01/12/2014
por: Saul Leblon
Dizer que o segundo mandato da Presidenta Dilma será um governo em disputa é correto mas ainda insuficiente para caracterizá-lo.
E, sobretudo, para antever o que vem pela frente.
O requisito da exatidão não é um preciosismo conceitual. Há consequências políticas em jogo.
Um governo em disputa, dentro de uma ampla coalizão de interesses, assim foram todos os mandatos conquistados pelo campo progressista desde 2002.
A singularidade atual não deriva apenas do grau da disputa, sem dúvida o mais extremado desde o dramático torniquete armado contra o primeiro governo Lula, em 2003.
A composição do novo ministério é um reflexo do ponto a que chegamos.
Representantes da agenda derrotada pelo voto popular assumem funções importantes no comando da economia numa discutível tentativa de se mitigar o cerco dos mercados ao governo vitorioso nas urnas.
A tensão é clara, mas ainda não esgota a especificidade do que está em jogo.
A concessão reflete o entendimento de que os efeitos cumulativos da crise internacional recairão com mais força sobre o país nos próximos anos.
A reversão do ciclo de alta das commodities no mercado internacional estreitou, de fato, a margem de manobra na acomodação dos conflitos inerentes à luta pelo desenvolvimento.
Trata-se de uma mudança substantiva em relação a tudo o que já se viveu nos últimos doze anos.
Será mais complexo, inevitavelmente mais conflitivo, governar em favor da maioria e da justiça social.
Não é correto, porém, e menos ainda sensato, atribuir todos os desafios e riscos do próximo período à espiral descendente nos mercados globais.
Não se subestima a nitroglicerina social acumulada em um mundo em que a Europa, e tudo o que ela representou um dia, desmancha em um solvente deliberado de desemprego e deflação. A China reduz quase à metade seu impulso de crescimento. E os EUA pilotam uma recuperação anômala em que a finança regurgita lucros mas o avanço do PIB não se reflete na renda de uma classe média, cujo poder de compra persiste abaixo do patamar pré-crise.
Que esse trem descarrilado avance pelo sétimo ano desde a implosão a ordem neoliberal, na mais lenta, incerta e anêmica recuperação de todas as grandes crises capitalistas do século XX, dá a medida do quão longe se encontram as margens do rio revoltoso em que flutua o futuro brasileiro.
A correnteza requisita cautelas e ajustes.
Mas há distorções locais de igual gravidade que não podem mais ser subestimadas, sob pena de se aleijar a capacidade de resistência diante do moedor de carne interno e externo.
A economia brasileira resistiu à lógica da restauração neoliberal nos últimos anos, mas deixou aberto um flanco que agora ameaça reverter suas conquistas e inviabilizar outras novas.
A verdade é que a largueza das mutações registradas na sociedade desde 2003 não se fez acompanhar de uma contrapartida de representação política suficiente para evitar o risco desse revés.
Viveu-se, em grande parte, um bonapartismo do PIB.
O incremento da riqueza permitiu que o Estado deslocasse fatias maiores da renda aos mais pobres, sem triscar em cinco séculos de patrimônio acumulado pelos endinheirados.
A maré cheia ensejou uma travessia ao largo de questões distributivas mais estruturais, a exemplo daquelas sublinhadas pelo moderado Thomaz Piketty.
A saber: a taxação das heranças e das grandes fortunas, por exemplo, sem o quê, no entender do economista autor de um enciclopédico estudo sobre a desigualdade e a finança, a polarização social subsiste mesmo nas entranhas de um crescimento robusto.
O Brasil avançou muito nos últimos anos explorando rotas de menor resistência e indo além delas em alguns casos e setores.
Mas a crise do bonapartismo do PIB evidenciou os limites dessa associação a frio entre desenvolvimento e justiça social.
Durante muito tempo considerou-se que essa era uma ‘não-questão’; que tudo se resolveria no piloto automático de uma inclusão pelo consumo, com avanços incrementais que se propagariam mecanicamente das gôndolas das supermercados à correlação de forças na sociedade.
A meia verdade em céu azul de brigadeiro dissipou-se em meio à tempestade global que não cessa.
O baixo incentivo ao engajamento dos grandes contingentes ingressados no mercado nos últimos anos revela agora seu calcanhar de Aquiles.
Não se trata de depreciar conquistas indiscutíveis da luta contra a desigualdade, sugestivamente endossada pela quarta vez em seguida nas urnas de 2014, no mais longo ciclo de um mesmo projeto no poder.
Trata-se, isto sim, de fazer desse legado um mirante para enxergar melhor o futuro. Sob risco de apenas se substituir o bonapartismo do crescimento pelo cesarismo do ajuste.
