A coalizão liderada pelos EUA pode fazer o grupo radical recuar, mas sua ideologia vai persistir se as raízes do radicalismo não forem cortadas
AFP
Imagem divulgada em junho pelo Estado Islâmico mostra militante do grupo executando soldados iraquianos
Em 22 de setembro, os Estados
Unidos estenderam à Síria a operação contra o Estado Islâmico (EI),
iniciada no Iraque em agosto e oficializada no início deste mês
em discurso de Barack Obama. Com os bombardeios e o apoio a forças
terrestres locais, tanto na Síria quanto no Iraque, Washington busca “degradar e destruir”
o autoproclamado califado. O primeiro objetivo é factível, mas o
segundo é claramente impraticável. Sem lidar com o autoritarismo, o
sectarismo, o desemprego, a pobreza, o analfabetismo e outros problemas
que fazem vicejar o radicalismo religioso no Oriente Médio, a ideia por
trás do Estado Islâmico não será destruída. Quando, e se, o EI recuar e
perder território, o ideal vai simplesmente aguardar, encubado, uma
possibilidade de manifestar seu barbarismo novamente.
Do ponto de vista militar, o Estado Islâmico tem uma fragilidade importante que torna o grupo vulnerável à operação liderada pelos EUA: sua ambição expansionista, baseada em uma verdade religiosa que atribuiu ao grupo uma missão inexorável de dominação mundial.
De acordo com as estimativas da inteligência dos EUA, o Estado Islâmico tem 31,5 mil integrantes, sendo 15 mil estrangeiros de 80 países, incluindo 2 mil ocidentais. Muitos desses homens são veteranos de outros conflitos, e vários dos comandantes do EI, especialmente selecionados pelo "califa" Abu Bakr al-Baghdadi, são ex-oficiais do regime de Saddam Hussein, como Fadel al-Hayali e Adnan al-Sweidawi. A experiência militar ajuda a explicar o sucesso da organização no campo de batalha, marcado pela ofensiva relâmpago que tomou boa parte do Iraque em junho (e muitos equipamentos militares norte-americanos abandonados pelo Exército iraquiano) e por vitórias sobre as forças de Bashar al-Assad, como a ocorrida em Raqqa. As informações que chegam das frentes de conflito revelam que o EI está desenvolvendo uma crescente habilidade não apenas para tomar, mas para manter os territórios ocupados. Com minas terrestres e armadilhas com bombas, os extremistas conseguem retardar o avanço de inimigos e produzir baixas significativas. É uma estratégia efetiva, praticamente imune aos ataques aéreos, que torna necessário o uso de tropas terrestres para produzir uma derrota militar do EI.
Ainda que tenha toda essa destreza militar, o Estado Islâmico tem limites claros para sua expansão. É improvável que o grupo seja capaz de sustentar vitórias lutando em várias frentes simultaneamente caso seus diversos inimigos – como o Exército do Líbano, o regime Assad, o Hezbollah, rebeldes sírios de todas as matizes, as forças peshmerga dos curdos iraquianos e as milícias xiitas iraquianas – sejam mesmo apoiados de forma decisiva por potências exteriores. EUA, União Europeia, Irã, Arábia Saudita e seus parceiros do Golfo Pérsico estão enviando armas e dinheiro para muitas dessas facções, mas tanto as potências quanto os grupos auxiliados por elas têm como único interesse comum a derrota do Estado Islâmico. Para além disso, tudo é divergência. Washington promete treinar rebeldes sírios, mas a prioridade desses é derrotar Assad. Os curdos iraquianos recebem apoio norte-americano, europeu e iraniano, mas não há garantias de que terão vontade, e capacidade, para entrar em território sírio e continuar a luta caso façam o Estado Islâmico recuar no Iraque. A Arábia Saudita combate o EI, mas teme mais as milícias xiitas iraquianas, organizadas pelo Irã.
Em conjunto e com apoio das potências ocidentais e regionais, os grupos que enfrentam o Estado Islâmico provavelmente derrotariam militarmente esses extremistas. Mesmo sem coordenação, podem conseguir isso eventualmente. A questão crucial que se apresenta a todos os atores envolvidos no conflito, entretanto, é outra. O que virá no lugar Estado Islâmico? Não há resposta para essa questão.
