Como é a vida com TOC?
O editor da revista científica 'Nature', David Adam. conta
em detalhes como é sua rotina com o transtorno obsessivo
compulsivo (TOC), distúrbio que comete 3% da população
mundial. O relato está em 'O Homem que
Não Conseguia Parar',
da editora Objetiva, recém-lançado
no Brasil
O inglês David Adam, de 43 anos, é editor da revista científica Nature
e autor de O Homem que Não Conseguia Parar: TOC e a história
real de uma vida perdida em pensamentos (tradução de Flávia Assis;
Objetiva; 256 páginas; 27,90 reais), recém-lançado no Brasil.
Em sua obra, Adam relata em detalhes as duas décadas de convívio
com o transtorno obsessivo compulsivo (TOC), doença psiquiátrica
que atinge 3% da população. Quem padece da doença é acometido
por pensamentos intrusivos ou ideias recorrentes. No livro, o editor
descreve os diversos episódios de compulsão que sofreu ao longo
da vida: ele tinha medo de ser infectado pelo vírus HIV.
Adam utilizava luvas para examinar se havia tocado em
objetos sujos de sangue e recusava-se a apertar a mão de
pessoas que apresentavam
um simples curativo nos dedos. Até decidir escrever o livro, o escritor
manteve a doença em segredo. Disse Adam ao site de VEJA, com
entrevista exclusiva no Brasil: "Ao resolver lançar o livro, falei para
os meus pais que eu tinha duas notícias, uma boa e outra ruim.
A boa era que eu estava realizando o sonho de escrever um livro.
A ruim é que o livro seria sobre um transtorno do qual sou vítima."
Em seu livro, o senhor afirma que o TOC foi desencadeado
pelo medo da contaminação pelo vírus HIV. Isso parece
bastante incomum. Eu acreditava nisso até pouco tempo atrás.
Achava que se tratava de um problema pessoal. Mas, depois de
falar do meu problema no livro, passei a receber mensagens de
inúmeras pessoas com o mesmo tipo de transtorno. Elas relatam
exatamente as mesmas experiências, os mesmos medos e crises de
ansiedade. Digo mais: esse compartilhamento foi muito importante
para mim.
Como a sua doença foi deflagrada? Eu tinha 18 anos e havia
acabado de entrar na faculdade para cursar engenharia química e lá
conheci uma veterana que me convidou pra sair. O encontro não
deu em nada, mas no dia seguinte, quando meu amigo questionou
como tinha sido, menti e falei que tivemos relações sexuais.
Ele então perguntou se havíamos usado preservativo e menti
novamente - disse que não. Ele então respondeu "você pode ter
pegado aids". A partir desse momento, a frase do meu amigo
não saiu da minha cabeça. Ao mesmo tempo em que eu tinha
certeza de que era uma ideia insana eu fui tomado pelo pânico
da hipótese de estar contaminado. Fui dormir esperando que
o pensamento fosse embora, mas ele continuou em minha
mente no dia seguinte e durante outros tantos dias. Minha
vida até então era absolutamente normal. Passei minha infância
e adolescência livre da doença. O que é normal. O distúrbio
costuma ser deflagrado no começo da vida adulta.
O que mudou na sua vida, na prática, com a doença?
Tornei-me o retrato da compulsão. Passei a checar tudo inúmeras
vezes. Se eu fosse arranhado por algum objeto, por exemplo,
eu embalava o material e levava para casa. Lá, colocava luvas
de inverno e passava horas analisando com lupa para ter certeza
de que não estava com gotas de sangue. A certeza, claro, nunca
chegava. Também passei a inspecionar vasos sanitários,
guardanapos, telefones, toalhas - tudo que supostamente pudesse
me infectar. Além disso, se precisasse apertar a mão de alguém
que tivesse qualquer arranhão, fazia de tudo para evitar o contato
físico. Ligava inúmeras vezes para um serviço de atendimento
telefônico que esclarecia dúvidas da população sobre aids.
Perguntava sempre aos atendentes sobre todas as maneiras
de contrair o vírus só para ter certeza de que eles me diriam
que eu não corria esse risco. Mas eu não me contentava e
repetia a ligação dez vezes para ouvir a opinião de outras
pessoas, só pra garantir. Com o tempo a equipe de serviço
já conhecia a minha voz e vice-versa. Cheguei a mudar o
sotaque e usar um tom de voz diferente para eles não me
reconhecerem. Passei anos da minha vida nessa tortura.
O senhor trabalha com a edição de artigos científicos.
Tinha consciência de que esses sintomas eram do TOC?
Claro que sim. A questão é que escondia minha condição
de todos. Só minha mulher e dois amigos sabiam dela.
Levei duas décadas para revelar aos meus pais.
E contei para eles apenas porque ia publicar o livro sobre
o assunto. Na verdade, eu acreditava que se pesquisasse
muito sobre o assunto - e isso de fato aconteceu - poderia
me convencer de que não havia com o que me preocupar
e o pensamento obsessivo iria embora. Mas ele nunca foi.
Agi como a maioria das pessoas em minha situação,
que de alguma forma têm contato com o universo da
saúde: subestimei a doença e posterguei o tratamento até
chegar a um limite.
Qual foi a situação limite que o levou a procurar
ajuda médica? Foi minha filha. O medo de atrapalhar
a vida dela por causa da doença. A situação mudou quando
a levei para o parque pela primeira vez. Ela era ainda um bebê.
Lá, percebi que ela tinha um pouquinho de sangue na perna.
O sangue provavelmente era meu. Eu tinha machucado meu
dedo. Mas fiquei aterrorizado com a hipótese de ser sangue
contaminado de um estranho. Eu a coloquei e tirei do balanço
mais de uma dezena de vezes para me certificar de que não
havia sangue no brinquedo. Voltei ao local durante a noite,
uma lanterna, para fazer outra busca. Ali percebi o quanto
a rotina dela poderia virar um inferno no futuro. Marquei
uma consulta na manhã seguinte.
É natural o portador de TOC demorar a procurar
ajuda médica, já que sintomas da doença podem
ser confundidos com outros problemas, como crises
se ansiedade ou medo exagerado. O senhor tem algo
a dizer para ajudar no diagnóstico? As pessoas levam,
em média, dez anos para procurar ajuda médica por causa
dessa confusão. Mas a diferença entre o que é ou não saudável
é muito clara. Falta conhecimento e espero que meu livro
sirva para isso. O pano de fundo para o TOC é um medo irreal
em relação a uma situação ou objeto real. Gosto de explicar
a doença por meio do exemplo das pessoas que têm medo
de viajar de avião. O medo não patológico se esvai ou
diminui quando seu amigo lhe diz que o risco de a aeronave
cair é mínimo. Para quem tem TOC, essa informação é
absolutamente indiferente. O doente foca em um dado apenas:
o de existir o risco de o avião cair. O portador de TOC acredita
piamente no improvável. Ele tem certeza de que é a pessoa,
entre bilhões de outras, que não vai se encaixar nas estatísticas.
Ou seja, o avião, para ela, cairá.
Como é lidar com a doença hoje? Continuo tendo os
mesmos tipos de pensamentos, diariamente. Se for apertar
a mão de alguém, sempre penso se posso me infectar.
A diferença é que agora eu aperto a mão. Os pensamentos
vêm e vão. Mas agora consigo espantá-los.
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