11.20.2011

A madrugada sem guerra da Rocinha


O coração disparou. Não posso negar. Também pudera saí de casa com a seguinte fala de um oficial da Marinha “Estamos preparados para tudo. Vamos para a guerra”. Não é uma frase que não faça a adrenalina subir. Ainda assim não desisti. Peguei o ônibus e fui para a Rocinha, comunidade onde comecei minha atividade como jornalista. Foi lá que aprendi boa parte do que sei. Principalmente foi lá que aprendi a ter um olhar diferente sobre comunicação, favela e gente.
Morei em favelas uma boa parte da minha vida. Mas, se perguntarem onde está meu coração, posso responder sem pestanejar: Ele é da Rocinha. Foram dois anos de atividade jornalística ainda como estudante. Conheci pessoas fantásticas, ganhei um irmão (escolhido pelo coração) e comecei a descobrir que sou repórter. Portanto, não deixaria de estar lá.
Peguei uma van em Ipanema para chegar até a Rocinha às 21h (12/11). Logo recebi a primeira informação. Segundo o motorista da van, a ordem era encerrar a circulação de transporte alternativo às 23h. Aviso da polícia. Na van, uma moradora atendeu o celular. Era alguém preocupado. Pelo telefone, a moradora explicou porque estava voltando para casa apesar da ocupação policial. “Então, não vou deixar a casa sozinha, porque se deixar ele (policiais) podem entrar e quebrar minhas coisas. Então, preciso estar lá”. E completou: “Pois é, quando saí casa mais cedo fui revistada por um policial. Ele disse que era para ter paciência. E avisou que o tratamento que será dado para a gente dependerá da maneira que iremos tratá-los (policias). Já viu né? Repetiu isso duas vezes dizendo que tudo vai caminhar conforme nossa reação”.
A conversa releva duas coisas: a apreensão dos moradores de sofrerem abusos por parte dos policias e a nova rotina de todos os moradores da Rocinha. Agora, revistas serão frequentes e é preciso ter “paciência” para tudo, porque no estado de exceção imposto pela suposta guerra não querer ser revistado e não deixar os policiais entrarem em suas casa pode ser considerado uma ação de retaliação. Os grandes jornais não se cansam de repetir que “os moradores devem cooperar”. Mas, há o medo. O temor de que aconteçam abusos de autoridades que ocorreram na ocupação do Complexo do Alemão, ocorrida em 28 de novembro de 2010.
Quando cheguei à Rocinha às 21h16, já havia carros de polícia na entrada da comunidade, onde um dos primeiros acessos é a estrada da Gávea. Lá, policiais revistavam moradores. Mas nos outros acessos a movimentação era tranquila.  Ao contrário do que supus não fui revistada e nenhum policial me parou para perguntar aonde eu iria, mesmo carregando um colchonete.
Cheguei na redação da TV Tagarela acompanhada do meu irmão. Lá conversamos um pouco. Ele (morador da Rocinha desde sempre) estava visivelmente transtornado. Falou que estava com dor de cabeça. Mas, depois confessou que tudo que está acontecendo mexeu com ele. Ele tem medo. Um temor de algo que não sabe o que é. Tem medo que a cultura da favela seja completamente alterada. Tem medo do que pode significar sair do jugo do tráfico para estar sobre o julgo da polícia. E ele não está só.
Outro morador (também meu amigo) confessou. “Tenho medo. Um medo de que aconteçam coisas ruins. Não tenho opinião sobre a UPP. É uma coisa que será construída e que, ainda vamos ainda enfrentar. Mas, tenho clareza de uma coisa: vamos trocar as armas de um comando para ficar sob a mira das armas de outro comando. As armas seguem presentes e nós no meio”, disse.
Começamos a fazer a cobertura. Os moradores circulando normalmente chamaram a minha atenção, mas com o passar das horas as ruas foram esvaziando. Fomos comprar pão, mortadela, refrigerante e água para passar a noite. Na lanchonete, ficamos sabendo que num dos pontos da favela já tinha acabado a água.
Na volta vi que havia vendedores de uma empresa de canais de televisão a cabo. Entrevistei um dos funcionários, o Alexandre Ângelo. Ele contou que diferentes equipes vieram ontem (12/11) para a Rocinha vender pacotes de TV a cabo. Alexandre vendeu 20 assinaturas e faturou segundo ele, R$ 3 mil de comissão em um dia. “Agora a gente pode entrar e vender assinaturas. Antes não porque tínhamos medo de subir e adentrar na favela”, disse. Contudo, em seguida, ele se contradisse: “Entro em outras favelas: Jacaré, Arara, Mandela…”. Falei sobre a dicotomia das informações e ele se explicou: “Mas é que e nessas favelas, conheço a dinâmica e aí, consigo entrar”.  Ele resolveu não voltar para casa porque morar longe (no Jacaré) e quer aproveitar o momento bom de vendas para voltar a vender as assinaturas logo pela manhã. “Se der entro e vendo mais de manhazinha”, disse.
