1.12.2015

Choque cultural


 Para reflexão,  uma análise muito interessante, feita pelo dr. Wesley Aragão ( médico e antropólogo antroposofósico), a partir dos últimos acontecimentos na França...
 
From: Wesley Aragão (10 de janeiro de 2015)
 

 
A grande questão é o etnocentrismo ingênuo, ou seja, "a minha cultura é a melhor que as outras, nela o mal é menor, o bem é maior, Deus está conosco e não está com eles, somos mais humanos, mais civilizados, não bárbaros e imperfeitos como os outros"....esta maneira de pensar norteou grandes males nos últimos séculos, quando um povo se julga "escolhido" ou melhor do que os outros e assim perde a visão universalista da condição humana como um todo. A pessoa assim se torna preconceituosa, tanto quanto um radical muçulmano ou outro radical qualquer....Os radicais são sempre aqueles que tem certeza absoluta que o seu povo, a sua cultura, a sua crença, está acima do mal, melhor que as demais, e que está espiritualmente privilegiado...isto cria também uma arrogância enorme e uma visão desumana das pessoas, que não vê o bem em lugar algum além de no próprio umbigo. Fora do próprio umbigo, só a imperfeição....
A outra grande questão é que, além de nao sermos melhores, as outras formas de civilização, as outras culturas, também nao são perfeitas, não são isentas do mal, assim como não são isentas de bons aspectos do bem e do belo e do verdadeiro.
Os seres humanos sobre a terras estao todos no mesmo pé, o que é imperfeito é um povo é melhor em outro, mas o que neste outro povo é imperfeito, em outro povo é mais bem elaborado, como as pessoas. Uma forma bela de ser ver isto é quando fazemos uma análise comparada das expressões artísticas dos povos.
Como as pessoas, os povos têm beleza e feiura, aprimoramentos e bestialidades, luzes e trevas, nenhum povo é superior ou inferior a outro, apenas diferentes.

A França por exemplo. que defende até hoje os ideais (dos iniciados iluminati do século XVIII), liberté, fraternité, egalité, só tem como válido estes ideais nobres e belos para os próprios cidadãos franceses, pois ainda têm colônias na África e tinham na Ásia (Indochina, atual Vietnã, INdia oriental), e o exército frances reprimia e reprime cruelmente qualquer esboço de liberdade e de expressão dos nativos por liberdade....A maioria destes nativos é muçulmana. E isto explica o ódio de radicais muçulmanos ao povo francês (explica, embora nao justifique). Mas os franceses esquecem de falar disto....Aqui vai uma lista das colônias francesas que se libertaram, às custas de sangue, só na África, ainda no final do século XX, enquanto intelectuais franceses em Paris gritavam nas ruas "liberdade, igualdade e fraternidade" (mas só para eles próprios, os franceses nativos brancos). Este tipo de mentalidade é que criou o terrorismo, a partir de um sentimento de injustiça e de crueldade do colonizador. Por que os jornalistas e analistas políticos que falam em acabar com o terrorismo não tocam nas causas do terrorismo, quais sejam, a colonização e exploração dos países ricos sobre os pobres - coisa que continua e continua e continua. É como se falar em combater uma doença epidêmica, sem querer combater as suas causas, só os efeitos. Os americanos invadiram o Iraque para roubar petróleo, no governo Bush, alegando que Saddan Hussein (um tirano cruel, de fato, mas que assim mantinha tribos e seitas inimigas sob controle) usava armas de extinção em massa - numa história ainda muito mal contada que envolve jogo de interesse, venda de armas, corrupção do governo Bush, e vingança porque Saddan disse que ia quebrar a cara do pai dele, e outras coisas infantis (os governantes modernos geralmente tem argumentos muito infantis disfarçados de afirmações sensatas), que, afinal, levaram à morte milhões de pessoas, na sua maioria civis inocentes, e fomentaram justamente o Talibã e outros movimentos fundamentalistas reacionários. O Al Qaeda, aliás, em suas origens, foi criado pelos próprios norte-americanos, quando os soviéticos invadiram o Afeganistão. Os americanos aparelharam e treinaram guerrilheiros muçulmanos para lutarem contra os russos, serem bucha de canhão. Só que depois que os russos foram expulsos da região, os guerrilheiros se voltaram contra o imperialismo norte-americano, que os treinou, e assim surgiu a Al Qaeda.

