8.24.2009

As necessidades e os direitos da população “ainda são secundários na lógica do modelo de gestão vigente



Nelsão defende que a busca de soluções não deve estar circunscrita ao PLP nº 92/2007, que trata das fundações estatais de direito privado — “vago e vulnerável a distorções” —, nem à emenda substitutiva do deputado Pepe Vargas (PT-RS) — “que deve abranger mais alternativas”.
Para ele, houve um equívoco no debate, com posições polares cristalizadas, seja entre os gestores, os conselheiros de saúde, os delegados das conferências. Para Nelsão, temos o dever cívico de superar esses equívocos, começando pelo crédito de que nem se está querendo inovações no modelo de gestão para piorar a situação para usuários e trabalhadores nem também se está contra a inovação para manter o pior.

O sanitarista afirma que as necessidades e os direitos da população “ainda são secundários na lógica do modelo de gestão vigente”, no qual predominam os interesses da oferta: dos trabalhadores de saúde, dos prestadores de serviço, da indústria de medicamentos e do modelo econômico financeirizado.
Outro problema, cita, é a fragmentação setorial — em detrimento de políticas intersetoriais — “e respectivos corporativismos, clientelismos e desperdícios”. Nelsão menciona também a desregulamentação tanto da demanda ao SUS pelos afiliados dos planos privados, quanto da produção de bens de saúde (medicamentos, equipamentos, imunobiológicos).

PORTA FECHADA

Esses problemas se refletem diretamente nos serviços, opina Nelsão. A atenção básica, que se expande às maiorias pobres da população, na média nacional tem baixa qualidade e resolutividade: “Não consegue constituir-se na porta de entrada preferencial do sistema, nem reunir potência transformadora na estruturação do novo modelo de atenção preconizado pelos princípios constitucionais”. Os serviços de média e alta complexidade, cada vez mais congestionados, reprimem oferta e demanda — “repressão em regra iatrogênica e freqüentemente letal”.

Para ele, “as diretrizes da integralidade e da eqüidade pouco ou nada avançam, a judicialização do acesso a procedimentos assistenciais de médio e alto custo às camadas média-média e média-alta aprofundam a iniqüidade e a fragmentação do sistema, e o modo de produzir serviços e práticas de saúde permanece centrado nos procedimentos médicos de diagnose e terapia”.

Nelsão festeja o fato de que os valores éticos incluídos na Constituição tenham contagiado parte importante dos trabalhadores de saúde e dos gestores públicos, principalmente os municipais. Como conseqüência houve explosiva inclusão de metade da população, antes excluída. Mas, nos anos 90, ficou clara uma distorção: a inclusão pautou-se na universalidade e na descentralização com ênfase na municipalização, mantendo atrofiadas e muitas vezes nulas a integralidade, a igualdade, a regionalização e a participação dos conselhos de saúde na formulação de estratégias.

“Mesmo atrofiados, esses princípios continuam encampados por milhares de atores locais que se esforçam permanentemente em efetivá-los, mesmo que nos limites de experiências localizadas, quase sempre frágeis e reversíveis”, observa. Provas desse esforço quase anônimo, diz, tornam-se visíveis nas mostras regionais e nacionais de experiências exitosas — “verdadeiras pontas de icebergs reveladoras de incomensurável potencial de futura retomada de rumos na construção do SUS”.

Para a cientista política Sonia Fleury, não haverá universalização da saúde enquanto não se universalizar a proteção social, como seguro desemprego, aposentadorias e políticas assistenciais. “Um idoso sem aposentadoria, um desempregado sem seguro, uma família abaixo da linha da pobreza são candidatos naturais a ficarem doentes, pois a saúde é determinada socialmente”, frisa. “Não é viável um sistema universal de saúde para pessoas desamparadas em outros aspectos da proteção social”. Sonia defende o resgate da bandeira da seguridade, assegurando direitos sociais universais, e a busca de uma institucionalidade que a viabilize — com conferência, conselho, orçamento.

