Em junho, desenho num dos braços ajudou a revelar a história de jovem encontrado em parque desacordado
RIO - De símbolo da contracultura a segundo documento de identidade. Se na década de 70 a tatuagem era sinônimo de transgressão, hoje ganhou contornos de utilidade pública. Cada vez mais personalizadas, as inscrições na pele acabam revelando dados sobre a vida pessoal de seus donos, como os nomes de namorados, filhos, maridos e mulheres e até... o tipo sanguíneo. No dia 2 deste mês, por exemplo, o jovem paraibano Felipe Fernandes de Mello, de 21 anos, foi encontrado numa trilha do Parque Lage, no Rio de Janeiro, sem identificação, desacordado e em estado gravíssimo. Socorrido pelos Bombeiros e levado para o Hospital Miguel Couto, na Gávea, conseguiu sair do anonimato depois que alguém entrou no CTI onde ele estava internado e fotografou seu braço direito, tatuado com o nome “Joana”.
A homenageada era a avó de Felipe, Dona Joana, de 82 anos, que mora na comunidade Lagoa do Mato, município de Remígio, no interior da Paraíba. O rapaz também viveu na cidade até 2008, quando mudou-se para São Paulo. Há dois anos ele morava no Rio, onde decidiu fazer a tatuagem. Dona Joana não chegou a ver pessoalmente seu nome escrito no braço do neto que ajudou a criar. A imagem, divulgada nas redes sociais e rapidamente compartilhada por milhares de pessoas, também foi parar nos jornais, na TV, e, cerca de 24 horas depois, amigos e parentes foram ao hospital identificar Felipe, que morreu na segunda-feira passada.
Professora de antropologia da Universidade Federal de Santa Maria, no Rio Grande do Sul, Débora Krischke Leitão tem artigos sobre tatuagem e fez sua dissertação de doutorado sobre “O corpo ilustrado”. Ela mesma tem cinco tatuagens, algumas anteriores ao início de sua pesquisa, que mostra uma mudança no significado dos desenhos. Se há três, quatro décadas, os símbolos estampados na pele tinham uma aura mais transgressiva, de contestação, hoje em dia ela vê tatuados carregando menos nas tintas e buscando uma nova forma de comunicação:
— Houve uma certa flexibilização do significado. Hoje está mais personificado. Houve mudanças significativas ao longo dos anos, graças até a grupos de contracultura que difundiram suas ideias mais libertadoras. Com isso a tatuagem fica menos contestadora e acaba se transformando até em produto de moda. Como tornou-se algo comum, algumas pessoas acabam buscando maneiras diferentes de mostrar a sua identidade através delas.
Designer cria marca para filhas e imprime desenhos no braço
O designer gráfico Billy Bacon encontrou uma maneira original de registrar a sua vida nos braços. Ele criou uma marca para as filhas Mina, de 13 anos, e Mana, de 10, e mandou tatuá-las no antebraço. A mais velha é representada por uma carinha desenhada no centro de uma interseção. A menor ganhou uma carinha cheia de cabelo cacheado. Não satisfeito, Billy pegou garatujas feitas pelas meninas, aqueles rabiscos que são a marca registrada da infância, e inscreveu-os nos braços. Os traços de todas as tatuagens são bens simples e costumam chamar a atenção de quem não conhece o designer, cuja história de vida está bastante ligada à tatuagem:
— O desenho da Mana fiz na China, em 2007, com a primeira tatuadora mulher. Morei dois anos lá, deixei minha mulher e as duas crianças no Rio e fui. Nessa época, meu pai, que sempre foi muito careta, acabou fazendo uma tatuagem: escreveu o nome dele em chinês. Ele tinha 65 anos na época e vi que, naquele momento, ele enxergou a função de uma tatuagem e passou a respeitar minha decisão de ter ido morar em outro país. Entendi aquela atitude como um código, um sinal de que ele me compreendera — lembra Billy, que tem 13 tatuagens. — Quis fazer minha primeira aos 18 anos, mas meu pai não deixou. Só fiz aos 26. Naquele momento, senti que estava no comando da minha vida. Eu tinha, enfim, liberdade.