O presidente americano Reagen recebe seus amigos e aliados, guerrilheiros
muçulmanos afegãos, treinados pelo seu governo, e que posteriormente se
tornarão talibãs e membros da al Qaeda. Enquanto lutavam contra os russos eram aliados dos americanos. Depois da vitória sobre os russos - tão imperialistas quanto os americanos - estes e os talibás tornaram-se inimigos também, pois os últimos resistiram á proposta americana de colonizar o Afeganistão. Por que os jornalistas nao relembram isto quando falam dos fanáticos do taliba?

Ainda tenho que insistir, para a nossa sanidade anímica e social, que está equivocada, é preconceituosa, ignorante sobre os povos e suas histórias, esta forma de ver que "o Islã é uma religião do mal" - ("inspirada ahrimânicamente com humor luciférico", como diz Steiner( GA 300a)), sem ver o mal também na civilização em que vivemos (a Igreja, a inquisiçao e suas torturas e fogueiras, as perseguições a hereges a a cientistas e filósofos, as cruzadas, o poder material e a ganância da cristandade, o racismo, o nazismo, a escravidão, o colonialismo, o capitalismo selvagem, o preconceito etc, não são também algo ahrimânico e luciférico da mesma forma? Porque os erros do outro sao demoníacos e os nossos erros são apenas "errinhos" sem importância?Porque outros homens são inconscientes e atrasados e um povo que massacrou outros e causou guerras mundiais e exterminou povos por causa da cor de sua pele e da sua religião são menos bárbaros ou mais civilizados?. Aqui vai uma lista das colônias francesas que a duras penas, com muito sangue, libertaram-se, igualaram-se e fraternizaram-se, apesar do opressor frances (ressalto que sou admirador da língua e da cultura francesa, mas crítico desta hipocrisia racista de muitos franceses xenófobos e seus aliados igualmente xenófobos, povos ditos cristãos, mas totalmente despreparados para uma vida planetária em comunhão entre os diferentes, tanto quanto muitos muçulmanos mais radicais, o que não quer dizer que haja exceções belas e boas nos dois lados). Libertaram-se da opressão francesa, criando assim uma alma ex-colonial ressentida e disposta á vingança, entre grupos mais hipersensíveis e agressivos: Entretanto, vários territórios africanos continuam sob administração francesa: 
A imagem que posto abaixo é bem chocante, são cabeças de africanos decepadas por franceses, há algumas décadas atrás e muçulmanos executados em público pelo governo francês, isto no século XX, há algumas décadas atrás.  Os militares franceses gostavam de decapitar os "terroristas" africanos que tentavam libertar sua terra do opressor:

Nao são apenas radicais muçulmanos que decapitam pessoas....

Enforcamento público de muçulmanos imposto pelo governo francês na Argélia.
Enfim, temos que ter um pensamento justo, que vê as sombras e as luzes em todos os lados, e não somente sombras no lado do outro, e luzes no nosso lado. Isto pode ser a diferença entre lucidez e o equívoco ingênuo de não entender o que é a condição humana universal, que em toda parte todo ser humano é feito de sombras e luzes, de bem e de mal, e que nao é porque se falam palavras belas que as pessoas vivem uma vida bela, e que a mídia não é critério de verdade, porque serve a tendenciosidades políticas e ideológicas diversas..Se não pudermos enxergar isto seremos indivíduos eternamente alienados e preconceituosos. E parece que foi Einstein quem escreveu: "é mais fácil romper a estrutura do átomo do que romper um preconceito'..
O Ocidente libertou-se da opressão religiosa - o oriente não. Mas esta liberdade da opressão religiosa do ocidente não ensinou as pessoas a serem de fato livres. Talvez tenha sido um caminho de torna-las apenas mais arrogantes e iludidas de uma suposta superioridade, porque acham que podem mais. Afinal, como escreveu Dostoievsky ("irmãos karamazov"): Se Deus morreu, tudo é permitido. E se "tudo é permitido' ou existe esta crença Narciso se sente poderoso, grande, amplo, maior do que os outros....mais perto dos deuses do que os mortais bárbaros comuns, mergulhados na ignorância e na cegueira de uma fé tacanha (que não é diferente da fé de seus próprios avós, aliás muito semelhante).
Abraços sócio-históricos
Wesley
 
 
 
Em 9 de janeiro de 2015 12:05, Wesley Aragão <wama933@gmail.com> escreveu:

