A espetacular aprovação de Lula nas pesquisas eleitorais expressa o reconhecimento da população pelo seu desempenho como presidente -- mas não só.
Também mostra que, para uma grande parcela de brasileiros, Lula é o personagem decisivo para o país retornar ao Estado Democrático de Direito, o que pode ocorrer pelo respeito ao calendário eleitoral, que prevê eleições livres e diretas para presidente em 2018.Este é o básico e, como é frequente em tempos turbulentos, também é o incerto.
A naturalidade com que a maioria das pessoas se refere à próxima eleição presidencial mostra um ponto fundamental da situação política. Confirma que os brasileiros não admitem em hipótese alguma qualquer esforço capaz de ameaçar um direito conquistado com suor, lágrimas -- e sangue também -- após 21 anos de ditadura militar.
Esta consciência democrática é a grande força que nos protege dos perigos que espreitam o futuro do país.
Na superfície da situação política, os próprios interessados se apresentam, se insinuam, se alinham. É muito natural. Afinal, o calendário recorda que falta um ano e oito meses para a escolha do novo presidente.
O conhecimento de nossa história e o reconhecimento das fraquezas que permitiram a derrocada de uma presidente eleita, sem prova de crime de obrigam a uma pergunta necessária: podemos fechar os olhos no sono dos justos porque está tudo certo e garantido para 2018 como esteve em 2014, 2010, 2006, etc, desde a primeira direta, em 1989?
Acho que não. Esta postura apenas mostra que pensamos o presente de 2017 com referências e possibilidades que pertencem a um passado pré-2016, quando se imaginava que golpes de Estado e rupturas institucionais eram excrescências arquivadas nas páginas viradas da História.
Esta é a questão do momento. Na mesma medida em que o apoio popular a Lula se amplia e se confirma, engordam as maquinações para golpear uma candidatura que, em caso de vitória, reduziria o período político transcorrido entre 31 de agosto de 2016 e 1 de janeiro de 2019 numa janela de vergonha, desperdício e cinismo.
Em condições normais, Lula seria um candidato com direito iguais a todos os outros. Num estado de exceção, será preciso lutar para que sua candidatura não seja massacrada no meio do caminho, num processo que pode derrubar uma parcela considerável do sistema político.
Golpes de estado são acontecimentos trágicos que não se definem num lance único, numa data precisa, com personagens específicos -- sejam vitoriosos, sejam vencidos. As rupturas institucionais abrem comportas largas, com forças próprias, num movimento contínuo de ajustes e conflitos que irão definir a nova situação política. São mudanças abruptas e lances de aparência desencontrada, quando nem sempre é fácil decifrar o sentido real -- até porque, nessas ocasiões, a relação de forças costuma mover-se em alta velocidade.
Por exemplo: em 9 de abril de 1964, o Congresso deu posse a Castello Branco através de um ato institucional que definia datas e funções do calendário eleitoral do país, após o golpe que derrubou João Goulart. Ao contrário do que sabemos hoje, confortavelmente informados sobre o que iria ocorrer anos seguintes, naquele momento tudo parecia assegurado para um retorno rápido à democracia.
Não parecia que o país estava diante de um golpe programado para durar duas décadas, suprimindo eleições diretas entre 1965 e 1989, espaço de uma geração inteira. Acreditava-se que o governo militar não passava de uma pequena pausa, um intervalo rápido para "depurar" o regime e permitir o retorno à "normalidade."
No ato de posse de Castello, as eleições presidenciais diretas foram confirmadas para dali a 18 meses, em 3 de outubro de 1965, dando posse ao novo presidente eleito em 31 de janeiro de 1966 -- como previa a carta de 1946. Mas, na data marcada para a realização da nova eleição, o país e o calendário que deveria organizar a disputa pelo poder através da decisão do eleitor estavam de cabeça para baixo.
O mandato do próprio Castelo Branco fora prorrogado até 1967. As eleições diretas haviam sido canceladas em todos os níveis: para presidente da República, para governadores de Estado, para prefeitos de capital.
Quem calculou que as medidas de exceção iriam limitar-se aos líderes e partidos de esquerda, logo se surpreendeu. Depois de mandar as lideranças ligadas a Goulart, ao PCB e outras siglas para a prisão e o exílio, o Comando da Revolução voltou-se contra os líderes civis que haviam auxiliado a derrubar um governo constitucional. Os principais chefes da conspiração que derrubou Goulart estavam cassados, a começar pelo governador do Rio, Carlos Lacerda, o mais estridente, e o de São Paulo, Adhemar de Barros, discreto, mas muito mais ativo do que se imagina.
Como recordei num artigo publicado aqui mesmo em 31 de outubro ("Lula e Juscelino nas lutas da história" http://www.brasil247.com/pt/blog/paulomoreiraleite/263243/Lula-e-Juscelino-nas-lutas-da-hist%C3%B3ria.htm) há elementos úteis de reflexão sobre Lula no massacre enfrentado por Juscelino Kubitschek nos meses posteriores ao golpe de 64, que terminaram com sua eliminação da cena política.