Autor do livro “O Brasil tatuado e outros mundos” (Rocco), o jornalista Toni Marques diz que quem faz tatuagem tem o desejo de expressar algo que é importante, dizer para o mundo o que pensa. Mas há algumas décadas, era o mundo que insistia em rotular quem tatuava o corpo:
— Tatuagem tem esse caráter de ser um assunto velho que sempre se renova. Tudo se repete, as acusações, o maravilhamento. A tatuagem já fez parte de catálogo para identificação de bandidos e loucos. Na época do nazismo, funcionava como um RH da morte, usavam-na para selecionar quem ia morrer ou sobreviver. Era uma marca que fazia a diferença entre a vida e a morte.
Na avaliação de Toni, que tem o corpo coberto por muitas tatuagens — ele mesmo diz que já perdeu a conta de quantas são —, os desenhos usados tratam, basicamente, de dois assuntos: vida e morte. O sangue que mantém vivo o designer gráfico e fotógrafo Lula Ricardi, de São Paulo, serviu de inspiração para ele tatuar seu tipo sanguíneo (AB+) nos braços. Cada letra está num antebraço. Juntos, eles podem fazer a diferença num momento de perigo.
— O desenho tem a ver com a minha identidade, marca a minha personalidade. Nada é mais meu do que o meu sangue. Mas também há uma questão estética, escolhi a letra helvética, por estar muito associada ao meu trabalho. Na verdade, meu braço tornou-se uma mídia — diz Lula, acrescentando que, numa primeira olhada, muitas pessoas não entendem a mensagem. — Brinco que, mesmo numa urgência, caso só vejam o desenho num dos braços, não tem problema. Posso receber sangue dos dois tipos — afirma, lembrando que a pessoa portadora do AB positivo é tida como receptor universal, podendo receber transfusão de qualquer outro tipo de sangue.
Tatuagens ajudam a identificar vítimas em tragédias
Em algumas situações de emergência, como a envolvendo o jovem Felipe, a tatuagem torna-se de fato um meio de identificação. Em algumas tragédias, elas ajudam na identificação dos corpos, como ocorreu durante a enchente da Região Serrana, em 2011, que matou mais de 500 pessoas. O coronel do Corpo de Bombeiros Fábio José de Meirelles, comandante da Área Metropolitana (CBA IX), atuou no resgate das vítimas em Nova Friburgo e ouviu pedidos como o de um pai que queria achar o filho louro, dono de uma tatuagem na perna. A identificação final dos mortos, segundo ele, é feita pelos peritos do Instituto Médico Legal. Mas diante de centenas de corpos numa grande tragédia, qualquer detalhe pode fazer a diferença.
Tatuador há mais de 20 anos, Daniel Tucci lembra que no Rio de Janeiro a tatuagem sempre foi muito difundida, até por causa do clima e da praia. As pessoas podem mostrar o corpo. Ele concorda que os desenhos escolhidos pelos clientes cada vez mais representam a identidade de cada um, mesmo quando seguem uma determinada tendência e, por que não dizer, a moda. São inúmeros os que o procuram para tatuar o nome de parentes no corpo.
— A mídia ajudou bastante a mudar isso. Novelas como “Água Viva” e “Sol de Verão”, na década de 80, ajudaram a popularizar a tatuagem. Aí vieram os artistas, a cantora Marina. Hoje, há muito mais tolerância — diz o jornalista, que pediu uma tatuagem ao pai aos 14 anos, em 1978. — Ele disse “de jeito nenhum!”. Eu queria me sentir parte da minha tribo, que era a da praia. Aos 18 anos ,fiz a primeira, motivo praiano. Era a influência da música “Menino do Rio”, numa época em que ainda havia a velha discussão sobre ser marginal ou não.
Nenhum comentário:
Postar um comentário