 
A grande liberdade de expressão, o senso democrático, a relativa amplidão de possibilidades dos eus ocidentais só aparece nos últimos 200 anos de historia da Europa e suas então colônias americanas. Esta liberdade do indivíduo ocidental não é devida ao cristianismo (entendido como exoterismo religioso, ou seja, a Igreja e o protestantismo). Esta liberdade democrática aparece justamente devido ao colapso do cristianismo instituído - o Renascimento começou a minar o poder moral da Igreja, e a modernidade do século XVIII, com a revolução francesa, a revolução industrial, a independência das colônias, a invenção da máquina a vapor as ciências, etc, tudo isto, trouxe o que o filósofo Nietzsche chamou "a morte de Deus" (o declínio da religião cristã no ocidente) - "foi a maior façanha do indivíduo ocidental" (Nietzsche). Podemos nos sentir livres (relativamente livres, nao totalmente) e iludidos de que vivemos regimes democráticos e "do povo para o povo", "transparentes", porque a Igreja perdeu seu poder de controle sobre os indivíduos, porque estes indivíduos não acreditam mais em Deus como um Ente Central e controlador, mas o colocam meio que de lado em suas vidas - primeiro vem o dinheiro, a profissão, a carreira, as relações, o sexo, a comida, a mídia, a moda, o carro, etc, etc.. Ou seja, a vida burguesa do ocidental e sua respectiva imitação pelo cidadão das ex-colônias. Esta vida leiga, desligada da religião, é o que os entendidos chamam de SECULARIZAÇÃO. O ocidente e suas ex-colônias americanas são plenamente secularizados e a isto os americanos chamam de "american way of life". E os ocidentais acham isto o máximo, mesmo sabendo, as vezes, que se paga um preço pelas vantagens disto (uma boa dose de decadência das sociedades e mal estar dos indivíduos e sua falta de sentido existencial, o consumismo, a alienação burguesa, etc). Steiner chama este mundo ocidental secularizado de "época da alma da consciência" (criando com o termo "época" a noção problemática de que o mundo todo está ou deveria estar no mesmo compasso, o que é impossível). Esta forma de pensar assim de Steiner reflete bem o modo de ver de um homem ocidental do século XIX e XX, que vê em sua própria civilização o ápice da evolução espiritual humana global - não analisando o Todo do entorno. É a mentalidade dita colonialista. Os antropósofos, em sua maioria, como todo ocidental acrítico, acaba repetindo este modo de ver, sem refletir muito a respeito. É cômodo.
As civilizações que não se secularizaram
Há outros povos, culturas, civilizações, todavia, que não se desvincularam do modelo de cultura centrado numa crença espiritual, sejam as  mais simples (como índios, aborigenes, pigmeus africanos, etc) ou mais complexas (como a civilização islamica e suas vertentes árabe, persa, turca, indonésia, malásia, etc; ou a civilização hindu; ou a civilização budista do Nepal, Butão, Tibet, etc.).
Até o século XIX, e meados do século XX, em alguns casos,  o europeu secularizado vivia em seu mundo, colonizando os "outros" de longe, colonizando a África, o Oriente Médio, a Índia e Indochina, ou tendo exterminado a maioria dos povos aborígenes, sem ter tido o incômodo de sofrer uma "invasão" destes "outros" em seu território - a não ser em tempos medievais passados e já semi-esquecidos quando bárbaros e mouros estiveram em terras ocidentais. Os outros, os não-secularizados, por sua vez, em seu próprio território, eram colonizados e explorados pelo ocidental secularizado, de todas as formas, inclusive como trabalho escravo além de toda sorte de violência peculiar ao modelo colonialista de exploração do homem pelo homem. Toda vez que os nao-secularizados colonizados se rebelavam contra o colonizador secularizado eram chamados de "terroristas". As guerras coloniais, os massacres e extermínios praticados pelo colonizador secularizado, por sua vez, eram justificados até mesmo pela fé, pela religião (mesmo quando esta fica meio que de lado), afinal, são eles, os civilizados ocidentais, os "escolhidos" para ensinar ao mundo sobre liberdade e progresso aos bárbaros primitivos atávicos atrasados sem democracia.
Todavia, após a descolonização moderna do terceiro mundo, no século XX - não sem o preço do derramamento de  muito sangue de "terroristas" e inocentes (na Argélia, Marrocos, Egito, África negra, Oriente Médio, India, Malásia, etc, etc.) - começou a acontecer uma invasão, ou seja, migração, dos ex-colonizados não secularizados para o território ocidental secularizado. E isto causou o que se chama CHOQUE CULTURAL. Temos na França, na Inglaterra, na Belgica, na Alemanha, na Espanha, Portugal, Itália, etc, uma população de "terceiromundistas" de pele escura e de crenças não cristãs vivendo e ocupando empregos ou subempregos na terra de seus ex-donos, ex-colonizadores. E o europeu mediano reage com xenofobia a isto. A questão é que sobreviveu entre os povos antes colonizados uma espécie de ressentimento misturada com admiração por seus antigos colonizadores. Este ressentimento foi alimentado por outras formas atuais e vigentes de domínio colonial que não parou até hoje: por exemplo, a certeza do ocidental que sua civilização é melhor e mais humana do que as dos colonizados, o domínio econômico e a pobreza das ex-colônias (cujas riquezas naturais foram extorquidas para que o atual ocidente hoje seja rico e próspero - toneladas de ouro, prata, pedras, petróleo, madeira, escravos, foram levadas pelo colonizador em detrimento do colonizado, durante mais de 500 anos).