O Estado Islâmico é a soma de todos os erros do Oriente Médio. Sua origem está no Iraque, onde um importante braço da rede terrorista Al-Qaeda se instalou no vácuo de poder produzido pela invasão liderada pelos EUA e posterior derrubada de Saddam Hussein. A Al-Qaeda, uma organização sunita (corrente majoritária do islã), foi parte fundamental na guerra civil iraquiana (2006-2007). A facção acabou derrotada militarmente por uma aliança entre EUA, xiitas e sunitas moderados, e permaneceu relativamente oculta por algum tempo. Dois fatores ressuscitaram a Al-Qaeda no Iraque, já com o nome Estado Islâmico do Iraque – a alienação, por parte do governo xiita iraquiano, dos sunitas moderados que combateram a Al-Qaeda; e a guerra civil síria, que fez do país um polo atrativo de radicais sunitas como o Afeganistão fora na década de 1980. Em 2013, o Estado Islâmico do Iraque se transplantou para a Síria, adotou o nome de Estado Islâmico do Iraque e da Síria e, após tomar grandes pedaços de territórios dos dois países, decretou a criação do califado, o Estado Islâmico, em 30 de junho.
Por trás da alienação sunita no Iraque e da guerra civil síria está a perversa dinâmica da rivalidade entre o Irã (xiita) e a Arábia Saudita e outras monarquias do Golfo Pérsico (sunitas). Esses dois blocos são rivais geopolíticos há décadas, mas a disputa vem se acirrando, e ganhando contornos sectários, desde a recente ascensão do Irã, proporcionada pelas invasões norte-americanas que derrubaram Saddam Hussein, no Iraque, e o Talibã, no Afeganistão. Sauditas e iranianos nunca se enfrentaram diretamente, mas travam "guerras por procuração" em todo o Oriente Médio. Hoje, o centro dessa disputa é a Síria.
A Primavera Árabe
As monarquias do Golfo viram com horror a chamada Primavera Árabe e a ideia de que povos árabes também podiam se sublevar. Não à toa, lideraram a contrarrevolução, cujo ápice foi o golpe sofrido em junho de 2013 por Mohamed Morsi, integrante da Irmandade Muçulmana e primeiro presidente eleito da história do Egito. Isso não impediu que os reis e emires vissem na versão síria da Primavera Árabe uma chance de enfraquecer o Irã, derrubando o governo Assad, um dos poucos pilares do bloco político liderado por Teerã. De imediato, Arábia Saudita, Emirados Árabes Unidos, Kuwait e outros países da região passaram a apoiar com dinheiro e armas os inúmeros grupos jihadistas que combatiam Assad. Em comum com esses extremistas, as monarquias tinham duas coisas: o interesse em derrubar o ditador sírio e uma ideologia extremista que é mantida sob rígido controle dentro de suas fronteiras e serve para dar legitimidade aos monarcas, mas que é libertada com fúria para derrubar inimigos. Hoje, o grosso do dinheiro do Estado Islâmico vem da tributação de cerca de 8 milhões de pessoas sob controle do grupo e da venda clandestina de petróleo, mas não há dúvidas de que financiadores privados de países como o Kuwait ajudaram o EI a se tornar o que é hoje.
Ao mesmo tempo, o Irã viu na ameaça a Assad um problema estratégico crucial, e ampliou o apoio a seu aliado. A maior ajuda ao regime sírio veio do Hezbollah, também alinhado ao Irã, que cruzou a fronteira do Líbano e passou a combater ao lado de Assad. O regime sírio também teve um papel determinante no surgimento do EI. Desde o início das manifestações contra seu governo, Assad tentou enquadrar os opositores como terroristas e se esforçou para que a profecia se autorrealizasse. No começo do conflito, libertou diversos detidos nas prisões sírias, incluindo jihadistas, e permitiu a entrada de homens da Al-Qaeda no Iraque se eles não representassem perigo para a Síria. Agora, o feitiço se voltou contra ele.
