8.11.2015

Descriminalizar as drogas seria uma boa?


Leonardo Sakamoto
O Supremo Tribunal Federal marcou, para esta quinta (13), o julgamento de um recurso (RE 635.659) que trata da descriminalização de porte de todos os tipos de drogas para uso pessoal. Hoje, a lei brasileira ainda considera crime adquirir, manter ou portar drogas mesmo para consumo próprio. A decisão dos ministros do Supremo pode ajudar a mudar o paradigma, fazendo com que a questão das drogas deixe de ser encarada principalmente como um caso de polícia.
A proibição às drogas se fez a partir do pressuposto equivocado de que o Estado pode vetar uma conduta individual, criminalizando-a. E continuar punindo o seu porte influencia muito pouco no número de pessoas que as consomem. “Usar uma droga é uma prática relacionada a diversos fatores e criminalizar quem faz isso apenas marginaliza essa pessoa, aumentando a chance de que ela tenha problemas sérios, inclusive ser encarcerada.''
A análise é de Maurício Fiore, coordenador científico da Plataforma Brasileira de Política de Drogas e pesquisador do Centro Brasileiro de Análise e Planejamento (Cebrap). Este blog conversou com ele sobre o contexto em que essa discussão no STF está inserida. Segundo Maurício, de maneira geral, países que não criminalizam o uso de drogas não apresentam mais consumidores do que os outros. Conversamos também sobre a morte de jovens pobres envolvidos no tráfico e a legalização da maconha. Segue a entrevista:
Um dos argumentos contrários à descriminalização do porte de drogas para consumo próprio é que isso vai aumentar a demanda. Mas as pessoas usam as substâncias só porque elas são proibidas?
Caso o Supremo considere que ter drogas para uso pessoal não é crime, as drogas continuarão proibidas. Ou seja, usar uma droga, ainda que ela seja proibida, não poderá ser considerado crime segundo a nossa Constituição, pois não é uma conduta lesiva a outros. O que sabemos é que a criminalização ou não de uma droga influencia muito pouco no número de pessoas que a usam. Usar uma droga é uma prática relacionada a diversos fatores e criminalizar quem faz isso apenas marginaliza essa pessoa, aumentando a chance de que ela tenha problemas sérios, inclusive ser encarcerada.
Qual a experiência de outros países a esse respeito?
De maneira geral, países que não criminalizam o uso de drogas não têm taxas de prevalência [proporção de pessoas que as usam] maiores que aqueles que continuam criminalizando. Cada país seguiu um caminho diferente, alguns tiraram o uso de drogas da lei penal, outros tiveram a descriminalização decretada pelo poder judiciário, como a Argentina e a Colômbia – que é o que esperamos que o STF faça no Brasil.
Por que o discurso de que o consumo de drogas gera violência é aceito por muita gente sem discussão?
A ideia de que o consumo de drogas é naturalmente ligado à violência foi construída ao longo do século 20, quando o paradigma proibicionista se tornou hegemônico como forma de lidar com substâncias psicoativas. Houve uma disseminação ininterrupta de mensagens que relacionavam drogas ilícitas com violência. Há evidências de relação entre o uso de determinadas substâncias e a potencialização de episódios violentos – e o álcool é o grande exemplo do que estou dizendo. Mas não se trata de causa e efeito.
Até porque as estatísticas públicas mostram que a maioria dos mortos das drogas não são usuários ou vítimas de usuários, mas jovens que fazem parte do exército do tráfico – seja na disputa por territórios, seja na disputa com a polícia…
Se há uma relação clara entre violência e drogas no Brasil ela está na dinâmica interna do mercado ilícito e na guerra policial a esse mercado. E ainda temos que pensar no outro fenômeno que é incubador de violência: o encarceramento. Mais de um quarto dos encarcerados no Brasil respondem por tráfico de drogas, estamos falando mais de mais de 150 mil pessoas.
Qual melhor coisa que pode acontecer após a descriminalização?