Os índios das tres Américas sentem este misto de ressentimento e admiração pelo homem ocidental e sua cultura - e acabam imitando-o. Também os africanos negros, ex-colonizados de Portugal, Holanda, Alemanha, Inglaterra, etc. Os africanos islamicos do norte da África, como marroquinos, argelinos, egípcios, líbios, etc, os palestinos, os iranianos, os afegaos, os indianos (onde o Islã e o hinduísmo convivem), etc..
Por outro lado, há um racismo subliminar do ocidental mediano que ve outros povos ex-colonizados como inferiores nao apenas culturalmente, mas também racial-biologicamente - sentimento este que justificou a colonização anterior: "eles são inferiores, menos ingeligentes, não cristãos como nós, vamos dominá-los e ensina-los a ser civilizados, assim como nós".
O hindu que vive na Inglaterra sofre o choque cultural de viver numa cidade secularizada, onde os valores religiosos sao menos presentes do que na sua terra natal. O hindu inglês sabe que vive na terra de seus antigos colonizadores, que exploraram e mataram seus avós e saquearam a sua terra, enriquecendo com isto - mas, ao mesmo tempo, admira os progressos e a liberdade secularizada que ele respira em terras inglesas e o melhor salario que ganha ali, mesmo sendo apenas faxineiro e não passe disto. O muçulmano que vive na França, idem, só que a índole do muçulmano é diferente da do hindu ou do budista. O africano negro que saiu de uma tribo do Mali ou do Senegal e que vive na Europa, tem um (res)sentimento igual. O índio que saiu de uma reserva - um pedaço de terra para onde o seu povo foi empurrado, depois de massacrado - tem um (res)sentimento parecido quando vai viver e ganhar dinheiro na cidade do homem branco e ocupar um subemprego na construção civil. E o homem branco ocidental convive, contra a vontade, com estes "inferiores" e protesta, como fazem os franceses ouu os ingleses brancos e cristãos, "ha imigrantes demais aqui".