Os atuais rumos da estruturação da saúde, opina Nelsão, apontam para um sistema público pobre para os 75% pobres da população fora do mercado dos planos privados de saúde e complementar para os 25% da população no mercado de planos privados — “que acessam serviços, medicamentos e próteses mais caros e sofisticados do SUS, por caminho tanto mais curto quanto mais alto seu estrato social e o valor do plano privado”.

Hésio Cordeiro discorda dos que afirmam que o Brasil tem dois sistemas, um para ricos e outro para pobres. Diretor de gestão da Agência Nacional de Saúde Suplementar, ele acha que “o SUS é de todos”, inclusive dos ricos quando necessitam de atendimento de alta complexidade. “O negativo foi os setores progressistas não se dedicarem ao tema da regulação dos planos e operadoras privadas, talvez por desconhecimento das alternativas da regulação”.



A saúde não tem preço, mas tem custo.

JOFRAN FREJAT, deputado federal (PR-DF)


Mesmo identificando tantos desvios, Nelsão acredita que o SUS avançou. Em 2007, foram 2,7 bilhões de procedimentos ambulatoriais, 610 milhões de consultas, 110 milhões de pessoas atendidas por agentes comunitários de saúde em 95% dos municípios, 87 milhões de pessoas atendidas por 27 mil equipes de saúde da família, 150 milhões de vacinas aplicadas, 10,8 milhões de internações. E mais: 3,1 milhões de cirurgias (215 mil cardíacas e 15 mil transplantes), 9,7 milhões de sessões de hemodiálise, 9 milhões de radioquimioterapia, 403 milhões de exames laboratoriais, 13,4 milhões de exames radiológicos sofisticados, 212 milhões de ações odontológicas, 23 milhões de ações de vigilância sanitária, e o melhor controle da aids entre os países do terceiro mundo.

Alberto Pellegrini também identifica avanços. “No relatório final da Comissão Nacional sobre Determinantes Sociais da Saúde, mostramos dados impressionantes: em 1985, 45% das mortes de crianças eram mal-definidas no Nordeste, porque não havia atenção médica; em 2005, esse índice caiu para 9%, o que aponta claramente a melhoria da cobertura”, exemplifica. De acordo com Nelsão, avanços como esses foram possíveis graças à extinção do Inamps, à descentralização, às comissões intergestores, aos fundos de saúde e aos conselhos de saúde. “Avançamos muito na descentralização e na extensão de cobertura populacional com surpreendente capacidade de elevar a produtividade e a produção de ações e serviços com tão parcos recursos”, diz ele, para quem este impacto positivo iniciou-se nos anos 80 com os convênios “inampianos” das Ações Integradas de Saúde e dos Sistemas Unificados e Descentralizados de Saúde.

RECORDES INSUSTENTÁVEIS

O problema, aponta, é que este “produtivismo” ainda não tem rumo estruturado pelos conceitos de igualdade, integralidade e resolutividade — excetuando-se casos de maior densidade tecnológica e custo. “Permanecem recordes insustentáveis e inaceitáveis de consultas especializadas, exames laboratoriais e de imagem e tratamentos, evitáveis ou desnecessários, que consomem tempo e recursos que agravam a repressão da demanda do atendimento necessário e prioritário”, observa. A sanitarista Lucia Souto também critica o processo de trabalho baseado em linha de produção de consultas e internações. “Alguns encaram o fato de haver quatro vezes mais amputações de coxa de diabéticos como produtividade, em vez de um desastre sanitário”, diz.

São 13 milhões de hipertensos e 4,5 milhões de diabéticos, mais de 90 mil portadores de câncer sem acesso oportuno à radioterapia, 25% dos portadores de tuberculose, hansenianos e de malária sem acesso oportuno e sistemático ao sistema, incidências anuais de 20 mil casos novos de câncer ginecológico e 33 mil casos novos de aids. “Diz-se que há muita reclamação por parte dos usuários, e realmente há, mas porque saímos de um atendimento de 10 para um de 1.000”, comenta Jofran Frejat. “A partir da Constituição, todos passaram a insistir no seu direito à saúde”. Ele lembra que, antes do SUS, quem tinha dinheiro ia para hospital particular; quem não tinha, acabava no sistema das prefeituras, nas santas casas ou morria de doenças tratáveis e curáveis por falta de acesso ao serviço. “O SUS estendeu a todos essa possibilidade”.