Ao longo da história, as monarquias sunitas se acostumaram a ter o apoio dos Estados Unidos e da União Europeia nas batalhas contra o Irã, mas a Primavera Árabe mudou os cálculos do governo Obama. Por um momento, a Casa Branca entendeu que era preferível ver as ditaduras da região irem às ruínas ainda que a nascente democracia seguida a elas implicasse uma grande participação política de grupos adeptos do chamado islã político, um vasto campo ideológico cujo ponto comum entre seus seguidores é, nas palavras do analista francês Olivier Roy, a ideia de que o islã pode e deve resolver todos os problemas da sociedade. Com base na nova perspectiva, e na fadiga de guerra da opinião pública norte-americana, Obama decidiu se manter distante da Síria. A postura de Obama chocou as monarquias árabes, não só pelo que ocorria na Síria, mas também pelo desfecho da Primavera Árabe no Egito, onde a Irmandade Muçulmana ascendeu ao poder. Este fato indignou não apenas a Arábia Saudita e seus parceiros, mas também setores egípcios contrários aos irmãos muçulmanos - por meses, circulou no Egito como verdade o boato de que a administração Obama era integrada por membros da Irmandade.
Por trás da nova postura da Casa Branca estava uma constatação bastante óbvia: as ditaduras e monarquias absolutistas do Oriente Médio são as maiores responsáveis pelo radicalismo do islã. Há décadas, ditaduras como a do Egito mantêm suas populações em situação de penúria, e não conseguem prover serviços públicos básicos, como saúde e educação, ou fornecer água, esgoto e eletricidade de maneira efetiva. O desemprego e a pobreza atingem níveis desesperadores, e grandes contingentes da população vivem para conseguir hoje o dinheiro para comprar a comida de amanhã. Ao mesmo tempo, tanto nas ditaduras quanto nas ricas monarquias do Golfo a repressão política silencia quase todas as formas de oposição ao governo: parlamentar, partidária, midiática, sindical e estudantil. A única contestação vem das mesquitas, que ao longo do tempo passaram a ser, em grande parte, dominadas pelo wahhabismo, a versão extremista do islã que sustenta o regime saudita, e pelo fundamentalismo surgido no seio da Irmandade Muçulmana nos anos 1960, a partir do qual a interpretação do Alcorão foi deturpada de forma a referendar a morte de inocentes, inclusive muçulmanos. Hoje, os irmãos muçulmanos rejeitam parcialmente esta ideologia, mas ela serviu de base para grupos como a Al-Qaeda. Al-Baghdadi, o califa do Estado Islâmico, produziu uma tóxica mistura entre essas duas vertentes radicais, tão violenta que produziu confrontos dentro do movimento jihadista internacional. As vicissitudes da história fizeram o islã político se dividir em inúmeras correntes, algumas violentas e outras não, mas, como afirmou Robert F. Worth em recente ensaio na New York Review of Books, grupos mais moderados como a Irmandade Muçulmana e extremistas como o Estado Islâmico acabam competindo pelo mesmo público. Isso significa que a estratégia de reprimir os grupos mais moderados e impedir sua participação política, como ocorreu com a Irmandade no Egito e como acontece em quase todos os países árabe-muçulmanos do Oriente Médio, automaticamente fortalece os grupos mais radicais e violentos, como o Estado Islâmico.
Guerra ao Terror II
Sem poder contar com os EUA, a Arábia Saudita e seus parceiros decidiram tomar providências sozinhos. No Egito, patrocinaram o golpe que derrubou Morsi e instalou o marechal Abdel Fattah al-Sissi como novo ditador. Na Síria, estimularam grupos jihadistas até perderem o controle sobre eles, criando as condições para o estabelecimento do Estado Islâmico. As decapitações sofridas pelos norte-americanos James Folley, Steve Sotloff e pelo britânico David Haines alteraram o panorama da opinião pública nos Estados Unidos. Instada a "fazer alguma coisa", a administração Obama escolheu o pior dos caminhos. Sem incluir o Irã nas discussões, será impossível chegar a um acordo sobre o que fazer com o Iraque e a Síria. Para ter estabilidade, esses países precisam estabelecer uma governança efetiva que inclua e integre suas populações étnica e religiosamente diversas. Se Arábia Saudita e Irã não chegarem a um acordo ao menos tácito sobre como os Estados sírio e iraquiano devem ser estruturados, não há a menor perspectiva de fim para esses conflitos. Pior, para combater os extremistas do Estado Islâmico, Washington está se aliando justamente com as monarquias do Golfo, que criam as condições ideológicas e sociais para o extremismo florescer.