Cultura da Alma da Consciência (ou da Alma Contemporanea)
Eu diria que tudo isto demonstra o quanto o ser humano moderno ainda não está preparado para o convívio entre diferentes. Ele só fica bem enquanto vivendo numa sociedade mais homogênea, enquanto todos, "livremente', pensam igual, agem igual, comem a mesma comida, veem os mesmos filmes e a mesma versão dos fatos, tomam a mesma Coca Cola, e se divertem da mesma forma, riem-se das mesmas piadas e acham graça das mesmas charges - inclusive lutam pelo direito seu de assim viverem. Quando, entretanto, outras formas de se viver, outros valores, outras crenças e outras formas de sentir a vida forçadamente ou não passam a conviver com este indivíduo, ele não as tolera, ou zomba destas (embora não goste que zombem dele), ou as acha ultrapassadas ou ridículas, em relação á sua forma de viver - tanto quanto os "outros" também têm dificuldade de tolerar a forma de viver dele, enquanto diferente. A palavra aqui é intolerância... recíproca. O indivíduo moderno é essencialmente intolerante....E, "moderno", eu incluo os ocidentais e os ex-colonizados não ocidentais.
Eu diria que a alma da consciência, enquanto cultura coletiva, é este desafio, justamente, de todo ser humano, de culturas diferentes, vivendo valores diferentes, crenças diferentes, formas de se viver distintas, é este desafio de aprender a conviver com e entre os diferentes, vendo-os como irmãos e não como inimigos, deixando os ressentimentos para o passado (o perdão é uma dificuldade humana das mais desafiadoras e difíceis).
Por que muitos (não todos) ex-colonizados islamicos são violentos?
São violentos, em minoria, porque primeiramente sao jovens e jovens problemáticos, tão violentos como jovens do exército israelense que atiram em palestinos, sentindo-se justificados e por que "matar um inimigo dá uma certa adrenalina". Da mesma forma sao violentos como os jovens soldados norte-americanos têm prazer em metralhar e em bombardear outros jovens iraquianos ou afegãos do talibã ou de outro grupo terrorista qualquer, ou como são violentos os jovens revolucionários de esquerda que militavam na época da ditadura no Brasil - nao hesitaram em torturar ou matar milicos, como também os jovens milicos fizeram com os adversarios São violentos como os jovens desajustados que servem ao trafico. A violência é um assunto juvenil muito peculiar. São violentos também porque o Islã, semelhante ao cristianismo e ao judaísmo (as tres religiões monoteistas) têm princípios morais que endossam a recusa, a não aceitaçao da injustiça (ou do que seja considerado como tal), da exploração, e o "Deus de Israel" estimula a resistencia, a luta, contra o que se considera o mal, ou contra aqueles que representam o mal. Isto pode ser interpretado simbolicamente, ou literalmente. Na época da escravidao, no Brasil, os escravos africanos muçulmanos (chamados Malés) eram os mais dificeis de domar, e planejaram e executaram oito rebelioes negras, chegando a tomar de assalto, por duas vezes, Salvador, então capital do Brasil. Sua religião lhes proibia aceitar passivamente a condição de escravos ou explorados e convidava que declarassem guerra (Jihad) aos opressores. São violentos alguns muçulmanos atuais tambem porque seus jovens movidos por ideologias assim advém de países antes colonizados, explorados e que guardam coletivamente este ressentimento, ou mesmo ódio, ou desejo de vingança, contra os seus antigos colonizadores, as vezes não tao antigos assim. Juntam-se então tres coisas: o ardor juvenil pela aventura (no caso, a guerra, o jovem islamico radical sente-se em guerra contra os antigos colonizadores e os que negam o espiritual, os secularizados contra os que vivem na secularidade e ainda se acham os tais, como ele os vê). Junta-se a este ardor juvenil guerreiro (o termo árabe é Jihad, guerra), a interpretação literal e estreita da moral reliigosa que é inspirada na imagem de um Deus irado e monopolizador, que protege seus fiéis e se indispõe contra os inimigos destes. E junta-se a estes dois elementos a questao da descolonização, o racismo, a menos valia dos cidadãos das ex-colônias, considerados e tratados como seres humanos de segunda classe pelo ocidental mediano, e também pelas potencias militares ocidentais e seus aliados, e que herdou a arrogância dos avós colonizadores. O resultado é a violência terrorista.
Então, o Islã é uma religiao tão moderna ou tão arcaica quanto o catolicismo ou o judaísmo. Mas este arcaísmo das religiões nao significa que sejam instituiçoes ultrapassadas. Significa que elas vêm do passado, mas estão ái, modernas, contemporâneas, reinvidicando o seu espaço dentro do secularismo no ocidente, ou sua hegemonia em suas terras natais.
O mundo islâmico que vemos atualmente é atual, está aí, e seus problemas resultam (é o Carma, diríamos) de situações sócio-políticas bem recentes, ligadas ao colonialismo e ao choque cultural entre povos e civilizações, dominantes e dominados economicamente e militarmente, em alguns casos.