Ou seja, simplesmente trocar a delegação antes atribuída ao PIB pela carta branca sugerida agora ao ‘gestor técnico’, cujo manejo contracionista requisita dos principais atingidos a mesma passividade contemplada no ciclo de alta do crescimento.
O conjunto remete de volta à natureza singular da disputa em jogo na política brasileira hoje.
É certo que há um governo em disputa na coalizão de interesses reunidos no segundo mandato da Presidenta Dilma.
Mas há algo além disso.
E é justamente o que distingue a gravidade do período que se inicia.
E essa não é uma questão acadêmica. É uma questão de escolha estratégica.
Trata-se de encarar de frente uma lacuna de que sempre se ressentiu a agenda progressista desde a chegada ao poder, em 2003.
A lacuna da coerência entre meios e fins; entre o desenvolvimento que se quer para o Brasil e a democracia necessária para construí-lo.
Endossar falsas convergências redentoras, a exemplo do ‘fazer mais com menos’, despolitiza, confunde e infantiliza a sociedade.
Oculta-se a verdadeira luta de sabre no escuro que será o processo em marcha de dividir a fatura da crise e instaurar um novo ciclo de crescimento no Brasil.
Ao não distinguir uma coisa de outra, corre-se o risco de endossar a tese que pretende equacionar a desordem atual com poções adicionais do veneno que a originou.
A dissonância entre um Brasil que se propõe a construir um Estado de Bem-estar social tardio e a restauração neoliberal não é um maniqueísmo.
Tampouco um cacoete desenvolvimentista.
Trata-se de uma contradição que a crise escancarou.
Não se incorpora 60 milhões de ex-miseráveis e pobres ao mercado sem mexer nas placas tectônicas de uma ‘estabilidade capitalista’ alicerçada em uma das mais desiguais estruturas de distribuição de renda do planeta.
Sobram assim duas opções.
Avançar e dar coerência estrutural e política à emergência desse novo ator, ou recuar e devolvê-lo à margem de origem, colocando-o em modo de espera até a próxima maré cheia.
Até um novo ciclo de bonapartismo do PIB.
Essa é a singularidade urgente do segundo mandato da Presidenta Dilma.
Não é apenas a economia que está em jogo.
É uma democracia que está em disputa.
O seu avanço, ou a sua prostração, determinará a natureza do ajuste e o futuro do desenvolvimento no país.
Ademais de um governo em disputa, há, sobretudo, uma concepção de democracia em disputa no país. Não é um assunto de tertúlia acadêmica.
Dizer que o segundo mandato da Presidenta Dilma será um governo em disputa é correto mas ainda insuficiente para caracterizá-lo.
E, sobretudo, para antever o que vem pela frente.
O requisito da exatidão não é um preciosismo conceitual. Há consequências políticas em jogo.
Um governo em disputa, dentro de uma ampla coalizão de interesses, assim foram todos os mandatos conquistados pelo campo progressista desde 2002.
A singularidade atual não deriva apenas do grau da disputa, sem dúvida o mais extremado desde o dramático torniquete armado contra o primeiro governo Lula, em 2003.
A composição do novo ministério é um reflexo do ponto a que chegamos.
Representantes da agenda derrotada pelo voto popular assumem funções importantes no comando da economia numa discutível tentativa de se mitigar o cerco dos mercados ao governo vitorioso nas urnas.
A tensão é clara, mas ainda não esgota a especificidade do que está em jogo.
A concessão reflete o entendimento de que os efeitos cumulativos da crise internacional recairão com mais força sobre o país nos próximos anos.
A reversão do ciclo de alta das commodities no mercado internacional estreitou, de fato, a margem de manobra na acomodação dos conflitos inerentes à luta pelo desenvolvimento.
Trata-se de uma mudança substantiva em relação a tudo o que já se viveu nos últimos doze anos.
Será mais complexo, inevitavelmente mais conflitivo, governar em favor da maioria e da justiça social.
Não é correto, porém, e menos ainda sensato, atribuir todos os desafios e riscos do próximo período à espiral descendente nos mercados globais.
Não se subestima a nitroglicerina social acumulada em um mundo em que a Europa, e tudo o que ela representou um dia, desmancha em um solvente deliberado de desemprego e deflação. A China reduz quase à metade seu impulso de crescimento. E os EUA pilotam uma recuperação anômala em que a finança regurgita lucros mas o avanço do PIB não se reflete na renda de uma classe média, cujo poder de compra persiste abaixo do patamar pré-crise.
Que esse trem descarrilado avance pelo sétimo ano desde a implosão a ordem neoliberal, na mais lenta, incerta e anêmica recuperação de todas as grandes crises capitalistas do século XX, dá a medida do quão longe se encontram as margens do rio revoltoso em que flutua o futuro brasileiro.
A correnteza requisita cautelas e ajustes.
