12.08.2017

Juca Kfouri e Nelson Rodrigues



Ontem, vi na televisão uma entrevista de Juca Kfouri a Manuel da Costa Pinto. O colunista esportivo falava do seu livro “Confesso que perdi”, um título que em si já é um achado, pela mistura de Pablo Neruda, do livro Confesso que Vivi, e Darcy Ribeiro, que declarou certa vez: “eu detestaria estar no lugar de quem me venceu”.
Juca Kfouri, numa entrevista, é imperdível. Ele chega a ser melhor que na escrita. Inteligente, com uma atenção viva que capta o sentido das palavras no ato como se fosse um violeiro repentista. Em mais de uma ocasião ele se mostra culto, maduro de experiência feito, digno, como tem sido em seu trabalho jornalístico. Muito bem. Isso posto, vamos a um dos seus erros de julgamento na entrevista.
Lá pras tantas, ele fala ao entrevistador que Nelson Rodrigues foi um ótimo cronista em seu tempo. Lamento não ter o vídeo aqui, porque cito de memória as palavras de Juca Kfouri, mas este foi o sentido da sua fala:
“Nelson Rodrigues foi um bom cronista? Vírgula. Duvido que ele teria espaço no jornal hoje. As suas crônicas teriam lugar no caderno de cultura, mas no de esportes, não. Hoje não cabe mais aquilo de ‘o tape é burro’. O que é bem diferente de João Saldanha – ele escreve para hoje. Saldanha teria lugar de destaque no caderno de esportes agora”.
Primeiro, destaco que se deve fazer uma distinção entre comentarista esportivo e cronista esportivo. Do primeiro se exige o conhecimento do esporte e o talento de falar para o grande público. Do segundo se exige primeiro o saber escrever e depois a informação esportiva. Essa divisão, bem sei, põe limites no que a prática humana confunde e supera. Mas se fôssemos separar a fórceps, diríamos que João Saldanha era o primeiro sem segundo comentarista esportivo. E Nelson Rodrigues, o primeiro no mundo da crônica esportiva. A esse elogio, talvez Nelson Rodrigues até replicasse: “Olhe esse primeiro aí. Está me chamando de Nelson, o Neandertal”,
Em segundo lugar, não é justo comparar, ou mesmo opor os personagens mais que pessoas, João Saldanha a Nelson Rodrigues. Opor e comparar fora da política, esclareço, porque João Saldanha era comunista e Nelson Rodrigues um jornalista de direita. João, o João sem medo, foi um homem que entendia muito de futebol e escrevia como uma extensão da sua vida nos campos e no microfone do rádio. Já o trágico Nelson Rodrigues era um escritor, um escritor de gênio apaixonado por futebol. Nele falava mais alto o indivíduo de alta voltagem de espírito e de observações impagáveis.
Entre João Saldanha e Nelson Rodrigues devemos ficar com os dois. Em diferentes exigências da alma, eu acrescentaria. De João Saldanha lembraremos o comentarista aberto, corajoso, sincero, que corrigia no ato o locutor esportivo que gritava diante de um escanteio: “Quase, quase era gol, hem, João Saldanha?”. E ele, no ato: “Não, daquela posição a geometria condena”. Ou na sua crônica histórica sobre Garrincha no México:
“Estava muito difícil fazer gol. Poucas vezes vi um jogo disputado com tanta seriedade e respeito mútuos. Mas houve um espetáculo à parte. Mané Garrincha foi o comandante. Dirigiu os cem mil espectadores. Fazendo reagirem à medida de suas jogadas. Foi ali, naquele dia, que surgiu a gíria do ‘Olé’, tão comumente utilizada posteriormente em nossos campos. Não porque o Botafogo tivesse dado ‘Olé’ no River. Não. Foi um ‘Olé’ pessoal. De Garrincha em Vairo. 
Nunca assisti a coisa igual. Só a torcida mexicana com seu traquejo de touradas poderia, de forma tão sincronizada e perfeita, dar um ‘Olé’ daquele tamanho. Toda vez que Mané parava na frente de Vairo, os espectadores mantinham-se no mais profundo silêncio. Quando Mané dava aquele seu famoso drible e deixava Vairo no chão, um coro de cem mil pessoas exclamava: ‘Ôôôôô’! O som do ‘olé’ mexicano é diferente do nosso. O deles é o típico das touradas. Começa com um ô prolongado, em tom bem grave, parecendo um vento forte, em crescendo, e termina com a sílaba ‘lé’ dita de forma rápida. Aqui é ao contrário: acentua-se mais o final ‘lé’: ‘Olééé!’ – sem separar, com nitidez, as sílabas em tom aberto.
Verdadeira festa. Num dos momentos em que Vairo estava parado em frente a Garrincha, um dos clarins dos ‘mariaches’ atacou aquele trecho da Carmem que é tocado na abertura das touradas. Quase veio abaixo o Estádio Universitário”.
E Nelson Rodrigues sobre o mesmo Garrincha, num de seus perfis imortais:
“Nos acrobatas chineses o que existe é o esforço, é a técnica, é o virtuosismo, ao passo que Garrincha é puro instinto. Possui uma riqueza instintiva que lhe dá absoluto destaque sobre os demais. Até Deus, lá do alto, há de admirar-se e há de concluir: – ‘Esse Garrincha é o maior!’. O ‘seu’ Mané não trata a bola a pontapés como fazem os outros. Não. Ele cultiva a bola, como se fosse uma orquídea rara”.
Cultivar a bola como uma orquídea rara – isso já deixou de ser futebol e penetrou na delicadeza da arte, no mesmo passo em que vemos a fina e macia pétala que se toca com a percepção da vida fugaz. Mas é uma bola. É uma crônica.
Nelson Rodrigues arrancava uma graça e humor em frases que guardavam sempre os mesmos recursos, imagens, mas que ainda assim surpreendiam. Ele na crônica escrevia à semelhança de Garrincha, que driblava para um só lado, e todos sabiam qual, mas ainda assim eram surpreendidos. Nelson usava sempre o exagero, as expressões mais despudoradas, melodramáticas, truques de circo na hipérbole, com o maior despudor e cinismo, mas ainda assim o leitor era driblado, assim como os marcadores de Garrincha. Que encanto! Com a diferença que a gente era driblado, mas não se frustrava, porque enchia o peito de felicidade.
Por que não republicam Nelson Rodrigues todas as semanas? No paraíso dos jornais, se houver, teriam lugar João Saldanha e Nelson Rodrigues na sua página de esportes. Lado a lado, mais as falas de Juca Kfouri.

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