A estratégia de Obama parece ser um remendo da "Guerra ao Terror" de George W. Bush, justamente a que o atual presidente dos EUA tanto criticou em seu caminho para a Casa Branca. Enquadrar o Estado Islâmico como um grupo "terrorista" é um equívoco teórico com importantes implicações práticas, pois minimiza a ameaça por um lado e maximiza a dificuldade de combatê-la por outro.
Como afirmou Jessica Lewis, analista do Instituto para o Estudo da Guerra, o Estado Islâmico "não é mais um problema de terrorismo". "É um exército em movimento no Iraque e na Síria, e eles estão tomando território", disse ela. Assim, dizer que o Estado Islâmico é só um grupo terrorista faz o público crer que a questão é menos grave do que parece. Por outro lado, a pecha de terrorista dificulta a compreensão da natureza do Estado Islâmico como expressão da revolta sunita na Síria e no Iraque. "Este é um grupo insurgente pleno, e falar sobre ele como um grupo terrorista não é particularmente útil", afirmou William McCants, do instituto Brookings. Na plenitude do caráter insurgente do Estado Islâmico está a legitimidade que o grupo conquistou em alguns lugares como protetor dos sunitas.
As decapitações de Foley, Sotloff e Haines são a ínfima parte do que comunidades árabes e muçulmanas têm sofrido nas mãos do Estado Islâmico. Mais de uma vez, o grupo fez decapitações em massa e exibiu corpos e cabeças por cidades sírias e iraquianas. Em praças públicas são realizados, e transmitidos em telões, execuções, apedrejamentos, amputações e punições como chicotadas. Muitas pessoas, entre elas crianças, são obrigadas a assistir. A brutalidade aliena muitos que o Estado Islâmico almeja "governar", também porque o EI, com sua visão doentia do islã, tenta controlar todos os aspectos da vida – da vestimenta à alimentação – daqueles que aceitam, ou não têm outra alternativa a não ser viver nas regiões dominadas pelo grupo. Quem tem para onde fugir sabe que, para fazê-lo, precisará deixar para trás todos os seus bens e arriscar a vida.
Ainda assim, o Estado Islâmico desfruta de uma aceitação significativa.
Na Síria, os que vivem sob o EI vêem a facção como alienígena à região, em termos culturais, ideológicos e políticos, mas a aturam porque ela trouxe estabilidade e porque o regime de Assad é ainda mais temido e odiado. No Iraque, muitas pessoas estão horrorizadas com a brutalidade do grupo, que persegue até mesmo religiosos e, entre junho e setembro, assassinou ao menos 40 clérigos sunitas que divergiam de sua teologia. Ainda assim, há apoio ao grupo, também porque o governo central, majoritariamente xiita, é mais temido. Além da alienação política dos sunitas nos últimos anos, as forças regulares iraquianas responderam de forma brutal à tomada de território por parte do então Estado Islâmico do Iraque e da Síria. O revide aos extremistas matou centenas de sunitas inocentes, inclusive crianças, e deixou milhares desabrigados, criando a impressão de que o governo estaria tentando realizar uma limpeza étnica de sunitas.
Ao atacar o Estado Islâmico, o EUA reproduzem, aos olhos de muitos sunitas, a lógica dos governos do Iraque e da Síria, um paralelo que ficará mais claro à medida que as mortes de civis, inevitáveis, se acumularem. Para tentar evitar que a missão fosse retratada como uma cruzada anti-sunitas, Washington buscou guarida moral nos governos árabes, só que são justamente eles os responsáveis pela criação de condições para o radicalismo prosperar. Os ataques, assim, acabam fomentando o ciclo de repressão, radicalização e violência. Os efeitos disso já começaram a ser sentidos. Na Jordânia, o governo se mostra preocupado com a instabilidade interna e, num aceno aos radicais dentro de sua fronteira, libertou o clérigo Abu Qatada, deportado do Reino Unido acusado de ter ligações com a Al-Qaeda; no Egito, a ditadura tenta transformar a guerra contra o EI em uma confrontação contra todo o islã político, em especial a Irmandade Muçulmana; no Bahrein, o governo vê a parceria com os EUA como uma forma de fazer o mundo esquecer a aterradora repressão contra a minoria xiita durante a Primavera Árabe; para a Arábia Saudita, a aliança renovada com os EUA é uma forma de colocar Obama novamente na trilha que desejavam: a da confrontação direta com Assad. Em sua busca para destruir o Estado Islâmico, os EUA estão reafirmando as estruturas que promovem o radicalismo, dando às ditaduras locais o pretexto da guerra ao terror para ampliar a repressão política e podem reforçar o papel do Estado Islâmico como o representante e defensor dos sunitas desprivilegiados. É a receita do desastre.