O presidente do Conselho Nacional de Saúde, o farmacêutico Francisco Batista Júnior, também aponta como avanço a participação da comunidade em ações e serviços de saúde, num país culturalmente autoritário. “O controle social está solidificado, não há qualquer possibilidade de extinção, apesar de sempre existir quem queira mudar a legislação a fim de diminuir o poder de conselhos e conferências”, diz. Segundo Júnior, há uma relação direta entre os lugares em que o sistema progride e os com participação forte, contundente e consistente.

No entanto, prossegue, o controle social enfrenta um momento de crise. “A imensa maioria dos conselhos atua precariamente, devido ao desgaste na relação com o Executivo, à falta de qualificação dos atores do controle social”. Em viagem a Porto Alegre, o presidente do CNS ouviu graves denúncias de conselheiros contra as secretarias municipal e estadual de Saúde, por não prestarem contas, não levarem em conta as deliberações dos conselhos, entre outras razões. “Estou falando de uma capital, imagine o que acontece no interior desse país”, lamenta. “Temos que acabar com esse faz de conta”. (B.D.)

O SUS é um dos maiores projetos públicos de inclusão social, reconhecem sanitaristas como Gastão Wagner, Nelson Rodrigues dos Santos, Gilson Carvalho, Luiz Odorico Monteiro de Andrade ou Lenir Santos. E são todos igualmente unânimes na opinião de que o sistema não avançou o suficiente: é um projeto inconcluso.

Na análise do professor Gastão Wagner de Sousa Campos, da Unicamp, o SUS enfrenta grandes problemas como financiamento, modelo organizacional, métodos de gestão. “Subestimamos a crise dos sistemas públicos e das estatais e ficamos no maniqueísmo — privatizar ou não instituições e sistemas públicos”, destaca. O problema vai muito além desse debate. “A questão é: onde não entra o mercado, como ficam os projetos públicos?” A falta de uma política de pessoal é outro problema a exigir solução. “Foram feitas várias gambiarras e nunca um projeto de pessoal sólido”, observa. A solução é construir uma política de pessoal tripartite e solidária e redes solidárias regionais com responsabilidade tripartite. “Precisamos rever a forma como se fez a descentralização e a municipalização”, defende. Muitas ações de saúde, inclusive a de política de pessoal, não têm saída apenas pelo município”, propõe, citando os sistemas de saúde de Portugal, Espanha e Inglaterra.

Mas é preciso muito mais. “Precisamos de gestores com um perfil de estadista”. Para ele, todos os ministros da Saúde optaram pela conciliação, “subordinaram-se ao modelo neoliberal, voltado para os hospitais”. Nenhum governo enfrentou de fato os impasses vividos até hoje desde a criação do SUS.

“Estamos numa encruzilhada, como fala o Nelsão”, diz Gastão, referindo-se ao artigo do sanitarista citado anteriormente. Há uma grande probabilidade de seguirmos com um SUS para pobres e planos privados para quem pode pagar”. Em 2007, cita, pela primeira vez o volume de dinheiro privado investido na saúde foi maior que o estatal. “Isso é um péssimo indício”, reclama Gastão, para quem a mudança de rumo depende de o país brigar por um sistema público de fato. “A lei está a nosso favor, a prática não: é uma privatização branca, velada”.

Para Gilson Carvalho, médico-sanitarista que se especializou em financiamento da saúde ao longo dos anos, os recursos disponíveis são insuficientes e continuam associados às demais ineficiências que levam à perda ou ao mau uso do dinheiro — má gestão, corrupção etc. — e às questões gerais do Brasil. “Sem melhora no desenvolvimento do país não há como ter melhores condições de saúde da população”, observa. Gilson defende a mudança urgente do modelo de gestão do SUS, que esteve sempre em crise e, conseqüentemente, “pouca chance e vontade teve de adequar-se aos processos de gestão moderna”. Ele indica as chaves da administração moderna da saúde: investimento em gente, na força de trabalho; descentralização da gestão com empoderamento da equipe; planejamento baseado em modelo de atenção; protocolização (que seria a padronização e rotinização dos serviços); e informação/informática. “A gestão está despreparada para conseguir garantir saúde para sua clientela tanto no público quanto no privado”, salienta.

