Nutrição
Embora
não exista um tratamento efetivo para prevenção e combate ao resfriado,
não faltam métodos alternativos que prometem aliviar os sintomas,
acelerar a recuperação e até mesmo prevenir o resfriado. Você já ouviu
que vitamina C é bom para gripes e resfriados? Entenda como isso
funciona, se é que funciona.
O
resfriado comum pode ser causado por mais de uma centena de vírus
diferentes. Já a gripe é causada pelo vírus influenza, em suas inúmeras
formas. Embora o resfriado comum e a gripe compartilhem sintomas
semelhantes, os dois quadros apresentam diferenças importantes.
Primeiro, a gripe tende a ser mais severa do que os resfriados; os
sintomas tendem a ser mais intensos e o tempo para se recuperar é
geralmente mais longo. Além disso, a gripe pode trazer riscos
importantes à saúde, pois em casos graves pode vir acompanhada de
infecções bacterianas (ex.: infecção do ouvido, pneumonia ou até mesmo
miocardite), rabdomiólise, falência renal e até falência de múltiplos
órgãos.
O tratamento da gripe inclui controle dos
sintomas e o uso de medicamentos antivirais. Já para o resfriado, parece
não haver uma droga que combata o vírus de modo suficientemente efetivo
que justifique seu uso. Além disso, trata-se de uma condição de baixo
risco que se “resolve sozinha” na imensa maioria das vezes; portanto, o
tratamento é tipicamente focado no controle dos sintomas (ex.: uso de
descongestionantes nasais, antitérmicos e medicamentos contra a dor).
Ainda que não exista um tratamento efetivo contra suas causas, não
faltam tratamentos alternativos que prometem reduzir a incidência do
resfriado comum, minimizar seus sintomas ou até mesmo acelerar a
recuperação. Dentre eles, a suplementação de superdoses de vitamina C
(acima de 200 mg/dia) é certamente um dos mais populares. Mas até que
ponto é um tratamento eficaz?
Um pouco sobre a vitamina C
A vitamina C, ou ácido ascórbico,
desempenha importantes funções em nosso organismo. Dentre elas, destaco a
participação na síntese de colágeno (uma das proteínas mais abundantes
em nosso organismo), na síntese de carnitina e sua ação antioxidante. A
deficiência de vitamina C sabidamente resulta em escorbuto, uma doença
cujos sintomas incluem fraqueza muscular e fadiga (em razão da
deficiente síntese de carnitina) e problemas em tecidos conectivos
diversos, onde o colágeno é essencial. Já sua ação antioxidante tem
alimentado hipóteses de propriedades antienvelhecimento da vitamina C.
As evidências para isso, no entanto, são fracas. A despeito dos papeis
fundamentais exercidos pela vitamina C, nosso organismo não é capaz de
sintetizá-la, o que nos torna absolutamente dependentes de sua ingestão
via dieta.
O brilhante cientista Linus Pauling e a popularização da vitamina C
Linus Pauling foi, sem dúvidas, um dos
mais importantes cientistas de todos os tempos. Contemporâneo de muitos
que leem este blog (1901-1994), Linus foi um dos fundadores da química
quântica. Seus trabalhos sobre ligações químicas lhe renderam um prêmio
Nobel em química. Linus também trabalhou com biomoléculas e, dentre
elas, a vitamina C parecia lhe chamar a atenção em especial. Em 1971,
Linus publicou a 1ª edição do livro “Vitamina C e o resfriado comum”
(tradução livre), onde defendia a suplementação de altas doses de
vitamina C para, entre outros benefícios, ter mais resistência contra o
resfriado comum. Anos depois, ele publicou outro livro “Como viver mais e
sentir-se melhor” (tradução livre), em que defendia que o consumo de
superdoses de vitamina C combateria o desenvolvimento não apenas de
resfriado e gripe, mas também de doenças cardiovasculares, câncer, e
inúmeras outras condições. Entretanto, poucas evidências apoiam tais
alegações. Por exemplo, uma meta-análise verificou que a suplementação com antioxidantes (incluindo a vitamina C) não afeta a progressão da aterosclerose. Outra meta-análise observou que a vitamina C não apresenta efeito positivo na prevenção e tratamento de doenças cardiovasculares.