Do ponto de vista militar, o Estado Islâmico tem uma fragilidade importante que torna o grupo vulnerável à operação liderada pelos EUA: sua ambição expansionista, baseada em uma verdade religiosa que atribuiu ao grupo uma missão inexorável de dominação mundial.
De acordo com as estimativas da inteligência dos EUA, o Estado Islâmico tem 31,5 mil integrantes, sendo 15 mil estrangeiros de 80 países, incluindo 2 mil ocidentais. Muitos desses homens são veteranos de outros conflitos, e vários dos comandantes do EI, especialmente selecionados pelo "califa" Abu Bakr al-Baghdadi, são ex-oficiais do regime de Saddam Hussein, como Fadel al-Hayali e Adnan al-Sweidawi. A experiência militar ajuda a explicar o sucesso da organização no campo de batalha, marcado pela ofensiva relâmpago que tomou boa parte do Iraque em junho (e muitos equipamentos militares norte-americanos abandonados pelo Exército iraquiano) e por vitórias sobre as forças de Bashar al-Assad, como a ocorrida em Raqqa. As informações que chegam das frentes de conflito revelam que o EI está desenvolvendo uma crescente habilidade não apenas para tomar, mas para manter os territórios ocupados. Com minas terrestres e armadilhas com bombas, os extremistas conseguem retardar o avanço de inimigos e produzir baixas significativas. É uma estratégia efetiva, praticamente imune aos ataques aéreos, que torna necessário o uso de tropas terrestres para produzir uma derrota militar do EI.
Ainda que tenha toda essa destreza militar, o Estado Islâmico tem limites claros para sua expansão. É improvável que o grupo seja capaz de sustentar vitórias lutando em várias frentes simultaneamente caso seus diversos inimigos – como o Exército do Líbano, o regime Assad, o Hezbollah, rebeldes sírios de todas as matizes, as forças peshmerga dos curdos iraquianos e as milícias xiitas iraquianas – sejam mesmo apoiados de forma decisiva por potências exteriores. EUA, União Europeia, Irã, Arábia Saudita e seus parceiros do Golfo Pérsico estão enviando armas e dinheiro para muitas dessas facções, mas tanto as potências quanto os grupos auxiliados por elas têm como único interesse comum a derrota do Estado Islâmico. Para além disso, tudo é divergência. Washington promete treinar rebeldes sírios, mas a prioridade desses é derrotar Assad. Os curdos iraquianos recebem apoio norte-americano, europeu e iraniano, mas não há garantias de que terão vontade, e capacidade, para entrar em território sírio e continuar a luta caso façam o Estado Islâmico recuar no Iraque. A Arábia Saudita combate o EI, mas teme mais as milícias xiitas iraquianas, organizadas pelo Irã.
Em conjunto e com apoio das potências ocidentais e regionais, os grupos que enfrentam o Estado Islâmico provavelmente derrotariam militarmente esses extremistas. Mesmo sem coordenação, podem conseguir isso eventualmente. A questão crucial que se apresenta a todos os atores envolvidos no conflito, entretanto, é outra. O que virá no lugar Estado Islâmico? Não há resposta para essa questão.
