Dezenas de crianças já fizeram dois transplantes de fígado em São Paulo.
Mães viajam milhares de quilômetros para possibilitar tratamento.
Justina Olímpio tinha medo das cidades grandes, mas teve que deixar a pequena Alagoinhas, no interior do Piauí, e enfrentar dois dias e duas noites de ônibus para, sozinha, trazer seu filho recém-nascido para São Paulo. Com uma doença grave no fígado, Francisco tinha apenas um mês de vida e, com a pele amarela, só poderia ser tratado na capital paulista.
Esse era o começo de uma jornada de idas e vindas entre o Rio Grande do Norte e São Paulo. "Vim quatro vezes de ônibus e doze vezes de avião", conta a mãe que, por falta de recursos, teve que fazer as 16 viagens sem a companhia de ninguém além do menino pequeno.
Mas todo o esforço não evitou que, depois de quatro anos de tratamento, os médicos dessem o fígado de Francisco como perdido. Caso de transplante urgente, e Justina não pensou duas vezes: se tinha dado a vida ao filho, ofereceu a ele um pedaço de seu corpo. Em dezembro de 2005, cirurgiões do Instituto da Criança tiraram parte do fígado dela e colocaram no menino.
O que parecia ser o fim do sofrimento foi o início da sua maior angústia. Francisco teve uma trombose nas pequenas veias transplantadas, e entrou em coma. Precisava de um novo transplante. "Ele ficou uma semana de espera entre a vida e a morte", conta.
A ajuda, dessa vez, veio da família de um doador, morto, de 42 anos. A atenção à saúde do menino fez com que Justina ficasse um ano e três meses em São Paulo sem ver a filha, então com dez anos. O marido, sem condições de visitá-la, pôde vir apenas quando ela doou o fígado.
Cinco anos depois, Francisco ainda precisa vir a São Paulo para acompanhamento médico, mas já brinca, vai à escola e, para quem não o conhece, não parece ter passado por dois transplantes dos mais complexos.
445 transplantes
A história de Justina e Francisco se repete com frequência no Instituto da Criança, em São Paulo, que já realizou 445 transplantes de fígado em crianças desde 198"Desses, cerca de 40 são retransplantes. Recebemos todo mundo, do Brasil inteiro", conta o cirurgião pediátrico Uenis Tannuri.
Valeska da Costa, de dois anos, e Francisco de Sá, de nove, já passaram por dois transplantes de fígado. As visitas constantes ao hospital uniram as famílias das crianças. (Foto: Iberê Thenório/G1)
O problema que mais exige transplantes de fígado em crianças, segundo o médico, é a atresia das vias biliares, doença que obstrui pequenos canais que ligam ao fígado a outros órgãos. Os sintomas aparecem logo que a criança nasce, e em muitos casos o transplante é inevitável.
"A criança entra na fila [pela espera de órgãos] assim como os adultos, mas cerca de um terço dos transplantes que fazemos é intervivos, com o fígado da mãe ou do pai", conta.
Como tem capacidade de se regenerar e crescer, o fígado é um órgão que pode ser transplantado parcialmente, possibilitando a retirada de partes de órgãos de adultos para o uso em crianças pequenas.
Tannuri explica que a cirurgia é complicada, pois os canais, veias e artérias ainda são muito pequenos. "As estruturas são muito delicadas, e as crianças têm problemas de coagulação muito graves."
Valdelúcia de Andrade, do Rio Grande do Norte, está há um ano e meio em São Paulo para acompanhar Valeska. (Foto: Iberê Thenório/G1)Um ano e meio longe de casa
Foram justamente os sangramentos depois do transplante que levaram a pequena Valeska Gomes da Costa, então com um ano e onze meses, a trocar de fígado duas vezes, como ocorreu com Francisco.
Sua mãe, Valdelúcia Gomes de Andrade, a trouxe sozinha de Natal para São Paulo no final de 2008, com a expectativa de voltar em algumas semanas. "Ela estava muito esverdeada".
Um ano e meio e dois transplantes depois, as duas ainda não voltaram ao Nordeste. Valdelúcia conseguiu se hospedar na casa de uma ex-patroa na Zona Leste da capital paulistana e, por falta de recursos, os parentes nunca puderam vir. Valeska, que já tem dois anos, anda e fala, praticamente não conhece os dois irmãos mais velhos.
Solidariedade
Na jornada do interior do Brasil para São Paulo, o que ajuda muitas mães é chegar ao Instituto da Criança e fazer amizade com quem passa pelo mesmo problema. "Meu filho tinha uma doença que eu nunca tinha ouvido falar. Fiquei muito assustada. Quando vi outros casos, crianças amarelas como a minha, me acalmei", conta Justina, mãe de Francisco.
"Aqui a gente fez uma família. Conheço muitas crianças que hoje estão bem, e ainda converso com elas por telefone", relata Valdelúcia, mãe de Valeska, que pretende voltar à Natal e rever os outros dois filhos na próxima semana.
G1.com
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