Ainda que as evidências em favor das
alegações de Linus a respeito dos benefícios da vitamina C sempre foram
bastante controversas, seu prestígio, sua popularidade e a lógica clara
em seus argumentos certamente ajudaram a popularizar o uso da vitamina.
Radicais livres, antioxidantes, vitamina C e sistema imune
As propriedades antioxidantes da vitamina C
fazem com que ela também desempenhe papeis na regulação da função
imune. Isso porque a geração de radicais livres é indispensável para a
resposta do hospedeiro quando infectado por agentes invasores. Os
radicais livres não apenas constituem uma ferramenta que células do
sistema imune usam para matar microrganismos, mas também participam da
regulação da quimiotaxia e da fagocitose. Se você não está seguro acerca
da importância da capacidade de neutrófilo ou macrófago de se
locomoverem para “caçar” um agente invasor e depois de fagocitá-lo para
matá-lo, assista este vídeo.
Os radicais livres gerados para matar microrganismos fagocitados podem,
por outro lado, danificar as membranas das células do sistema imune;
uma vez que essas células dependem muito da integridade de suas
membranas para reconhecer patógenos e “conversar” com outras células, o
dano causado pelos radicais livres pode comprometer a competência da
resposta a agentes invasores.
A vitamina C tem a capacidade aumentar a mobilidade de neutrófilos, como mostra este estudo.
No entanto, outros parâmetros da função dos neutrófilos não parecem ser
influenciados pela vitamina C. Estudos mostram que infecções resultam
em rápida redução da vitamina C presente no sangue e dentro de
leucócitos, o que sugere sua participação nas respostas à infecção. Os
efeitos imunomoduladores da vitamina C parecem estar associados a uma
atenuação no dano causado por radicais livres, graças a sua ação
antioxidante. Portanto, parece ser inquestionável a importância da
vitamina C para uma boa resposta imune, o que obviamente inclui
resistência a infecções diversas (incluindo gripe e resfriado) e
capacidade de resolver tais infecções com rapidez. Não por coincidência,
casos em que há deficiência de vitamina C são tipicamente acompanhados
de imunossupressão. O que se questiona, todavia, é até que ponto pessoas
saudáveis e que consomem vitamina C dentro das quantidades recomendadas
precisam suplementar vitamina C em altas doses para evitar
especificamente resfriados e gripes.
Afinal, devemos suplementar vitamina C?
Existem estudos que apoiam a hipótese de
que suplementar com vitamina C reduz as chances de ser acometido por
resfriado comum (estudos com gripe são muito mais escassos), de atenuar a
severidade de seus sintomas, ou de se recuperar mais rapidamente. No
entanto, a literatura no geral está longe de apresentar resultados
consistentes; ao contrário, existe bastante disparidade. Meta-análises,
no entanto, geralmente apontam para ausência de efeitos positivos da
suplementação com doses acima de 200 mg/dia. Uma das mais recentes meta-análises,
que contou com mais de 10.500 participantes em mais de 25 ensaios
clínicos controlados por placebo não mostrou efeitos consistentes em
reduzir a incidência, tampouco a severidade do resfriado. Nesse mesmo
estudo, análises de subgrupo incluindo apenas ensaios com doses ≥1 g/dia
ou ≥3 g/dia também indicaram não haver benefícios da suplementação na
população em geral. No entanto, em subgrupos de indivíduos submetidos a
treinamento físico ou estresse intensos, houve uma significativa redução
da incidência de resfriados (cerca de 10% em atletas e soldados em
condições extremas). Isso parece ocorrer apenas em condições de estresse
que duram poucos dias, já que estudos em que os agentes estressores
duraram 2-3 meses, nenhum benefício da suplementação foi observado.