O Estado Islâmico é a soma de todos os erros do Oriente Médio. Sua origem está no Iraque, onde um importante braço da rede terrorista Al-Qaeda se instalou no vácuo de poder produzido pela invasão liderada pelos EUA e posterior derrubada de Saddam Hussein. A Al-Qaeda, uma organização sunita (corrente majoritária do islã), foi parte fundamental na guerra civil iraquiana (2006-2007). A facção acabou derrotada militarmente por uma aliança entre EUA, xiitas e sunitas moderados, e permaneceu relativamente oculta por algum tempo. Dois fatores ressuscitaram a Al-Qaeda no Iraque, já com o nome Estado Islâmico do Iraque – a alienação, por parte do governo xiita iraquiano, dos sunitas moderados que combateram a Al-Qaeda; e a guerra civil síria, que fez do país um polo atrativo de radicais sunitas como o Afeganistão fora na década de 1980. Em 2013, o Estado Islâmico do Iraque se transplantou para a Síria, adotou o nome de Estado Islâmico do Iraque e da Síria e, após tomar grandes pedaços de territórios dos dois países, decretou a criação do califado, o Estado Islâmico, em 30 de junho.
Por trás da alienação sunita no Iraque e da guerra civil síria está a perversa dinâmica da rivalidade entre o Irã (xiita) e a Arábia Saudita e outras monarquias do Golfo Pérsico (sunitas). Esses dois blocos são rivais geopolíticos há décadas, mas a disputa vem se acirrando, e ganhando contornos sectários, desde a recente ascensão do Irã, proporcionada pelas invasões norte-americanas que derrubaram Saddam Hussein, no Iraque, e o Talibã, no Afeganistão. Sauditas e iranianos nunca se enfrentaram diretamente, mas travam "guerras por procuração" em todo o Oriente Médio. Hoje, o centro dessa disputa é a Síria.
A Primavera Árabe
As monarquias do Golfo viram com horror a chamada Primavera Árabe e a ideia de que povos árabes também podiam se sublevar. Não à toa, lideraram a contrarrevolução, cujo ápice foi o golpe sofrido em junho de 2013 por Mohamed Morsi, integrante da Irmandade Muçulmana e primeiro presidente eleito da história do Egito. Isso não impediu que os reis e emires vissem na versão síria da Primavera Árabe uma chance de enfraquecer o Irã, derrubando o governo Assad, um dos poucos pilares do bloco político liderado por Teerã. De imediato, Arábia Saudita, Emirados Árabes Unidos, Kuwait e outros países da região passaram a apoiar com dinheiro e armas os inúmeros grupos jihadistas que combatiam Assad. Em comum com esses extremistas, as monarquias tinham duas coisas: o interesse em derrubar o ditador sírio e uma ideologia extremista que é mantida sob rígido controle dentro de suas fronteiras e serve para dar legitimidade aos monarcas, mas que é libertada com fúria para derrubar inimigos. Hoje, o grosso do dinheiro do Estado Islâmico vem da tributação de cerca de 8 milhões de pessoas sob controle do grupo e da venda clandestina de petróleo, mas não há dúvidas de que financiadores privados de países como o Kuwait ajudaram o EI a se tornar o que é hoje.
Ao mesmo tempo, o Irã viu na ameaça a Assad um problema estratégico crucial, e ampliou o apoio a seu aliado. A maior ajuda ao regime sírio veio do Hezbollah, também alinhado ao Irã, que cruzou a fronteira do Líbano e passou a combater ao lado de Assad. O regime sírio também teve um papel determinante no surgimento do EI. Desde o início das manifestações contra seu governo, Assad tentou enquadrar os opositores como terroristas e se esforçou para que a profecia se autorrealizasse. No começo do conflito, libertou diversos detidos nas prisões sírias, incluindo jihadistas, e permitiu a entrada de homens da Al-Qaeda no Iraque se eles não representassem perigo para a Síria. Agora, o feitiço se voltou contra ele.
Ao longo da história, as monarquias sunitas se acostumaram a ter o apoio dos Estados Unidos e da União Europeia nas batalhas contra o Irã, mas a Primavera Árabe mudou os cálculos do governo Obama. Por um momento, a Casa Branca entendeu que era preferível ver as ditaduras da região irem às ruínas ainda que a nascente democracia seguida a elas implicasse uma grande participação política de grupos adeptos do chamado islã político, um vasto campo ideológico cujo ponto comum entre seus seguidores é, nas palavras do analista francês Olivier Roy, a ideia de que o islã pode e deve resolver todos os problemas da sociedade. Com base na nova perspectiva, e na fadiga de guerra da opinião pública norte-americana, Obama decidiu se manter distante da Síria. A postura de Obama chocou as monarquias árabes, não só pelo que ocorria na Síria, mas também pelo desfecho da Primavera Árabe no Egito, onde a Irmandade Muçulmana ascendeu ao poder. Este fato indignou não apenas a Arábia Saudita e seus parceiros, mas também setores egípcios contrários aos irmãos muçulmanos - por meses, circulou no Egito como verdade o boato de que a administração Obama era integrada por membros da Irmandade.
