívia antes de se exilar na França.
No livro, não falo apenas sobre
Conto  

também 
o lado romântico, mostrando um pouco 

como era a dinâmica cultural de Paris dos anos 60. Uma das minhas referências para escrevê-lo foi o livro Memórias das Mulheres do Exílio, que foi lançado no começo da década de 80 e descrevia a vida das famílias que tiveram de sair do país na clandestinidade. Infelizmente, vivemos um tempo de radicalização, notícias falsas e disseminação de mentiras na internet. Isso faz com que as pessoas enxerguem viés político em tudo.
P. Ficou decepcionado com a atitude do colégio, que voltou atrás depois de recomendar o livro?
R. Lamento que um colégio como o Santo Agostinho, reconhecido pelo senso crítico, tenha cedido à pressão de meia dúzia de pais. Eu entendo a posição da diretoria, que deve ter temido um boicote ou ameaça de tirar os alunos da escola, mas isso não é educativo nem democrático. Sem contar que o veto ao livro só piorou as coisas, aumentou a repercussão do caso. Faz lembrar o episódio do Queermuseu, quando três ou quatro imbecis fizeram uma gritaria e o Santander arrepiou, suspendendo a exposição.
P. Movimentos como o “Escola sem Partido” têm incentivado os pais a monitorarem o conteúdo ministrado por professores aos filhos. Acredita que esse patrulhamento pode contribuir para novos casos de censura nas escolas?
R. Eu também sou contra a doutrinação. Acho que o papel do professor é dar informação e mostrar caminhos aos alunos, sem fazer julgamentos. Mas não cabe aos pais determinar o que deve ser lido, muito menos o que não deve. Fatos e história são incontestáveis. Que se leia e se discuta em sala de aula. Já perdi uma aluna, filha de juiz, por contestá-la depois que ela escreveu uma redação dizendo que tinha que armar todo mundo. Tem gente que não aceita que o professor fale sobre transexualidade, já vão logo chamando de comunista. Mas diversidade de gênero cai no vestibular. Como vamos ignorar isso? Essas reações são reflexos de posições radicais, como a que aponta o armamento como solução dos problemas de segurança. Se o Adélio tivesse conseguido comprar uma arma, o Bolsonaro poderia estar morto. O professor, sempre com bom senso, não pode fugir do debate desses temas.
P. A página do Facebook que repercutiu o protesto dos pais contra o seu livro declara apoio a Jair Bolsonaro, que prega que a ditadura deveria ter matado mais gente. Recentemente, Dias Toffoli chamou o golpe militar no Brasil de “movimento de 64”. Declarações como essas ajudam a relativizar o caráter antidemocrático do regime?
R. No Brasil, gostam de dizer que a ditadura não foi tão forte quanto na Argentina ou no Chile. De fato, a repressão nesses países foi pior. Mas isso não significa que não houve ditadura por aqui. Embora o Toffoli chame de “movimento”, houve golpe, perseguição a opositores, prisões arbitrárias, restrição dos direitos civis e fechamento do Congresso. Todas as características de uma ditadura. Nos comentários da página que divulgou a censura no colégio, tinha gente pedindo para queimar exemplares do livro. Isso já aconteceu no Brasil, quando queimaram Capitães de Areia, do Jorge Amado, durante o governo de Getúlio Vargas. É um retrocesso. Eu me orgulho de ter escrito Meninos Sem Pátria, que continua passando de geração em geração. O livro está aí para mostrar que a ditadura realmente existiu.

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