Da voz do próprio comandante vem a público agora, meses depois, o péssimo exemplo dado aos seus iguais e subordinados. Ao pressionar explicitamente o Supremo Tribunal Federal em abril deste ano via twitter para não libertar Lula e assumir que calculou intervir, Villas Bôas descumpriu o decreto 4.346, de 2002, que proíbe aos militares brasileiros envolver-se em assuntos políticos. De quebra, o general descumpriu também o próprio Regulamento Disciplinar do Exército que classifica manifestação política como transgressão disciplinar.
Se não é para cumprir as regras que o próprio Exercito cria internamente e nem também as que o país determina democraticamente, o que então faz um comandante de Exército? Será que já vivemos um regime de exceção, estamos de volta ao pesadelo da ditadura de 1964? Os militares já controlam de novo os poderes da República? Como era de se esperar, o STF, em tese responsável pela defesa da legalidade, calou-se, submisso. Um general ameaça o poder democrático e nenhum poder o reprime.
O país está diante de uma situação de aberta ilegalidade, incompatível com a democracia. Há uma força militar que já não presta mais contas a ninguém. Criou-se um poder que pode tudo, sem rédeas, sem respaldo na Constituição. Os militares precisam se dar mais respeito. Suas aventuras por trilhas no passado que se julgava hoje superado custaram sérios prejuízos ao país, metido então em problemas de toda ordem que a historiografia registra. Agora o comandante do Exército lança enorme interrogação sobre a pureza das decisões do STF, que votou sob pressão e decidiu afastar a possibilidade do candidato mais bem colocado nas pesquisas, o ex-presidente Lula, disputar a eleições. A eleição vista assim assume aspectos de fraude.
Tão preocupante quanto a prensa militar sobre as instituições da República são as circunstâncias que a cercam. Seu exame revela toda uma cadeia tensa de situações e eventos nas disputas de poder e de espaços internos às Forças Armadas, em particular ao Exército, e que a politização extrema criada pela eleição de Jair Bolsonaro agravou ao ponto do descontrole. Deste quadro, em muito submerso, aparecem apenas alguns sinais que se podem associar em busca de certos contornos.
Emerge que, nas declarações à Folha, o general Villas Bôas quis transmitir uma força e um controle de que já não dispõe. Expressou a opinião de uma corporação vergada pela ameaça da presença de Bolsonaro e de seus adeptos internos. Fez questão de delimitar espaços. Quis fazer crer que Bolsonaro há muito tempo não pertence mais e continua não fazendo parte dessa coletividade, o Exército. Será verdade? Por que fez questão de demarcar essa distância?
Agora, o general Villas Bôas diz ter se valido do famigerado twitter para impedir um golpe maior: a explosão de insatisfação dos militares que seria deflagrada com a libertação de Lula. Revela o que tenta esconder: o Exército encontra-se ao sabor de infiltrações – ou seriam agora unanimidades - bolsonarianas na tropa.
Há elementos vários em jogo, com implicações em diversos planos e vazamentos de influências para outras áreas das forças militares. Na louca escalada que acabou o conduzindo ao Planalto, Bolsonaro valeu-se de todos os métodos, inclusive a rebelião, instrumentos que acompanharam sua trajetória desde os tempos de caserna e que estiveram na origem de seu desligamento do Exército.
O que era uma inclinação inflamatória, indisciplinada e violenta do capitão Bolsonaro em seus tempos de caserna permaneceu após sua expulsão na forma da agitação "sindical", sempre insuflando a insatisfação com as condições de trabalho e soldo para o baixo escalão não apenas das forças armadas, mas também das forças policiais, especialmente das polícias militares.
Como diz Villas Bôas na entrevista, depois de ser forçado a sair do Exército, Bolsonaro "passou a gravitar em torno dos quartéis, explorando questões que diziam ao dia a dia dos militares". O que o comandante não diz é que quebras da hierarquia foram sempre incentivadas por Bolsonaro em episódios de intranquilidade que estão potencialmente presentes também agora e terão que precisam ser contidos, ou absorvidos no contexto de sua nova hegemonia, agora como chefe supremo das Forças Armadas.