A melhor coisa é começar a retirar a questão das drogas da esfera policial e penal do Estado. O paradigma proibicionista se fez a partir do pressuposto equivocado de que o Estado pode vetar uma conduta individual, criminalizando-a. Esse pressuposto tem que ser repensado.
O outro efeito positivo é que a, curto prazo, teremos que debater critérios objetivos para definir porte para uso e porte para tráfico, entre eles o estabelecimento de quantidades-limite. Isso é fundamental para diminuir o encarceramento.
Até porque a discussão no STF não mexe com a questão de tráfico. E a lei vigente não separa o sujeito que passa um beque, um papelote de pó ou uma pedra para um amigo do traficante profissional.A lei em vigor pune como tráfico ceder qualquer quantidade de droga, mesmo que gratuitamente, para qualquer pessoa. Ou seja, mesmo que isso nem sempre aconteça na prática, se você dá para seu amigo que vai fazer uma viagem uma pequena porção de maconha ou alguns gramas de cocaína, você está cometendo um crime cuja pena é de 5 a 15 anos de prisão.
A única exceção que ela faz é no caso de quem oferece droga para uso compartilhado, que é enquadrado em outro crime, nesse caso com pena de 6 meses a um ano de prisão. Portanto, a lei incentiva algo como: “se for oferecer drogas alguém, use junto”. Mais uma das insanidades da guerra às drogas.
E o pior que pode acontecer após a descriminalização?
A pior coisa seria parar a discussão nessa descriminalização, sem que o debate sobre um política de drogas mais justa e racional seja realizado.
Quem ganha mantendo tudo como é hoje, com a discussão nessa esfera penal e não na de saúde pública?
É difícil separar o que são interesses diretos, valores ou desinformação no debate sobre drogas. Temos que ter cuidado ao tachar qualquer pessoa que tenha receio em mudar a política de drogas como uma interessada direta, como alguém que ganha com isso. Os mais pobres moradores de periferia, por exemplo, perdem muito mais com as coisas do jeito que estão, mas são tão ou mais refratários em defender uma reforma na política de drogas.
Agora, há sim grupos organizados que tem interesse direto na cara e eterna guerra às drogas, pois ganham com ela. Mas prefiro debater com base em argumentos, deixando de lado motivações desse tipo. Por exemplo, ficar dizendo que policiais e traficantes ganham com a guerra às drogas, sendo que muitos deles, normalmente os mais pobres da linha de frente, morrem todos os dias.
Falando sobre a questão da maconha especificamente. A descriminalização do porte de drogas para uso pessoal fortalece o debate sobre a legalização de sua produção e comercialização – a menos que o STF acredite que beques sejam entregues por gnomos a seus usuários. Ou seja, essa votação contribui para que a legalização da maconha no Brasil?
Embora o julgamento trate da descriminalização do porte para uso de todas as drogas, como deve ser, ele pode também fomentar o debate necessário sobre a maconha, a droga ilícita mais consumida no Brasil e no mundo.
Vai escancarar mais a realidade que você traz: milhões de pessoas fumam maconha e não são gnomos, mas gente, que vende essa droga, gente que todo dia mata, morre ou é encarcerada por isso. Deve-se evitar o simplismo, como se política de drogas fosse simplesmente dizer: essa droga pode e essa não pode. Esse é a lógica do proibicionismo e deu no que deu.
Política de drogas é complexa, tem que levar em conta todas as facetas de produção, oferta, demanda e pensar em prevenção, redução de danos e cuidado ao uso problemático e à saúde. Mas tirar o uso de drogas da esfera penal é pré-requisito para se discutir todo o resto.

Julgamento no STF pode levar Brasil a descriminalizar porte de drogas

Data: 11/08/2015 - 05:08 | Categoria: Nacional | Visualizações: 228 |    O Brasil pode se igualar aos demais países da América do Sul que descriminalizaram o porte de drogas hoje ilícitas e passar a ser tolerante com o consumo e com o cultivo para uso próprio. A medida depende do Supremo Tribunal Federal (STF) que deve julgar, nesta quinta-feira (13), ação questionando a constitucionalidade da proibição. A Defensoria Pública do Estado de São Paulo recorreu à Corte, alegando que o porte de drogas, tipificado no Artigo 28 da Lei 11.343, de 2006, não pode ser considerado crime, por não prejudicar terceiros. O relator é o ministro Gilmar Mendes.