Voltamos para a redação. Da janela, observávamos a rua e pelo percurso percebemos que muitos moradores seguiam a vida “normalmente”. Estavam lanchando e bebendo cerveja nos bares. Mas, exatamente às 23h50, a favela mais barulhenta do Rio de Janeiro começou com um movimento muito estranho para qualquer um que conheça a Rocinha: ruas vazias e um silêncio que penetrou a comunidade. Foi a primeira vez que ouvir grilos na madrugada da Rocinha.
Chega à notícia que uma família de Niterói veio visitar bairros próximos (Barra, Gávea etc.). Aí, souberam da ocupação da Rocinha e resolveram simplesmente ficar na comunidade para ver a ação da polícia. Turismo esquisito esse.
O silêncio foi cada vez mais aumentando. Até que  ouvi no rádio que um morador tinha sido preso. Cheguei antes da imprensa tradicional. Ninguém foi apurar o que ocorria com o morador. Chegando lá soube que se tratava de um foragido da polícia. O criminoso estava preso na penitenciaria de Bangu 8, pelo crime de assalto a mão armada e estava com sintomas de overdose. Saiu do hospital de campanha do exército (montado dentro da quadra de samba da comunidade para atender os possíveis feridos). De lá, o policial levou o fugitivo para o camburão algemado e só aí, é que os fotógrafos e câmeras perceberam o furo. Ele foi o primeiro preso da Ocupação da Rocinha.
Voltei para redação e postei a nota no twitter e facebook. De repente, começamos a ouvir um estrondo. Eram os blindados da Marinha (tanques de guerras)  na auto-estrada da Lagoa-Barra. Às 4h10 começou a ocupação. Helicópteros começaram a darem rasantes interrompendo o silêncio. Chegou um amigo também jornalista na redação da TV Tagarela (local que estava) e descreveu uma situação difícil. “As casas na Rocinha estão com janelas fechadas e até as cortinas cerradas. Todos entocados em casa. No caminho, uma mulher segurou no braço e pediu, “Por favor, não matem ninguém”. Respondi para ela que também não queria isso”, contou ele.
Depois só o silêncio ensurdecedor algumas vezes interrompido pelo barulho dos helicópteros. A imprensa distribuída entre a principal via de acesso da Rocinha afoita por notícias de uma suposta “guerra”.
Pelo twitter, um dos especialistas mais respeitados em segurança pública no Brasil chamado Luís Eduardo Soares publicou: “Showtime. As únicas escaramuças ficarão por conta da cenografia de destroços e ruínas que são os rastros de uma história hipócrita. Preparem-se para imagens de guerra sem guerra. Depois de sustentar por décadas o tráfico na Rocinha, as polícias rompem à sociedade e dão show. Não haverá confronto na Rocinha. Aparato de guerra é absurdo. Efeito especial para show midiático-político. Soldados escorregarão no óleo e só”.
Faz sentido. Até o memento, 6h45, não houve qualquer confronto. Nem um tiro sequer.
P.S: Percebi na cobertura durante a madrugada muita informação desencontrada.  Pessoas que não conhecem a comunidade (jornalistas) supervalorizando coisas simples como lixo espalhado. O recolhimento de lixo é feito por garis voluntários, todos moradores. Presos em casa em virtude da ocupação policial, óbvio que eles não efetuaram qualquer recolhimento. Todos os dias são retirados da Rocinha 100 toneladas de lixo. O recolhimento e a educação ambiental é um problema em todas as favelas do RJ. Alguns veículos de comunicação também informaram pelo twitter que faltou luz na comunidade. Não faltou. Além disso, depois que o homem que passou mal foi preso como fugitivo, começou especulações se de fato ele teria passado mal ou tentado um fuga. Somente exames poderão dizer se de fato ele teve uma overdose ou não. Até o resultado, tudo beira a especulação.
Por hora, o que vemos às 6h45 é moradores seguindo a pé pelo túnel Zuzu Angel para irem ao trabalho, além de outros retornando para casa.
* * *
Deixo aqui o relato feito há dois dias atrás pelo jornalista Cleber Araújo, também morador da Rocinha. Um relato bem revelador. Como disse uma jornalista (amiga) espanhola “En unas horas, entrarán a la favela de Rocinha, en Río de Janeiro para acabar con los narcos pobres”. Faz sentido!