PERDIDOS NO EMARANHADO

Além de um modelo de gestão atrasado, os serviços de saúde estão perdidos no emaranhado do complexo médico-hospitalar e medicamentoso, dominados e guiados pelo poderio econômico do complexo industrial-comercial da saúde, afirma. “Público e privado, no mundo inteiro, têm que rediscutir a abordagem à saúde e adequar a gestão ao atual momento da saúde”. O sanitarista continua na defesa do que chama de Lei dos 5 Mais: “Mais Brasil, Mais Saúde (SUS), Mais Eficiência (Gestão), Mais Honestidade, Mais Financiamento”.

Para Nelson Rodrigues dos Santos, o Nelsão, as saídas para que o SUS avance nos próximos 20 anos estão nas disposições do Pacto pela Vida, em Defesa do SUS e de Gestão, “exaustivamente discutido, formulado e aprovado por Ministério da Saúde, Conass, Conasems, Conselho Nacional de Saúde e demais conselhos, pelas entidades da Reforma Sanitária, pela Frente Parlamentar da Saúde e outras desde 2005”, lembra. Inclui-se aqui a equalização do financiamento federal ao estadual e municipal, com base em percentual da receita bruta — 15% para municípios e 12% para estados e Distrito Federal, já vigentes, e 10% para a União.

Foto: Arquivo Pessoal

Sem melhora no desenvolvimento do país, não há como ter melhores condições de saúde da população.

GILSON CARVALHO, Sanitarista


Em sua opinião, a saída para o reflorescimento das forças sociais e políticas capazes de gerar decisões de governo e de Estado realmente voltadas para a cidadania está no crescimento e na qualificação da repolitização das entidades representativas dos usuários, dos trabalhadores de saúde, dos prestadores de serviços e das próprias entidades do movimento da Reforma Sanitária. “Em qualquer das saídas, não há como deixar de levar em conta a incomensurável base de sustentação do SUS na ponta do sistema, os milhares de conselheiros, trabalhadores de saúde, usuários já mobilizados, gestores descentralizados, pesquisadores sociais e outros”, sustenta Nelsão.

Para encontrar as saídas, diz Nelsão, é preciso responder a algumas questões: como superar o agudo subfinanciamento do SUS e o co-financiamento público (indireto) do faturamento das empresas de planos privados de saúde? Como impedir a desastrosa precarização da gestão pública do trabalho em saúde? Como efetivar o planejamento e a orçamentação ascendentes, com metas e prioridades na oferta de serviços de saúde integrais? Quando haverá compromisso, diretrizes e condições reais para que a atenção básica deixe de ser focalizada somente nos pobres, com baixa resolutividade, baixo custo e sem condições de ser porta de entrada preferencial aos serviços de maior densidade tecnológica? Se nas pressões e negociações por financiamento suficiente e por novos modelos de gestão, ao longo dos últimos 18 anos, conselhos de saúde, representações nacionais e entidades do movimento da Reforma Sanitária já perderam anéis para manter dedos e dedos para não perder braços, onde a eqüidade, a integralidade, a regionalização e a alta resolutividade da atenção básica (e sua ampliação à classe média) vão parar?

VÁCUOS NO ORDENAMENTO

A advogada Lenir Santos, especialista em direito sanitário, e o professor Luiz Odorico, da Universidade Federal do Ceará, dedicam toda a última parte de seu livro SUS: o espaço da gestão inovada e dos consensos interfederativos — Aspectos jurídicos, administrativos e financeiros aos “vácuos no ordenamento jurídico e administrativo do SUS” que “estão a demandar regulação urgente, principalmente no tocante à integralidade da assistência”.

