Os esbirros da finança atribuem nossas crises aos direitos conferidos ao cidadão pela Constituição
por Gabriel Galípolo e Luiz Gonzaga Belluzzo
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publicado
12/01/2016 05h33
Marcelo Camargo/Agência Brasil
No compasso do ziriguidum das três crises que assolam o País – econômica, política e social –, os amigos do impeachment
sambam ao descompasso do ingurgitamento de seus ressentimentos. A
prorrogação da disputa pela Presidência da República ainda monopoliza a
agenda do Brasil. Na cadência do aprofundamento da crise, eleva-se o
protagonismo dos esbirros da finança, tão autoritários quanto ineptos em
seus contorcionismos para fugir à responsabilidade das trapalhadas e
patetadas que levaram o País para o atoleiro.Um ano depois das eleições, prevalecem os juízos que atribuem a crise ao crescimento do Estado Social. Abater o Dragão da Maldade passa obrigatoriamente pela revisão dos direitos conferidos ao cidadão, inclusive aqueles previstos na Constituição.
O Estado Social – expressão da confiança ética – foi construído a ferro e fogo pelos subalternos no século XX e impôs o reconhecimento dos direitos do cidadão, desde o seu nascimento até a sua morte. Mulheres e homens serão investidos nesses direitos desde o primeiro suspiro, a partir do princípio que estabelece que o nascimento de um cidadão implica, por parte da sociedade, o reconhecimento de uma dívida. Dívida com sua subsistência, com sua dignidade, com sua educação, com suas condições de trabalho e com sua velhice.
Essa dívida da sociedade com o cidadão deve ser compensada por outra, do cidadão com a sociedade: o dever de pagar os seus impostos, de respeitar a lei, de cooperar com o trabalho social, enfim, de retribuir o esforço comum.
As particularidades da formação do capitalismo brasileiro lançaram o País na senda da desigualdade ao longo do processo de desenvolvimento. Enquanto a consolidação e expansão dos direitos nas economias e sociedades desenvolvidas data do pós-Guerra, no Brasil os ensaios de civilidade foram interrompidos pelo golpe militar. A tentativa de recuperar a autêntica e verdadeira Agenda Perdida encontrou guarida nos movimentos de redemocratização que desaguaram na Constituição de 1988. Tanto lá quanto cá, os avanços do Estado Social e dos direitos do cidadão não são acervo de um político ou partido, mas conquistas da população ao longo de décadas de participação democrática.
A ofensiva político-midiática deflagrada nos desvãos do impeachment não esconde seus propósitos: trata-se de retomar o poder formal para ajustá-lo ao poder real dos donos do poder. Na escalada autoritária, sobra munição para alvejar avanços sociais com a fuzilaria dos insensatos. Nesse ambiente ganham força as políticas econômicas empenhadas em purgar os “excessos” decorrentes dos programas sociais, ganhos salariais e expansão do crédito.
Os sintomas que corroboram esse diagnóstico estariam patentes no binômio déficit primário e inflação, impondo o aperto monetário e fiscal como único remédio capaz de nos redimir. A prova cabal dos “desmandos” estaria documentada na excepcional expansão das despesas nos últimos anos.
As tabelas 1, 3 e 4 registram o resultado primário do governo central e o comportamento das receitas e despesas acumuladas em cada período. Já o gráfico busca esclarecer o desempeno de receitas e despesas. A evolução e composição do resultado primário do governo central revelam a incapacidade da política fiscal em conter a queda da arrecadação afetada pelo declínio da atividade econômica e pela malfadada distribuição de isenções fiscais.
Para juntar ofensa à injúria, no ano da desgraça de 2015, as tropelias do ajuste reduziram drasticamente a participação dos investimentos. O “ajuste” fiscal em curso reduziu porcentualmente dez vezes mais os investimentos do PAC, se comparados com as despesas correntes.
Não se pretende menosprezar o problema do gasto público. A impossibilidade de sustentar indefinidamente um crescimento da participação do Estado na economia é evidente, e os dados confirmam que as despesas do governo central vêm crescendo acima do PIB, mas longe de ser um fenômeno recente. Seriam os gastos públicos como a água? A partir de certo ponto entram em ebulição e mudam seu estado, ou seria possível correlacionar a crise, que, sim, já se descortinava antes de 2015, com outras variáveis (tabela 5)?
O atual sinistro parece indecifrável sem a colaboração da política monetária. No período entre março de 2013 e junho de 2015 o BC promoveu uma elevação de 7 pontos na taxa Selic (de 7,25% para 14,25%). Comparando o terceiro trimestre de 2013, período posterior ao início da escalada de 96,5% da taxa Selic, com o terceiro trimestre de 2015, a Formação Bruta de Capital Fixo sofreu uma queda de 21,6%, o consumo das famílias de 4,5% e o PIB de 5,5%.
Ao fim de 2014, logo após as eleições, a necessária correção de preços administrados foi posta em prática carecendo de recomendável temperança. Em dezembro de 2014 a inflação dos preços administrados era de 5,32%, em fevereiro de 2015 chegou a 13,37% (tabela 4). O IPCA nos 12 meses anteriores a novembro de 2015 foi de 10,48%, no entanto, os preços administrados tiveram uma elevação de 17,95%, enquanto os preços livres subiram 8,28% e o câmbio sofreu desvalorização de 48,20%.
Mercadores ressaltam que os preços livres também se encontram acima da meta de inflação, mas a suposição de pressões de demanda encontra resistência nas evidências do colapso do produto e da renda. Os resistentes se apegam à hipótese da indemonstrável queda do produto potencial, uma esperteza estatística para dizer pouco.
Os efeitos do choque nos preços administrados e do câmbio nos preços livres não devem ser desprezados. Nos 12 meses anteriores a novembro a energia elétrica cresceu 51,27%, o etanol 27,75%, gás de botijão 23% e a gasolina 19,33%. A despeito das expectativas acerca das expectativas racionais, em vez de convencer o “mercado” das virtudes da austeridade monetária e fiscal, o que se observa é um aprofundamento dos flagelos que se desejava combater (inflação e recessão).
Embuçados nas máscaras da boa ciência, os sabichões atribuem a crise ao abandono do sagrado tripé e à adoção da nova matriz macroeconômica. Seria uma fraude intelectual, se lhes sobrasse inteligência para tanto. Os arquitetos da desgraça são adoradores da “velha meretriz macroeconômica”, cujo culto levou o mundo à tragédia financeira de 2008, ainda não debelada.
Ante a impossibilidade de um debate franco, honesto e civilizado com o rasteiro maniqueísmo positivista, vislumbramos a necessidade de uma nova abordagem, inspirada no do Manifesto Surrealista de André Breton. Disse Breton, há mais de 90 anos: “O positivismo, desde Santo Tomás a Anatole France, me parece hostil a todo tipo de elevação moral e intelectual. Tenho horror por considerá-lo resultado da mediocridade, do ódio e de vazios sentimentos de autossuficiência. Essa atitude engendrou livros ridículos e obras teatrais insultantes. Se alimenta incessantemente de notícias jornalísticas, atraiçoa a ciência e a arte, ao agrilhoar o público a seus gostos mais rasteiros”
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