As reformas de base foram o alvo, hoje o são o Bolsa Família e o Minha Casa Minha Vida
por Luiz Gonzaga Belluzzo
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publicado
21/12/2014 08:37
Acervo / Estadão Conteúdo
Em lugar dos tanques de 64, chega a intolerância dos mercados e da mídia
O jovem professor
infiltrou-se na passeata dos que pediam intervenção militar. Eram 200,
talvez 300 gatos-pingados que caminhavam pelas ruas de São Paulo
carregando e exibindo cartazes conclamando os militares a repetir o
gesto trágico que assolou o País ao longo de 21 anos, entre 1964 e 1985.
Entre as faixas e cartazes, o professor foi atraído pela
elegante quarentona. De cenhos e punhos cerrados, ela berrava slogans
contra os imaginários arreganhos da “República Bolivariana”. O rapaz
caminhou algumas centenas de metros na companhia da manifestante.
Engatou uma conversa. Lá pelas tantas perguntou: “O que é essa tal de
República Bolivariana”? Resposta: “É o que temos hoje no Brasil. Essa
Bolsa Família distribui dinheiro para os vagabundos e o próximo passo é
organizar movimentos de invasão de nossas casas e apartamentos para
distribuir os imóveis para esses bandidos. O Minha Casa Minha Vida é
isso”.
A visão e a linguagem dos manifestantes de hoje e de seus
sequazes nas redes sociais são exatamente as mesmas que fomentaram e
antecederam o golpe de 1964. Na época, o alvo eram as Reformas de Base.
Hoje, são o Bolsa Família e o Minha Casa Minha Vida. Mudam as caras e as
modas, mas a mensagem e os propósitos continuam os de sempre.
Com semelhantes apelos “morais” e ideológicos, foi montado
o arranjo reacionário e antidemocrático que o País teve de suportar ao
longo de 21 anos. Neste pacto civil-militar juntaram-se os cosmopolitas
da finança e dos negócios, uma fração majoritária das classes médias –
ilustrada, semi-ilustrada e deslustrada – as velhas oligarquias
regionais, e a cambada da tripa-forra que quer sempre se locupletar sem
esforço.
Nas façanhas da social socialite brasileira,
nada mais velho do que o novo. Observo um empenho permanente na troca
de máscaras, enquanto o rosto do poder real permanece esculpido em sua
pétrea solidez. O disfarce de maior sucesso no momento é confeccionado
por mãos hábeis. Os artesãos da proeza são altamente qualificados nos
ofícios do continuísmo com continuidade. Tão hábeis são os
manufatureiros da casa-grande que encaixam a persona, sem ajustes
ou atritos, no rosto de ex-exilados políticos, nos filhos e netos de
bravos lutadores contra os esbirros da ditadura e nas figuras que
outrora circulavam nos campanários da esquerda radical e
“revolucionária”.
Os miasmas da intolerância e do preconceito emanam dos
destroços sociais e culturais herdados, em boa medida, do período de
obscurecimento imposto pelo regime de exceção. Os despojos da civilidade
circulam pelo Brasil carregados nos ombros da prepotência dos “sabidos”
e à sombra das vulgaridades do Big Brother e assemelhados.
O Partido dos Trabalhadores acenava com
uma proposta reformista para chegar ao governo da República, enfrentando
os ninhos de resistência abrigados nas casamatas conservadoras.
Alcançado o poder, o PT cumpriu as promessas de soerguer a vida dos mais
pobres e de combater a miséria absoluta. Abriu milhares de vagas no
sistema educacional público e privado para a educação dos que não tinham
vez.
Sucumbiu, no entanto, às tentações da
política como meio de vida e renunciou às virtudes da política como
vocação. Os recém-chegados deveriam ter à cabeceira a Odisseia.
Recomenda-se reler diariamente a passagem em que, advertido por Circe,
Ulisses tapa os ouvidos da tripulação e se amarra ao mastro do navio
para resistir ao canto das sereias.
As trapalhadas não são por certo um
acidente. Tal despreparo é típico de quem não imaginava ser vidraça na
vida, alvejada pela mesma artilharia moralista costumeiramente despejada
sobre os adversários. As lideranças do partido deveriam saber que, na
luta política e no embate eleitoral não há perdão e não adianta bater no
peito. As denúncias devastadoras do Petrolão são mal respondidas,
juntando uma miserável prostração política à incapacidade de autoanálise
e autocrítica.