Os índios americanos têm ressentimento mas não executam atos de terrorismo contra seus antigos algozes, os homens brancos, porque sao uma minoria derrotada (as vezes matam algum madeireiro ou garimpeiro). Foram expulsos de suas terras e sobrevivem em reservas, e, mesmo protestando de vez em quando, acabam se conformado e vão vivendo.Os aborígenes australianos se comportam de forma semelhante, e muitos outros povos tribais - como os Maori das ilhas do Pacífico ou Papuas das Guinés.
Os hindus, herdeiros de uma civilização não ocidental das mais antigas, assim como os chineses, foram colonizados mas recuperaram sua terra e sua cultura, tomando-a de volta dos ingleses em 1948. Sua religiao, todavia, tem múltiplos deuses, e muitas sub-formas culturais, diversas línguas, e diversas formas de se viver. Seus deuses sao deuses que ensinam que deve-se aceitar o carma e a reencarnação e que toda injustiça sofrida, afinal, é fruto do carma. E assim, os hindus vao vivendo e deixando para trás as dores de seu carma. E acabam fazendo concessões ao mundo ocidental, desenvolvendo tecnologias ou aprendendo as vantagens de uma vida confortável com seus ex-colonizadores, ao mesmo tempo em que ainda consideram as vacas sagradas, sao vegetarianos, fazem rituais a diversos deuses e mantém o sistema de castas e casamentos arranjados, sem que a mulher hindu tenha o mesmo grau de liberdade da mulher do ocidente secularizado, por exemplo. Um "atraso" incompreensível ao ocidental, ao mesmo tempo deslumbrado com a espiritualidade hindu preservada justamente às custas deste tradicionalismo não-secularizado.
Mas os muçulmanos são um caso peculiar de ex-colonizados. Seu território cresceu, tornaram-se maioria - e não, como os judeus, seus primos, uma minoria (a não ser em Israel). Diferente dos primos judeus, os muçulmanos árabes (e seus seguidores de outras etnias), não se ocidentalizaram - não passaram a se vestir como ocidentais (a não ser em alguns países islâmicos  mais ocidentalizados, com Líbano, Argélia, Turquia etc), a apreciar música europeia, a adotar costumes ocidentais, como fizeram os judeus, seus primos. Ao contrário, mantiveram, como os judeus, sua forte identidade religiosa, mas, mais do que os judeus, não aceitaram misturar seu estilo de vida com valores ocidentais que consideram contraditórios ao seu modo de ver o mundo. Os judeus fizeram concessões à civilização ocidental que os muçulmanos não aceitaram. O que os faz não aceitarem esta mistura de valores? O ressentimento, a certeza da fé em um Deus único que os protege e a certeza de que a secularização do mundo ocidental oferece mais perdas do que ganhos, de seu ponto de vista. Porque o judeu que pensa de forma semelhante ao muçulmano não é violento? É violento sim, mas em seu território, Israel, onde é maioria - basta ver o comportamento do Estado de Israel diante dos palestinos e outros povos árabes: um massacre. Por que o cristão, que pensava religiosamente igual aos muçulmanos e judeus atuais ("povos escolhidos") não era ou é violento? Claro que sempre foi violento e continua: cruzadas, massacres, inquisição, bruxas queimadas vivas, a guerra entre protestantes e católicos, a colonização, a escravidão e o racismo, o nazismo e duas guerras mundiais, tudo isto demarca a sangrenta história de violência e intolerância dos povos ditos cristãos. A religião, em certos aspectos, é sempre nociva ao imaturo ser humano que não sabe conviver com os semelhantes e menos ainda com os dessemelhantes, incluindo aqui os reinos naturais. Aliás, uma das reinvindicações dos muçulmanos é que o ocidente "cristão" tem destruído a natureza - que o Alcorão afirma ser a obra de Allah, pois Allah ama a diversidade de criaturas e sua beleza. Os muçulmanos foram os primeiros ecologistas, já na Idade Média, e um dos argumentos de que a civilização ocidental secularizada tem erros é a evidente destruição das espécies naturais e a poluição do planeta. Outro argumento dos muçulmanos é de que o capitalismo selvagem é um mal que desagrada a Allah. Eles são contra a cobrança de juros bancários e acham o FMI uma obra diabólica por exemplo, porque produz pobreza e desigualdade. Há uma certa sintonia entre ideias islâmicas e algumas ideias da esquerda ecológica
Por que as leis islâmicas são tão arcaicas?
Faltam iniciados no mundo islâmico, iniciados que ensinem ao povo que a letra mata e o símbolo liberta. Existiram alguns lá, mas são meio que desconhecidos do povão islâmico - foram os sufis. Como diz um muçulmano, Garoudy (ex-católico, convertido ao isla e socialista), o mundo islâmico confundiu "sharya" (a lei cósmica) com o "Fiqr" (a lei humana) e transplantaram uma moral da Fiqr medieval para tempos modernos, pensando estar perpetuando a "sharya', a lei divina - porque os ulemás (doutores muçulmanos da lei) são homens ignorantes e do povo, sem sutileza intelectual. Mas isto é assunto complicado...
Espero ter contribuído a se ver com mais amplidão, evitando que caiamos todos na forma de pensar ingênua do senso comum seduzido pela mídia.
Abraços antropológicos
(Eu não sou Charlie, sou Wesley)

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