Há uma diferença essencial na postura dos personagens, é bom reconhecer logo de cara. Ao contrário de Lula, que foi a principal voz na resistência ao golpe de 31 de agosto, exibindo sua rouquidão em atos de protesto realizados no país inteiro, JK foi um aliado tardio mas prestativo do golpe militar de 64.
Embora sua candidatura ao pleito presidencial de 1965 já tivesse até sido lançada oficialmente numa convenção do PSD, ele chegou a pedir votos a favor de Castello Branco no Congresso. Também multiplicou gestos conciliadores em direção àqueles que o enxergavam como inimigo, na esperança de acalmá-los. Nada adiantou. A pressão para retirar JK de cena é bem descrita por Paula Beiguelman no livro "O pingo de azeite -- Estudo sobre a instauração da ditadura."
A professora explica que o argumento para eliminar JK era que sua "candidatura seria o instrumento através do qual as correntes proscritas poderiam retornar ao comando da vida pública do país." Trocando em miúdos: pelo passado desenvolvimentista, pelos espaços que reservava à esquerda, o retorno de JK era um obstáculo à consolidação da ditadura.
Naquele momento, os adversários de Juscelino possuíam o controle completo da situação política. Estavam presentes tanto no Comando Militar que definia cassações e impunha nomes que deveriam ser enviados ao cadafalso, como dirigiam as investigações sobre denúncias de corrupção. Em nenhuma hipótese, havia a chance de apresentar recurso ao Supremo Tribunal Federal.
"Para melhor dissuadí-lo de candidatar-se, ameaçavam avolumar as 'restrições de natureza moral' insinuadas ao longo de sua carreira," escreve Paula Beiguelman.
No momento da cassação, JK era o político mais popular do país, favorito naquelas eleições que, em teoria, seriam realizadas em outubro de 1965. Também tinha aliados influentes em escala regional. Quando ocorreram eleições para governador, ainda por via direta, a vitória coube a aliados seus, em dois estados estratégicos do ponto de vista político e econômico, Minas Gerais e Rio de Janeiro. As vitórias estaduais foram empregadas como argumento para suprimir eleições para governador, também.
Naquele momento -- outra semelhança -- o país enfrentava uma recessão duríssima, que levou o golpista de primeira hora, Carlos Lacerda, que seria marginalizado e cassado pelo governo que ajudou a instalar, a acusar a política econômica do período de "matar os pobres de fome e os ricos de raiva".
Lula encontrou um lugar na conjuntura política de 2017-2018 pelo passado de mais popular presidente da História, com uma herança inegável de combate a desigualdade estrutural da sociedade brasileira. Mas em 2016 ele se qualificou como a grande voz -- rouca muitas vezes -- no esforço final de denúncia da catástrofe que se aproximava.
Por isso cresce na mesma medida em que o governo Temer se afunda, gerando aquele movimento "Saudades de Lula", capturado pelo instituto Ideia, de análise política.
Basta recordar que o país está sendo transformado numa "cloaca", como definiu o ex-governador de São Paulo, Claudio Lembo, para entender a natureza das ameaças, verdadeiramente imundas, que podem ser colocadas no destino do Brasil e dos brasileiros. Na medida em que o Congresso garante sem o mais leve remorso todos os votos necessários para se aprovar os projetos de Temer-Meirelles, as ideias que estavam apenas no papel começarão a desembarcar no país real, produzindo terríveis consequências práticas para a maioria. E aí temos uma eleição no meio.
Um pesadelo para uns. Uma oportunidade, para outros.
Considerando que ninguém derruba um governo constitucional para ficar dois anos e seis meses em Palácio e depois devolver o comando de Estado a um novo presidente eleito apenas porque precisa mostrar amor infinito pelo voto direto, a candidatura Lula assume, acima de tudo, a forma de resistência, distúrbio, desafio -- em nome da democracia.
Nunca, desde o fim da República Velha, a eterna classe dominante brasileira teve o conjunto da situação política na palma da mão, pronta para satisfazer ambições, desejos e até caprichos.
Depois do inimigo principal -- Lula, repita-se -- outros virão. Porque não se quis, em agosto de 2016, uma mudança de governo.
Não é plano de curto prazo, mas uma reconfiguração histórica, numa nação com 206 milhões de habitantes, uma das dez maiores economias do planeta, a liderança mais influente da América do Sul. Tradução matemática de um país onde 5 famílias tem acesso a uma riqueza equivalente àquela disponível a 50% de toda população, o projeto pretende estabilizar uma ordem sem paralelo em sociedades que superaram a condição de senhor x escravo por formas mais civilizadas de trabalho humano.
Não vamos nos iludir, portanto. A guerra contra Lula irá se tornar mais dura, mais encarniçada, mais covarde, daqui para a frente.
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