Mas há distorções locais de igual gravidade que não podem mais ser subestimadas, sob pena de se aleijar a capacidade de resistência diante do moedor de carne interno e externo.
A economia brasileira resistiu à lógica da restauração neoliberal nos últimos anos, mas deixou aberto um flanco que agora ameaça reverter suas conquistas e inviabilizar outras novas.
A verdade é que a largueza das mutações registradas na sociedade desde 2003 não se fez acompanhar de uma contrapartida de representação política suficiente para evitar o risco desse revés.
Viveu-se, em grande parte, um bonapartismo do PIB.
O incremento da riqueza permitiu que o Estado deslocasse fatias maiores da renda aos mais pobres, sem triscar em cinco séculos de patrimônio acumulado pelos endinheirados.
A maré cheia ensejou uma travessia ao largo de questões distributivas mais estruturais, a exemplo daquelas sublinhadas pelo moderado Thomaz Piketty.
A saber: a taxação das heranças e das grandes fortunas, por exemplo, sem o quê, no entender do economista autor de um enciclopédico estudo sobre a desigualdade e a finança, a polarização social subsiste mesmo nas entranhas de um crescimento robusto.
O Brasil avançou muito nos últimos anos explorando rotas de menor resistência e indo além delas em alguns casos e setores.
Mas a crise do bonapartismo do PIB evidenciou os limites dessa associação a frio entre desenvolvimento e justiça social.
Durante muito tempo considerou-se que essa era uma ‘não-questão’; que tudo se resolveria no piloto automático de uma inclusão pelo consumo, com avanços incrementais que se propagariam mecanicamente das gôndolas das supermercados à correlação de forças na sociedade.
A meia verdade em céu azul de brigadeiro dissipou-se em meio à tempestade global que não cessa.
O baixo incentivo ao engajamento dos grandes contingentes ingressados no mercado nos últimos anos revela agora seu calcanhar de Aquiles.
Não se trata de depreciar conquistas indiscutíveis da luta contra a desigualdade, sugestivamente endossada pela quarta vez em seguida nas urnas de 2014, no mais longo ciclo de um mesmo projeto no poder.
Trata-se, isto sim, de fazer desse legado um mirante para enxergar melhor o futuro. Sob risco de apenas se substituir o bonapartismo do crescimento pelo cesarismo do ajuste.
Ou seja, simplesmente trocar a delegação antes atribuída ao PIB pela carta branca sugerida agora ao ‘gestor técnico’, cujo manejo contracionista requisita dos principais atingidos a mesma passividade contemplada no ciclo de alta do crescimento.
O conjunto remete de volta à natureza singular da disputa em jogo na política brasileira hoje.
É certo que há um governo em disputa na coalizão de interesses reunidos no segundo mandato da Presidenta Dilma.
Mas há algo além disso.
E é justamente o que distingue a gravidade do período que se inicia.
Ademais de um governo em disputa, há, sobretudo, uma concepção de democraciaem disputa no país.
E essa não é uma questão acadêmica. É uma questão de escolha estratégica.
Trata-se de encarar de frente uma lacuna de que sempre se ressentiu a agenda progressista desde a chegada ao poder, em 2003.
A lacuna da coerência entre meios e fins; entre o desenvolvimento que se quer para o Brasil e a democracia necessária para construí-lo.
Endossar falsas convergências redentoras, a exemplo do ‘fazer mais com menos’, despolitiza, confunde e infantiliza a sociedade.
Oculta-se a verdadeira luta de sabre no escuro que será o processo em marcha de dividir a fatura da crise e instaurar um novo ciclo de crescimento no Brasil.
Ao não distinguir uma coisa de outra, corre-se o risco de endossar a tese que pretende equacionar a desordem atual com poções adicionais do veneno que a originou.
A dissonância entre um Brasil que se propõe a construir um Estado de Bem-estar social tardio e a restauração neoliberal não é um maniqueísmo.
Tampouco um cacoete desenvolvimentista.
Trata-se de uma contradição que a crise escancarou.
Não se incorpora 60 milhões de ex-miseráveis e pobres ao mercado sem mexer nas placas tectônicas de uma ‘estabilidade capitalista’ alicerçada em uma das mais desiguais estruturas de distribuição de renda do planeta.
Sobram assim duas opções.
Avançar e dar coerência estrutural e política à emergência desse novo ator, ou recuar e devolvê-lo à margem de origem, colocando-o em modo de espera até a próxima maré cheia.
Até um novo ciclo de bonapartismo do PIB.
Essa é a singularidade urgente do segundo mandato da Presidenta Dilma.
Não é apenas a economia que está em jogo.
É uma democracia que está em disputa.
O seu avanço, ou a sua prostração, determinará a natureza do ajuste e o futuro do desenvolvimento no país.
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