Para especialistas em segurança pública, direitos humanos e drogas, o STF tem a chance de colocar o Brasil no mesmo patamar de outros países da região e dar um passo importante para viabilizar o acesso de dependentes químicos ao tratamento de saúde, além de pôr fim à estigmatização do usuário como criminoso.
“A lei de drogas manteve a posse de drogas como crime, mas não estabeleceu a pena de prisão – o que foi um avanço. O entendimento que se tem é que isso [a proibição] é inconstitucional, diante dos princípios da liberdade, da privacidade, no sentido que uma pessoa não pode ser constrangida pelo Estado, sob pena de sanção, por uma ação que, caso faça mal, só faz mal a ela”, explicou a coordenadora do Grupo de Pesquisas em Política de Drogas da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) Luciana Boiteux.
O diretor para a América Latina da Open Society Foundation, organização não governamental que defende direitos humanos e governança democrática, Pedro Abramovay, diz que em nenhum país onde o porte de drogas foi flexibilizado houve aumento do consumo.
“O Brasil está atrasado e se descriminalizar vai se igualar a dezenas de países que já passaram por esse processo. Todos os países que descriminalizaram o consumo, que falaram que ter o porte para o consumo pessoal não é mais crime, não viram o consumo crescer. Então, esse medo que as pessoas têm, de haver aumento, é infundado com os dados da realidade”, destaca.
Ele acredita que a medida pode fazer com que dependentes tenham acesso facilitado à saúde. “Hoje, um médico que trata uma pessoa que usa crack, lida com um criminoso, tem a polícia no meio, o que torna a abordagem mais e mais difícil”, destacou Abramovay, que já foi secretário nacional de Justiça.
TRAFICANTE X USUÁRIO
Com a decisão do STF, também pode sair das mãos da polícia e do próprio Judiciário a diferenciação entre quem é traficante e quem é usuário, que tem levantado críticas de discriminação e violação de direitos humanos nas prisões. A lei atual, de 2006, não define, por exemplo, quantidades específicas de porte em cada caso, como em outros países, e deixa para o juiz decidir, com base no flagrante e em “circunstâncias sociais e pessoais”. “Em outras palavras: quem é pobre é traficante, quem é rico é usuário”, critica Abramovay.
Segundo ele, o STF deve recomendar, na sentença, que sejam estabelecidos critérios para a caracterização de usuários, por órgãos técnicos como a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa). “O Supremo pode dizer que, para garantir que a Constituição seja respeitada, sem discriminação, são necessários critérios. Esse não é um tema menor, a falta de indefinição leva ao encarceramento. Estamos falando de um a cada três presos no país”, destacou Abramovay.
Em evento no Rio de Janeiro, na semana passada, o ministro da Justiça, José Eduardo Cardozo, reconheceu que as “lacunas legais” para diferenciar traficantes e usuário alimenta o ciclo de violência e superlota o sistema prisional. Segundo ele, o tráfico é o segundo tipo de crime que mais coloca pessoas atrás das grades, depois de crimes contra o patrimônio. No caso de mulheres, o tráfico aparece em primeiro lugar na lista.
“Sabemos que temos uma cultura, que não me parece adequada, de querer forçar a barra de tudo quanto é traficante para poder criminalizar. Temos muita gente que é usuária – que deveria receber tratamento de saúde – entrando nas unidades prisionais em contato com organizações criminosas: ou seja, entra usuário e sai membro do tráfico”, lamentou o ministro.
A professora da UFRJ Luciana Boiteux aposta na regulação – da produção à venda das substâncias – como solução para enfrentar a violência e os homicídios no país relacionados ao combate ao tráfico.
OUTRO LADO
Contrário à descriminalização do porte de drogas para consumo próprio, o deputado federal Osmar Terra (PMDB-RS) acredita que a medida é o primeiro passo para a legalização das drogas o que, de acordo com ele, seria ruim para a sociedade.