Em relação ao tempo de acometimento, a
mesma meta-análise mostrou que adultos que suplementam regularmente com
vitamina C têm redução de ~10% no tempo de doença, o que pode chegar a
~15% em crianças. Apesar do efeito ser significativo, é preciso refletir
sobre a necessidade de suplementar continuamente para uma redução tão
pequena em uma doença cujo curso já é curto. Do ponto de vista clínico, o
benefício não me parece muito importante.
E se as doses forem maiores?
Na meta-análise mencionada acima, não foi
observada nenhuma associação entre a dose utilizada nos estudos e os
resultados neles observados. Caso ainda paire uma dúvida, um estudo
sobre a cinética de absorção de vitamina C após ingestão oral sugere que
a dose máxima tolerável (3 g a cada 4 horas) não resulta em aumentos na
concentração sanguínea de vitamina C muito superiores a doses de ~1 g.
Concluindo
Quando não há deficiência de vitamina C, é
pouco provável que a suplementação confira proteção contra resfriados,
gripes e, por que não, infecções oportunistas em geral. Ainda que exista
evidências sobre tempo reduzido de acometimento por resfriados, tal
redução é pequena e provavelmente sem relevância clínica. Em situações
específicas de estresse, no entanto, os benefícios parecem justificar o
uso pontual. Megadoses provavelmente não serão mais efetivas do que
doses mais baixas, já que a concentração plasmática de vitamina C parece
ser muito bem regulada. Na dúvida, coma muitas frutas e fique
tranquilo; afinal, atingir as doses recomendadas de vitamina C pela
alimentação é relativamente simples.
Bibliografia utilizada:
Hemilä H, Chalker E. Vitamin C for
preventing and treating the common cold. Cochrane Database Syst Rev.
2013 Jan 31;(1):CD000980.
Wintergerst ES, Silvia Maggini, Dietrich
H. Hornig b. Immune-Enhancing Role of Vitamin C and Zinc and Effect on
Clinical Conditions. Ann Nutr Metab 2006;50:85–94
Jacob RA, Sotoudeh G. Vitamin C function and status in chronic disease. Nutr Clin Care. 2002 Mar-Apr;5(2):66-74.
Panush RS, Delafuente JC, Katz P, Johnson
J: Modulation of certain immunologic responses by vitamin C. III.
Potentiation of in vitro and in vivo lymphocyte response. Int J Vitam
Nutr Res Suppl 1982; 23: 35–47. 35
Anderson R, Smit MJ, Joone GK, van Straden
AM: Vitamin C and cellular immune functions: protection against
hypochlorous acidmediated inactivation of glyceraldehyde-3- phosphate
dehydrogenase and ATP generation in human leucocytes as a possible
mechanism of ascorbate-mediated immunostimulation. Ann NY Acad Sci 1990;
587: 34–48.
M De La Fuente and V Victor. Anti-oxidants as modulators of immune function. Immunology and Cell Biology (2000) 78, 49–54
Anderson R, Oosthuizen R, Maritz R, Theron
A, Van Rensburg AJ: The effects of increasing weekly doses of ascorbate
on certain cellular and humoral immune functions in normal volunteers.
Am J Clin Nutr 1980; 33: 71–76
Bleys J, Miller ER 3rd, Pastor-Barriuso R,
Appel LJ, Guallar E. Vitamin-mineral supplementation and the
progression of atherosclerosis: a meta-analysis of randomized controlled
trials. Am J Clin Nutr 2006;84:880-7
Shekelle P, Morton S, Hardy M. Effect of
supplemental antioxidants vitamin C, vitamin E, and coenzyme Q10 for the
prevention and treatment of cardiovascular disease. Evidence
Report/Technology Assessment No. 83 AHRQ Publication No. 03-E043.
Rockville, MD: Agency for Healthcare Research and Quality, 2003
Padayatty SJ et al. Vitamin C
pharmacokinetics: implications for oral and intravenous use. Ann Intern
Med. 2004 Apr 6;140(7):533-7.
Nenhum comentário:
Postar um comentário