Diz
o filósofo italiano Domenico Losurdo, de irreparáveis credenciais
progressistas, que a prática de negar a boa fé dos outros, dando a
própria como garantida, é dogmatismo da inteligência e farisaísmo moral.
A “maioria” situacionista parece disposta a barganhar
ponto a ponto as vantagens exigidas para enfrentar a saraivada de
objurgatórias da oposição. Diante do caráter fragmentário e
contraditório dos interesses em jogo, os aliados do governo podem
“arrepiar carreira” quando tiverem de encarar paradas mais duras do que o
“ajustamento” da LDO.
Nesse episódio, os asseclas dos mercados
financeiros acoitados no parlamento dispararam discursos e impropérios
exigindo resultados fiscais dificilmente alcançáveis numa economia em
forte desaceleração. Quem é menos esperto e mais prudente sabe que a
economia se move hoje a um passo da recessão. Tocar a bola no compasso
do ajuste fiscal, sem as benesses da demanda chinesa por commodities é
chamar carrinho por trás. O debate a respeito da qualidade da política
econômica assumiu tons que deambulam entre o trágico e o pitoresco.
É fácil fazer planos gerais, estabelecer metas, apresentar
cifras. Mas será muito difícil aglutinar forças e recompor interesses
se as medidas desatarem o desemprego e, sobretudo, se atingirem os
recém-chegados à “nova classe média.”
Daí a redobrada intolerância dos mercados e da mídia com
as ideias divergentes e a satanização de outras propostas de política
econômica. Para exorcizar o demo, os peralvilhos da finança ameaçam com o
rebaixamento do Brasil pelas agências de classificação de risco. A
perda do investment grade é esfregada de hora em hora na cara dos brasileiros.
Epílogo globalizado. O novo século, o XXI, renovou a
novidade do fim do século XX. Esparrama-se a percepção de que as coisas
podem andar para trás, que o progresso individual e coletivo não é uma
fatalidade. Esse sentimento é cada vez mais intenso. Ele assombra as
classes médias que se tornaram afluentes nos Estados Unidos e na Europa
ao longo do período do capitalismo domesticado.
É a nostalgia do
futuro, um sentimento que reflete as angústias que povoam as almas de
homens e mulheres, pasmos diante de uma situação econômica e social que
ronda ameaçadoramente suas vidas e as de seus filhos.
As ondas nostálgicas não são incomuns no mundo da cultura
popular de massa. Na maioria das vezes esses surtos de nostalgia nascem e
desaparecem sem deixar vestígios, porque podem estar associados ao
amadurecimento das gerações que começam a olhar para trás. Se assim fosse o fenômeno seria apenas um capítulo da sociologia da moda e da psicologia das massas.
Desta vez, porém, as evidências apontam
para algo mais profundo. Os jovens de 20 e poucos anos entregam-se aos
devaneios de um passado que não viveram. A explicação mais óbvia para
este revival sem memória é a negação das condições do presente.
Desemprego em massa nas faixas etárias mais novas, salários em queda,
estagnação pessoal. O filho do operário da Renault ou da Fiat virou
doutor, mas trabalha no delivery da Pizza Hut.
Alguém mais atilado – ainda que não necessariamente mais
esperto – pode concluir que estamos diante de um processo de
decomposição dos significados que estruturam o pensamento sociopolítico
ocidental em suas duas vertentes gêmeas, frutos do Iluminismo, o
liberalismo e o socialismo.
O sonho ocidental de construir o habitat humano somente à
base da razão, repudiando a tradição e rejeitando toda a transcendência,
chegou a um impasse. A razão ocidental não consegue realizar
concomitantemente os valores dos direitos humanos universais, as
ambições do progresso da técnica e as promessas do bem-estar para todos e
para cada um.
O único universalismo disponível na praça é o domínio
descontrolado dos controladores do dinheiro que hoje se instaura sob o
escudo protetor dos monopolistas dos meios de comunicação. A submissão
das relações sociopolíticas ao totalitarismo argentário-midiático
imobiliza o indivíduo de Adam Smith – aquele cuja liberdade e busca do
autointeresse realiza o bem-estar coletivo – e desconstrói a utopia do
“homem novo” almejada pelos socialistas. Imobiliza e desconstrói os
indivíduos para esmagá-los nas engrenagens de um sistema cuja lógica é
tão somente seguir sua própria lógica.
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