E acrescentam nova lista de perguntas ainda sem resposta: o que o SUS oferece? Quais os serviços? Onde está definida a carteira de serviços de saúde do SUS para que o cidadão possa de antemão conhecê-los? Qual é o padrão de integralidade e de assistência farmacêutica? Ele tem direito de obter medicamento, mesmo que prescrito por médico que não é da rede SUS? E mesmo que não esteja na Relação Nacional de Medicamentos? Na terceira parte da publicação, intitulada O vácuo normativo e o desafio de sua regulamentação, os autores indicam os pontos que exigem demarcação para que se consolide a estrutura organizativa e operativa do SUS (ver box abaixo).

Nos anos de implementação do SUS, apontam, o Ministério da Saúde editou “excessiva e exaustiva legislação infralegal, com intuito de dar conformação administrativa a partir do financiamento da saúde”. Toda essa regulação visava impor projetos e programas federais a municípios e estados, em lugar de configurar o sistema de saúde para a sociedade. Essa “hipertrofia da regulamentação” parece ter tido “efeito paralisante nos estados e municípios”, que passaram a ter “papel passivo de cumpridor de normas infralegais”, afirmam.

A Lei 8.080/90, no artigo 15, incisos V e XVI, estabelece que é de competência das três esferas de governo a elaboração de normas técnicas e o estabelecimento de padrões de qualidade e parâmetros de custos que caracterizam a assistência à saúde. Mas, “essas regulamentações ainda são tímidas, por isso insuficientes para conformar um sistema igualitário e eqüitativo”.

Para os autores, é necessário esclarecer quais são as portas de entrada do SUS, os protocolos de conduta, as responsabilidades dos usuários com sua própria saúde — como o respeito às prescrições —, o cartão de saúde, os protocolos integrados, o padrão de integralidade, o acesso a medicamentos padronizados e a incorporação tecnológica. Essa regulação é urgente, sustentam Lenir e Odorico, principalmente porque a cada dia há um arsenal de novidades que exigirão novas normatizações em ambiente de segurança jurídica coletiva e individual. “Quanto antes cuidarmos de temas que já estão batendo à porta, melhor”, alertam.


As prisões de gestores que vêm acontecendo pelo país não seriam necessárias se eles tivessem considerado os questionamentos
feitos pelos conselhos de saúde.


Para eles, é preciso evitar a falência do sistema, o que deixaria 140 milhões de brasileiros que utilizam o SUS desassistidos. Para isso, o poder público tem que consolidar as experiências acumuladas e organizar um sistema que responda “às imensas demandas que estão batendo ou já arrombando a porta”. Entre elas, o enfrentamento de situações como a inovação tecnológica e farmacológica, o envelhecimento da população brasileira, o impacto da violência na saúde pública, a judicialização e a politização da assistência sanitária, os direitos do cidadão na saúde, com definição de padrão de integralidade da assistência e acesso regulado, entre outros temas relevantes na sociedade e na economia da saúde.

Novos temas exigirão novos regramentos, como descriminalização da eutanásia e do aborto, clonagem, reprodução assistida, direito a intimidade e confidencialidade, consentimento, direitos e deveres de pacientes, intervenções de risco elevado, distribuição de recursos escassos, esterilização, bancos de DNA, terapias genéticas e outras questões que demandam estudos na bioética e do biodireito.

Para a superação dos problemas do controle social, Francisco Batista Júnior, do CNS, passou a defender uma proposta radical: sugere que os conselhos acionem a Justiça para que as leis relativas à participação sejam integralmente cumpridas. “As prisões de gestores que vêm acontecendo pelo país não seriam necessárias se eles tivessem considerado os questionamentos feitos pelos conselhos de saúde”, afirma. “Temo que, a partir de agora, passem a prender conselheiros por não terem fiscalizado até onde deveriam”.