“Se descriminalizar o uso, acabou, legalizou a droga. Se não for crime usar [a droga], as pessoas vão andar com droga à vontade. Vão levar para o colégio, para a praça, distribuir para os amigos. E como é que pode não ser crime comprar, mas ser crime vender? Como se resolve esse paradoxo? Isso vai acabar legalizando a venda. Os traficantes vão [fingir] ser todos usuários. Isso vai aumentar a circulação da droga. Liberar a droga só agrava o problema, não melhora”, disse Terra que preside a  Subcomissão de Políticas Públicas sobre Drogas da Câmara dos Deputados.
Ele discorda da tese de que o uso de drogas é uma liberdade do indivíduo, que só afeta a ele. “A dependência química é uma doença incurável. A pessoa vai levar aquilo para o resto da vida. Isso pode reduzir sua capacidade laborativa e de cuidar da família. Muitas vezes, [o usuário] sobrecarrega a família, porque a maioria é desempregada e não consegue cuidar da família. Ele sobrecarrega seus pais, irmãos, que têm que cuidar dele, tem que arrumar dinheiro para manter, tem que trabalhar mais. A liberdade de ele usar droga é a escravidão da família”, afirma.
O deputado relaciona ainda o uso de drogas, lícitas e ilícitas, ao aumento da violência no país. “Nossa epidemia da violência é filha da epidemia das drogas. O Brasil é o país em que mais se mata gente no mundo. Mata mais em homicídios, em acidentes de trânsito. Se liberar, vai aumentar tudo isso. Qual é a maior causa de violência doméstica? É o álcool, porque é uma droga lícita. Não é crime comprar álcool. A violência doméstica vai aumentar muito em função da circulação das drogas ilícitas”, diz.
A opinião é compartilhada pelo empresário Luiz Fernando Oderich, que fundou a organização não governamental Brasil Sem Grades, que pede mais segurança e defende leis mais duras para combater a violência. Max, filho de Oderich, foi assassinado há 13 anos durante uma tentativa de assalto.
Segundo ele, o usuário não deve ser tratado como criminoso. Entretanto, muitas vezes, ele se envolve em outros crimes por causa do uso de drogas. “Existe uma relação entre um comportamento não social e o consumo de drogas. Alguns, de uma maneira menor, e outros, de uma maneira maior. É uma coisa que não faz bem”, disse o empresário.
O psiquiatra Osvaldo Saide, da Associação Brasileira de Alcoolismo e Drogas (Abrad), diz que o ideal é não tratar o usuário como criminoso, mas encaminhá-lo para tratamento. No entanto, segundo ele, é preciso que a legislação deixe claro o que fazer em casos de pessoas que cometam crimes sob efeito de drogas e em casos de venda de drogas pelos usuários para sustentar seu próprio vício.
Para Saide, seria necessário criar alternativas ao usuário como receber a pena pelo outro crime cometido ou se submeter a tratamento compulsório. “A Justiça pode pressionar a pessoa para o tratamento em uma situação em que ela não tem a noção da gravidade do seu problema, até porque a dependência química leva a uma falta de noção da gravidade do próprio problema. Às vezes, uma pessoa com profissão fica imersa, por exemplo, nocrack”, disse.
A presidenta da Associação Brasileira de Estudos de Álcool e outras Drogas (Abead), a psiquiatra Ana Cecília Marques, acredita que a descriminalização do uso precisa ser discutida pela sociedade, mas discorda que isso seja feito por um julgamento do STF.
“É preciso que haja uma lei que defina claramente os casos específicos, como se ele é um usuário eventual, se tem uma dependência. Sou a favor de descriminalizar, mas acho que precisa ter todo esse rigor, que não é algo que existe nas nossas leis de drogas. Elas não são claras, deixam várias lacunas. E no país faltam políticas para as drogas. Sou a favor, mas temo por esse processo de descriminalização”, disse.
Fonte: Agencia Brasil

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