Não há "risco" de politização dos quartéis, como diz Villas Bôas. Não há risco porque eles já estão inteiramente politizados. É ele mesmo quem diz.
Villas Bôas declara o seguinte sobre o episódio da pressão sobre o STF na decisão sobre o habeas corpus que poria Lula na disputa eleitoral (com enormes chances de vitória, sendo o preferido disparado do eleitor): "Sentimos que a coisa poderia fugir ao nosso controle" porque "militares da reserva e civis identificados conosco estavam se pronunciando de forma enfática". O quê? O general quer que o país acredite que ele estava preocupado com "militares da reserva e civis identificados conosco"?
O general já tinha então era perdido o controle não dos militares da reserva, mas dos da ativa e corria atrás de retomá-lo. Foi por essa razão que, sem mais, desencadeou-se o novo golpe de abril. A história se repete: o golpe agora via twitter, o twitter da rede, da rede não mais da legalidade, mas da rede da ilegalidade. Como disse o cientista politico Wanderley Guilherme do Santos, para evitar um golpe Villas Bôas deu um golpe.
A chegada de Bolsonaro ao Planalto com ajuda desses métodos coroa toda uma carreira de ataques à ordem legal, e de desrespeito à hierarquia em especial. A politização dos quartéis acompanhou toda a trajetória do capitão reformado, com foco as polícias militares. Sem se revelar, Bolsonaro esteve por trás do motim que paralisou as corporações policiais do Espírito Santo e do Rio Grande do Norte. A rebelião capixaba durou 21 dias em fevereiro do ano passado com um rastro de violência que deixou 215 mortes, uma onda de roubos sem controle e prejuízos incalculáveis.
Movimentos semelhantes e conectados chegaram a contagiar dois quartéis do Rio, provocando alarme antes de serem contidos. O estímulo de Bolsonaro foi detectado nas formas de desencadeamento e sustentação de todos esses movimentos.
Um olhar atento percebe que a intervenção e a militarização da segurança pública do Rio, de resultados ainda duvidosos para a segurança "externa", ou seja, a do cidadão, dirigiu-se também para restabelecer o comando da tropa, depois que todas as autoridades estaduais reconheceram alarmadas ter perdido o controle da situação e entregaram o problema ao governo federal.
Um aspecto não suficientemente destacado, porém, é que essa intervenção tinha dois lados e que o mais importante e oculto deles se volta para dentro das próprias forças policiais, na tentativa de garantir a cadeia de comando e restabelecer o respeito à hierarquia, terceirizada para um general do Exército. O processo foi agora atropelado pelo inesperado fator da eleição de Bolsonaro. O motim foi para o poder.
Ainda como consequência das rebeliões do Espirito Santo e Rio Grande do Norte, para tentar controlar o espalhamento de eventuais levantes parecidos que ameaçavam explodir em outros Estados, criaram-se grupos, inicialmente informais, para troca regular de informações entre áreas de inteligência das forças de segurança de diversos estados. A partir daí, a pedido dos próprios estados, surgiu uma coordenação nacional, agora em torno da Abin e do Gabinete de Segurança Institucional, a cargo do sombrio general Sergio Etchegoyen, e também ao ministério "Extraordinário" da Segurança Pública. Nada disso, porém, é capaz de anular o estímulo representado pelas anistias frequentemente concedidas pelo Congresso a policiais que se amotinam, dando aval político e tornando letra morta o Código Penal Militar.
Uma estrutura que antes incluía uma duvidosa e secreta tentativa de conter o espraiamento dos motins passa agora ao controle do chefe deles. Dessa posição ele terá condições ideais para garantir e até ampliar o regime especial de aposentadorias para militares e policiais, além dos chamados "excludentes de ilicitudes" e suas outras variações e ainda mais degeneradas da licença geral para matar os pobres que assume o Planalto em 1º de janeiro.
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