No mundo da reprodução assistida, é difícil determinar o que é certo ou errado. Na falta de lei específica, os médicos acabam fazendo o que querem
Duas características de Roger Abdelmassih sempre infernizaram seus subordinados: a extrema vaidade e a obsessão por ser o primeiro a lançar no Brasil toda e qualquer inovação no campo da reprodução assistida. Não admitia ser o segundo. Certa vez, ficou enfurecido ao saber que um concorrente anunciara determinada técnica antes dele. Esbravejava pela sala num jargão jornalístico que nada tinha a ver com medicina, mas que a assessora de imprensa era capaz de reconhecer como algo gravíssimo: – Tomamos um furo. Tomamos um furo. Não acredito. Isso não pode ser. Não pode ficar assim.
A moça que ouviu isso pediu demissão logo depois, como tantos outros profissionais de comunicação que mal esquentavam a cadeira naquela clínica e já decidiam partir para outra.
Quem conviveu diariamente com Abdelmassih sabe que ele sempre apresentou um comportamento difícil de lidar. Atualmente, é acusado de crimes horríveis e de infrações éticas às normas do Conselho Federal de Medicina (CFM). Talvez a megalomania ajude a explicar por que ele tenha se arriscado tanto e confiado tanto na impunidade. A chave para entender o caso Abdelmassih é separar os crimes das infrações éticas. Enquanto o estupro, o abuso sexual, o aborto e o estelionato são crimes bem definidos no Código Penal, as infrações éticas são apenas isso, infrações éticas. As duas resoluções do CFM (de 1992 e de 2010) que procuram botar ordem no campo da reprodução assistida não têm força de lei. O médico que as infringe está em desacordo com as normas estabelecidas por seus pares. Mas não comete crime algum.
No mundo da reprodução assistida, é difícil determinar o que é certo e o que é errado, o que pode e o que não pode. A fronteira que separa o inescrupuloso do inovador é, quase sempre, determinada por razões culturais. Às vezes, o crápula de hoje se torna, anos depois, o pioneiro merecedor do Nobel de Medicina. Foi assim com Robert Edwards, o criador de Louise Brown, o primeiro bebê de proveta. Em 1978, ele foi execrado pelo Vaticano e condenado por grande parte (talvez a maioria) da sociedade. Em 2010, recebeu o Nobel de Medicina.
E adivinhe onde Louise Brown comemorou os 30 anos da primeira fertilização in vitro? Em São Paulo, numa festa promovida por Roger Abdelmassih. O brasileiro fazia questão de demonstrar seu poder e sua proximidade com as estrelas desse campo. Não escondia que era amigo de Severino Antinori, o médico italiano que causou celeuma em 2001 ao declarar que estava perto de clonar o primeiro ser humano. Nessas ocasiões, os poderosos e as celebridades brasileiras saudavam Abdelmassih como “o papa” da reprodução assistida.
Hoje, além de ter sido condenado por crimes de estupro e abuso sexual, ele também poderia ser acusado de estelionato (ao enganar seus pacientes), de tentativa de aborto e de praticar técnicas que ferem as resoluções do CFM. É importante lembrar que sempre fez isso publicamente. Oferecia aos casais a opção de escolher o sexo do bebê. Deu entrevista na TV e apareceu em reportagens na imprensa declarando que fazia isso. É acusado também de fazer manipulação genética, por oferecer a suas clientes uma técnica conhecida como rejuvenescimento de óvulos, em que o citoplasma do óvulo de uma mulher mais jovem é injetado no óvulo de uma paciente mais velha. Depois da fecundação, a técnica pode gerar um embrião com patrimônio genético do pai e de suas mães. Ele anunciou, orgulhoso, esse método em diferentes órgãos de imprensa e no site da clínica. A técnica só passou a ser considerada crime em 2005, com a aprovação da Lei de Biossegurança. Antes disso, Abdelmassih era só um “marqueteiro” que fazia os concorrentes morrer de inveja ou de vergonha. Nunca foi punido. Simplesmente porque as práticas que anunciava não configuravam crime.
Ele é acusado também de praticar eugenia, porque teria oferecido a casais a possibilidade de escolher características físicas do bebê, como cor de olhos ou cabelos. É possível que isso tenha sido mesmo ofertado, mas aí o caso assume ares de charlatanismo. No mundo todo, as clínicas de reprodução ainda não dispõem de uma técnica capaz de produzir a cor dos olhos e dos cabelos de um embrião. Essas características são determinadas por vários genes, espalhados por diversos cromossomos.
LIMITES
Laboratório de uma clínica de fertilização na China. O que vale em alguns países pode ser inaceitável para outros
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A discussão de que o Brasil precisa deve ser feita sem preconceitos ou dogmas. Deve ser clara, aberta para as novas possibilidades da ciência e para a conformação familiar no século XXI. Os exemplos do exterior fornecem interessantes subsídios para ela. A escolha do sexo do bebê é algo perfeitamente aceitável nos Estados Unidos, na Espanha, na Dinamarca, na Finlândia e em muitos outros países. A Sociedade Europeia de Fertilidade recomenda a biópsia de embrião (extração de uma de suas células, antes de ele ser implantado no útero, em geral para diagnosticar doenças genéticas) quando o casal deseja escolher o sexo da criança.
A venda de óvulos e de esperma é crime no Brasil. Nos Estados Unidos, é legalizada. Na Espanha, a mulher que deseja ceder seus óvulos recebe uma ajuda de custo de E 900. No Leste Europeu, existem sites em que o cliente escolhe as características físicas da doadora. O serviço é anunciado até em revistas de bordo. O mundo está errado e o Brasil está certo? A resposta envolve ética, cultura e religião. O caso de Abdelmassih revela que discuti-la é mais que urgente.
CRISTIANE SEGATTO
Revista Época
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