UPP: a hora e a vez da Rocinha











Numa guerra particular por audiência, a instalação da UPP na Favela da Rocinha é o principal assunto midiático. Na verdade, não se fala em outra coisa. Na tentativa de conquistar um número maior de telespectador, as emissoras focam toda sua atenção nesse acontecimento histórico prestigiando o público com uma cobertura “exclusiva”, com jornalistas posicionados nas vias de acesso a comunidade prontos para entrar em operação junto com a polícia - dispostos a arriscar a vida por uma matéria sensacionalista. Não podemos esquecer os especialistas e não-especialistas esclarecendo a sociedade sobre todo o processo de ocupação.
Foi justamente as meias-verdades ditas pelos não-especialistas que me motivou a escrever esse artigo. Vamos a elas:
O governo está retomando as áreas ocupadas pelas facções criminosas. É importante questionar e refletir sobre essa afirmação.  As facções criminosas só se desenvolveram e se organizaram em áreas abandonadas pelo estado, ou seja, nas favelas. Que nunca contaram com a presença do Estado nos setores de educação, saúde, saneamento básico, esporte, lazer, cultura e segurança pública. Então, por que o governo está retomando essas áreas?
Os moradores da Rocinha são reféns do tráfico. Essa afirmação nem meia verdade é. Não me entendam mal, não estou aqui para defender bandidos. Mas na Rocinha – estou falando exclusivamente da realidade dessa comunidade – os traficantes não impediam o direito de ir e vir dos moradores; não determinavam horários de chegar ou sair; nem sequer paravam visitantes para saber para onde estavam indo, até porque numa comunidade onde vive mais de 100 mil habitantes é difícil saber quem é morador e quem não é. Os moradores são na verdade reféns do medo de uma guerra interna entre bandidos, da tentativa de invasão de outra facção para tomar o poder e até mesmo de um possível confronto entre bandidos e polícia. Medo de estar no local errado, na hora errada e acabar sendo vítima dessa guerra urbana que tira a vida de tantos inocentes.
Também gostaria de responder a pergunta clássica feita pelos jornalistas aos moradores da Rocinha sobre a perspectiva em relação a instalação da UPP na comunidade.
A resposta também já se tornou clássica: MELHORIAS. A perspectiva de todos os moradores de comunidades periféricas com a chegada da UPP é de melhorias. Mas não relacionado diretamente a presença da polícia. Somente a instalação de uma UPP não muda em nada a realidade do cidadão de bem da Favela. Para entender o significado da resposta é preciso contextualizar a palavra MELHORIAS a esperança dos moradores de que, o Estado se faça presente no cotidiano da comunidade em outros setores sociais e políticos além da segurança pública.
A esperança de todos na comunidade é que a instalação da UPP na Rocinha não seja apenas para fazer média com a sociedade, mas que seja para o BEM-COMUM. Que não seja somente o símbolo da conquista de um território que antes estava entregue nas mãos do poder paralelo, mas que seja o símbolo histórico da primeira etapa da apropriação do Estado sobre comunidades que antes se encontravam abandonadas a própria sorte.
Cleber Araujo é jornalista e morador da Favela da Rocinha.

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