Minha hipótese é que, além do debate jurídico, real e necessário, num momento de conflito entre poderes, surgiu um fator político que não pode ser desprezado. Uma possível saída de Renan Calheiros entregaria a presidência do Senado para um parlamentar do Partido dos Trabalhadores -- Jorge Viana, ex-governador do Acre. Embora o país tenha enfrentado situações semelhantes, nos últimos meses, foi só desta vez que se falou em "crise institucional", conceito que implica em apontar uma situação política próxima do colapso, para justificar um retorno a situação anterior.
Através de sentença liminar, o ministro Marco Aurélio Melo decidiu afastar Renan de seu posto, numa decisão coerente com o voto -- já majoritário no tribunal -- de que um réu não pode permanecer na linha de sucessão da Presidência da República. Inconformado, Renan recusou-se a receber a notificação. Resultado: permanece na presidência do Senado pelo menos até a tarde de amanhã, quando o STF volta a se reunir.
Vários parlamentares com os quais pude conversar, ao longo do dia, consideram que foi uma solução acertada. Convencidos de que Marco Aurélio não tinha base legal para decidir pelo afastamento, eles apoiam a decisão. Mesmo reconhecendo a gravidade de confrontar uma sentença com assinatura de um ministro do STF, acreditam que foi uma medida necessária. "Já era hora do Congresso se manifestar a favor da separação entre poderes," me disse um parlamentar, entre vários depoimentos que colhi ao longo do dia.
Eu também sou a favor da separação entre poderes, cláusula pétrea da Constituição, elemento essencial da democracia. Escrevo sobre isso há anos, aqui neste espaço. Mas imagine se um dos réus da Lava Jato tivessem aplicado um baile à moda Renan Calheiros para escapar de uma notificação judicial.
Há uma questão de natureza político-partidária em torno desse problema, capaz de sugerir que a separação dos poderes pode ter sido uma motivação justa. Seu fundamento é inegável. Mas está longe de ter sido a única razão.
Já em 2012, no julgamento da AP 470 o Supremo atravessou a fronteira entre os poderes ao votar pela cassação do mandato de parlamentares, ignorando o artigo 55 da Constituição que diz que cabe ao Congresso definir a perda de mandatos. Em dezembro de 2015, o STF manteve a prisão de Delcídio do Amaral, embora o encarceramento sequer estivesse de acordo com as exigências da legislação em vigor para políticos no exercício do mandato. O afastamento de Eduardo Cunha da presidência da Câmara, foi definido pelo ministro Teori Zavaski em maio, e referendada pelo plenário do Supremo no mesmo dia. Embora Marco Aurélio só tenha anunciado sua decisão ontem, o caso de Renan faz parte da mesma ação contra Cunha resolvida há meses com o afastamento do presidente da Câmara. Qual a diferença entre os casos, então?
Uma curiosidade histórica. A ação contra Cunha e Renan têm a mesma origem e mesma data. As duas questionavam a possibilidade de um réu permanecer na linha sucessória da presidência da República. As duas poderiam ter sido resolvidas na mesma data, portanto. Se a decisão de Renan tivesse saído junto com a de Cunha, Jorge Viana teria ocupado a presidência do Senado antes da decisão final sobre o impeachment. Teria sido presidente do julgamento de Dilma. Com direito aos plenos poderes presidenciais de Renan.
É uma coincidência incrível, não acha?
A diferença política é essencial. Reside na pergunta: quem ganha com a troca? Só se falou em "crise institucional" desta vez, embora os mesmos fatos já tivessem ocorrido nas ocasiões anteriores. A decisão que afastou Cunha foi tomada por Teori Zavaski, que decidiu consultar o plenário, embora não fosse obrigado. Ontem, depois da reação contrária a liminar que assinou, Marco Aurélio também decidiu abrir a decisão ao plenário.
O substituto natural de Renan é Jorge Viana, senador pelo Partido dos Trabalhadores, adversário da PEC do teto dos gastos, o ponto essencial das reformas do Temer, com votação marcada para o dia 13 da semana que vem. Presente de Natal para os patrocinadores do golpe, cada vez mais desconfiados do Papai Noel Temer e suas renas.
A posse de Viana, nestas circunstâncias, marcaria uma primeira vitória das forças políticas derrotadas no processo de impeachment. Não só pode estimular a resistência, como observou Luiz Felipe Miguel nestas páginas, mas pode ser aquele leve distúrbio que, na conjuntura apropriada, produz um estrago. numa ocasião em que o único aspecto claro da conjuntura é o enfraquecimento do governo Michel Temer, sua descida na ladeira da crise econômica e do inferno político cada vez mais próximo. Nessa conjuntura, uma troca no comando da instituição que terá a palavra final sobre a PEC 55, boia de salvação de um governo que ninguém sabe até onde vai sobreviver, pode ser um terremoto. Por isso todos se uniram para preservar Renan, aquele que, para salvar o pesçoço quando a lâmina da guilhotina já era passada no amolador de faca, aderiu a Ponte para o Futuro dos barões de nosso pobre capitalismo, na vida real uma simples pinguela.
No mesmo dia em que os jornais informavam que Viana iria assumir a presidência do Senado, o Estado de S. Paulo vazava um diálogo do senador petista com o advogado Roberto Teixeira, responsável pela defesa de Lula. Sinal de que o projeto contra Viana é de matriz lacerdista. Embora sua posse esteja em perfeita sintonia com os movimentos anteriores, não deve assumir. Se o fizer, será reduzido a trapo, como fizeram com Waldir Maranhão, mantido numa UTI permanente desde que ameaçou pular da canoa do golpe. A diferença é que Viana é um político de personalidade, história e biografia.
O mistério deste enredo é de curta duração, pelo menos. Afinal, o mandato de Renan está no fim. Cada personagem sabe o papel que irá desempenhar e, pela TV, será possível acompanhar uma parte do espetáculo. Em função das decisões anteriores, toda decisão favorável a permanência de Renan em seu posto, qualquer que seja a razão alegada, terá um componente político evidente
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