Por trás da nova postura da Casa Branca estava uma constatação bastante óbvia: as ditaduras e monarquias absolutistas do Oriente Médio são as maiores responsáveis pelo radicalismo do islã. Há décadas, ditaduras como a do Egito mantêm suas populações em situação de penúria, e não conseguem prover serviços públicos básicos, como saúde e educação, ou fornecer água, esgoto e eletricidade de maneira efetiva. O desemprego e a pobreza atingem níveis desesperadores, e grandes contingentes da população vivem para conseguir hoje o dinheiro para comprar a comida de amanhã. Ao mesmo tempo, tanto nas ditaduras quanto nas ricas monarquias do Golfo a repressão política silencia quase todas as formas de oposição ao governo: parlamentar, partidária, midiática, sindical e estudantil. A única contestação vem das mesquitas, que ao longo do tempo passaram a ser, em grande parte, dominadas pelo wahhabismo, a versão extremista do islã que sustenta o regime saudita, e pelo fundamentalismo surgido no seio da Irmandade Muçulmana nos anos 1960, a partir do qual a interpretação do Alcorão foi deturpada de forma a referendar a morte de inocentes, inclusive muçulmanos. Hoje, os irmãos muçulmanos rejeitam parcialmente esta ideologia, mas ela serviu de base para grupos como a Al-Qaeda. Al-Baghdadi, o califa do Estado Islâmico, produziu uma tóxica mistura entre essas duas vertentes radicais, tão violenta que produziu confrontos dentro do movimento jihadista internacional. As vicissitudes da história fizeram o islã político se dividir em inúmeras correntes, algumas violentas e outras não, mas, como afirmou Robert F. Worth em recente ensaio na New York Review of Books, grupos mais moderados como a Irmandade Muçulmana e extremistas como o Estado Islâmico acabam competindo pelo mesmo público. Isso significa que a estratégia de reprimir os grupos mais moderados e impedir sua participação política, como ocorreu com a Irmandade no Egito e como acontece em quase todos os países árabe-muçulmanos do Oriente Médio, automaticamente fortalece os grupos mais radicais e violentos, como o Estado Islâmico.
Guerra ao Terror II
Sem poder contar com os EUA, a Arábia Saudita e seus parceiros decidiram tomar providências sozinhos. No Egito, patrocinaram o golpe que derrubou Morsi e instalou o marechal Abdel Fattah al-Sissi como novo ditador. Na Síria, estimularam grupos jihadistas até perderem o controle sobre eles, criando as condições para o estabelecimento do Estado Islâmico. As decapitações sofridas pelos norte-americanos James Folley, Steve Sotloff e pelo britânico David Haines alteraram o panorama da opinião pública nos Estados Unidos. Instada a "fazer alguma coisa", a administração Obama escolheu o pior dos caminhos. Sem incluir o Irã nas discussões, será impossível chegar a um acordo sobre o que fazer com o Iraque e a Síria. Para ter estabilidade, esses países precisam estabelecer uma governança efetiva que inclua e integre suas populações étnica e religiosamente diversas. Se Arábia Saudita e Irã não chegarem a um acordo ao menos tácito sobre como os Estados sírio e iraquiano devem ser estruturados, não há a menor perspectiva de fim para esses conflitos. Pior, para combater os extremistas do Estado Islâmico, Washington está se aliando justamente com as monarquias do Golfo, que criam as condições ideológicas e sociais para o extremismo florescer.
A estratégia de Obama parece ser um remendo da "Guerra ao Terror" de George W. Bush, justamente a que o atual presidente dos EUA tanto criticou em seu caminho para a Casa Branca. Enquadrar o Estado Islâmico como um grupo "terrorista" é um equívoco teórico com importantes implicações práticas, pois minimiza a ameaça por um lado e maximiza a dificuldade de combatê-la por outro.