Para o farmacêutico, o sistema precisa de uma correção de rumos que traga de volta alguns eixos do projeto original da reforma sanitária. Primeiro, diz, é preciso superar o modelo de atenção centrado nos hospitais, no profissional médico e na medicina curativa. Depois, redefinir o modelo de gestão, com apoio e verbas do Ministério da Saúde para o fortalecimento da atenção primária nos municípios — a fim de melhorar a rede física, a contratação de pessoal e a compra de equipamentos.

Ele também pede que as carreiras do SUS sejam priorizadas, para dar fim à precarização do trabalho, e logo opina que o projeto das fundações estatais acentuará o problema. “Precisamos de um modelo que reverta o processo de privatização da saúde em todos os aspectos: na média e alta complexidade, pela contratação de empresas; na atenção primária, inclusive terceirizando a gestão com Oscips e OSs”.

Apesar de todas as limitações, o SUS conseguiu avançar nesses 20 anos, afirma Gilson Carvalho. “Temos agora que expandir e consolidar seus princípios em todos os rincões brasileiros”. Ao comparar o passado e o presente, Gilson mantém a esperança: “Só de ter visto a precariedade da saúde 40, 30, 20 anos atrás, não tenho o direito de desanimar”, resiste o sanitarista. “Preciso ter entusiasmo com o que já se conseguiu”. (K.M.) è

Pontos que exigem demarcação,
segundo Lenir e Odorico

• Rede interfederativa de serviços: a Constituição, tanto quanto a Lei 8.080/90, impõe a regionalização como forma organizativa do SUS, sem, contudo, conceituá-la — os dirigentes de saúde precisam assumir compromissos públicos de cunho técnico, financeiro e gerencial, que visem corrigir as desigualdades territoriais, promover a eqüidade e a integralidade da atenção, racionalizar os gastos e otimizar recursos.

• Direção única: falta conceituação legal. A direção única deve pressupor que os dirigentes da saúde tenham, em sua circunscrição geográfica, a condução política do sistema de saúde, mesmo quando a titularidade dos serviços ali existentes for de propriedade de outra esfera de governo ou de execução contratada ou conveniada.

• Acesso regulado: o acesso a ações e serviços de saúde deve ser garantido a todos que respeitem as portas de entrada do sistema, a serem definidas pelo condutor do SUS estadual. “Não se pode admitir que o SUS se transforme em serviço de saúde fragmentado e complementar ao setor privado”.

• Integralidade da assistência: sua regulamentação depende de padrão técnico e científico, a ser definido por União e estados. “A União, em seu papel de editar normas gerais e principiológicas do sistema, deverá estabelecer critérios e parâmetros que os estados devem observar na regulamentação do tema”. A pactuação do padrão de integralidade que será ofertado pelo SUS, de acordo com os recursos orçamentários — observada a EC 29 —, deverá ser realizada por consenso no colegiado interfederativo.

• Colegiado interfederativo: este deverá ser regulado quanto a suas atribuições. “Leis, no sentido formal, não darão conta de disciplinar algumas questões do SUS, entre elas a própria divisão de competências, uma vez que as redes de saúde são móveis e não fixas”.

• Representação institucional dos conselhos de secretários: apesar da legitimidade da representação institucional dos secretários de saúde, como Conass, Conasems e os Cosems, esses entes precisam ser reconhecidos formalmente.

• Assistência farmacêutica: precisa ser regulada, para que o SUS não se transforme em imensa farmácia pública e quebre o conceito de integralidade da assistência. “Somente pacientes em tratamento nos serviços públicos de saúde devem ter acesso a medicamentos, ministrados por médicos da rede pública, de acordo com os protocolos farmacológicos públicos”.

• Transferências intergovernamentais: as transferências de recursos da União a estados e municípios e de estados para municípios precisam ser definidas legalmente.

• Serviços privados de assistência à saúde: as condições para a instalação de serviços privados deveriam observar o planejamento público, o mapa sanitário estadual ou regional e outras normas de planejamento e organização do sistema.

• Contratos de ação pública: modelo de “administração pública contratualista, governo por contrato”. Os consensos dos colegiados interfederativos precisam ser consubstanciados em contratos que disciplinem e organizem a ação da saúde pública em redes regionalizadas.

Fonte: Revista RADIS

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