Como afirmou Jessica Lewis, analista do Instituto para o Estudo da Guerra, o Estado Islâmico "não é mais um problema de terrorismo". "É um exército em movimento no Iraque e na Síria, e eles estão tomando território", disse ela. Assim, dizer que o Estado Islâmico é só um grupo terrorista faz o público crer que a questão é menos grave do que parece. Por outro lado, a pecha de terrorista dificulta a compreensão da natureza do Estado Islâmico como expressão da revolta sunita na Síria e no Iraque. "Este é um grupo insurgente pleno, e falar sobre ele como um grupo terrorista não é particularmente útil", afirmou William McCants, do instituto Brookings. Na plenitude do caráter insurgente do Estado Islâmico está a legitimidade que o grupo conquistou em alguns lugares como protetor dos sunitas.
As decapitações de Foley, Sotloff e Haines são a ínfima parte do que comunidades árabes e muçulmanas têm sofrido nas mãos do Estado Islâmico. Mais de uma vez, o grupo fez decapitações em massa e exibiu corpos e cabeças por cidades sírias e iraquianas. Em praças públicas são realizados, e transmitidos em telões, execuções, apedrejamentos, amputações e punições como chicotadas. Muitas pessoas, entre elas crianças, são obrigadas a assistir. A brutalidade aliena muitos que o Estado Islâmico almeja "governar", também porque o EI, com sua visão doentia do islã, tenta controlar todos os aspectos da vida – da vestimenta à alimentação – daqueles que aceitam, ou não têm outra alternativa a não ser viver nas regiões dominadas pelo grupo. Quem tem para onde fugir sabe que, para fazê-lo, precisará deixar para trás todos os seus bens e arriscar a vida.
Ainda assim, o Estado Islâmico desfruta de uma aceitação significativa.
Na Síria, os que vivem sob o EI vêem a facção como alienígena à região, em termos culturais, ideológicos e políticos, mas a aturam porque ela trouxe estabilidade e porque o regime de Assad é ainda mais temido e odiado. No Iraque, muitas pessoas estão horrorizadas com a brutalidade do grupo, que persegue até mesmo religiosos e, entre junho e setembro, assassinou ao menos 40 clérigos sunitas que divergiam de sua teologia. Ainda assim, há apoio ao grupo, também porque o governo central, majoritariamente xiita, é mais temido. Além da alienação política dos sunitas nos últimos anos, as forças regulares iraquianas responderam de forma brutal à tomada de território por parte do então Estado Islâmico do Iraque e da Síria. O revide aos extremistas matou centenas de sunitas inocentes, inclusive crianças, e deixou milhares desabrigados, criando a impressão de que o governo estaria tentando realizar uma limpeza étnica de sunitas.
Ao atacar o Estado Islâmico, o EUA reproduzem, aos olhos de muitos sunitas, a lógica dos governos do Iraque e da Síria, um paralelo que ficará mais claro à medida que as mortes de civis, inevitáveis, se acumularem. Para tentar evitar que a missão fosse retratada como uma cruzada anti-sunitas, Washington buscou guarida moral nos governos árabes, só que são justamente eles os responsáveis pela criação de condições para o radicalismo prosperar. Os ataques, assim, acabam fomentando o ciclo de repressão, radicalização e violência. Os efeitos disso já começaram a ser sentidos. Na Jordânia, o governo se mostra preocupado com a instabilidade interna e, num aceno aos radicais dentro de sua fronteira, libertou o clérigo Abu Qatada, deportado do Reino Unido acusado de ter ligações com a Al-Qaeda; no Egito, a ditadura tenta transformar a guerra contra o EI em uma confrontação contra todo o islã político, em especial a Irmandade Muçulmana; no Bahrein, o governo vê a parceria com os EUA como uma forma de fazer o mundo esquecer a aterradora repressão contra a minoria xiita durante a Primavera Árabe; para a Arábia Saudita, a aliança renovada com os EUA é uma forma de colocar Obama novamente na trilha que desejavam: a da confrontação direta com Assad. Em sua busca para destruir o Estado Islâmico, os EUA estão reafirmando as estruturas que promovem o radicalismo, dando às ditaduras locais o pretexto da guerra ao terror para ampliar a repressão política e podem reforçar o papel do Estado Islâmico como o representante e defensor dos sunitas desprivilegiados. É a receita do desastre.
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