Milhares de pessoas em todo o mundo estão tirando o nutriente da alimentação na esperança de emagrecer e ter mais saúde. Mas a dieta causa enorme controvérsia na comunidade científica
Cilene Pereira, Mariana Brugger e Mônica Tarantino*
Basta um teste
rápido para identificar a nova febre mundial no que diz respeito a
regimes de emagrecimento. Uma conversa no trabalho, com os amigos, na
academia e com certeza você ouvirá que alguém está fazendo, fez ou
pretende fazer a dieta do glúten. Retirar o nutriente do cardápio
tornou-se a solução mais propagada do momento para perder peso e ter
mais saúde. A recomendação contagiou o Brasil, os Estados Unidos, a
Europa. Os números de um mercado em franca expansão confirmam a
crescente popularidade desse movimento. Nos Estados Unidos, por exemplo,
a previsão é de que o consumo de produtos sem glúten salte de US$ 2,6
bilhões, em 2010, para US$ 5 bilhões em 2015. No Brasil, não há
estimativas exatas, mas proliferam pelo País restaurantes com opções
glúten-free no menu, e mercados, como o Santa Luzia, em São Paulo,
reservam prateleiras para os artigos sem a substância. A reboque dessa
onda está a exclusão da lactose, o açúcar do leite (leia mais sobre o
assunto à pág.70).
"Como tenho prazer em comer, sofri com a retirada do glúten. Mas me fez
muito bem. Perdi 17 quilos e regularizei meus níveis de colesterol"
Rubens Araújo, empresário, de São Paulo
muito bem. Perdi 17 quilos e regularizei meus níveis de colesterol"
Rubens Araújo, empresário, de São Paulo
O glúten é uma proteína existente no
interior dos grãos. Nas plantas, cumpre a função de guardar nitrogênio e
carbono para a germinação das sementes. Não tem calorias ou função
importante no organismo. Sua vantagem é ter se tornado imprescindível na
panificação. Por suas características, acrescenta viscosidade e
elasticidade às massas e pães.
Deixar de consumi-lo significa riscar do
prato sua principal fonte, o trigo, e outros cereais em que também está
presente em menor quantidade, como a cevada, o centeio, o malte e a
aveia. Em substituição, a orientação é usar outras fontes de
carboidratos, como a farinha de mandioca, arroz e tubérculos como o
inhame.
EFEITOS COLATERAIS
Os defensores da exclusão argumentam, em
primeiro lugar, que a troca elimina eventuais desconfortos abdominais
provocados pela substância. “O glúten é uma proteína grande e de difícil
digestão. Ele altera a bioquímica do intestino, pode levar à diarreia e
constipação e prejudica a absorção de nutrientes”, diz a farmacêutica e
nutricionista funcional Lucyanna Kalluf, do Natunutry Núcleo de
Nutrição e Clínica Personalizada, em São Paulo.
A endocrinologista Júlia Gouvea, de São
Paulo, também recomenda a retirada do glúten da alimentação. “Pesquisas
provam que o nível de inflamação do organismo – maior nos obesos e se
eleva por reação ao glúten e à lactose – aumenta a predisposição à
manifestação de problemas cardiovasculares e de doenças autoimunes,
entre elas a diabetes tipo 1”, diz. Tirar o nutriente, para ambas as
especialistas, equivale a remover um fardo do metabolismo, que passa a
trabalhar mais rapidamente.
ESCOLHAS
Renata (acima) é celíaca e não pode consumir a proteína.
Seu namorado, Gustavo, procura ingerir alimentos sem a
substância, mas sem radicalismo. A médica Júlia (abaixo)
afirma que glúten e lactose causam inflamação
Renata (acima) é celíaca e não pode consumir a proteína.
Seu namorado, Gustavo, procura ingerir alimentos sem a
substância, mas sem radicalismo. A médica Júlia (abaixo)
afirma que glúten e lactose causam inflamação
Os relatos de quem aderiu à vida sem glúten
corroboram essas afirmações. O empresário de moda Rubens Araújo, por
exemplo, começou uma dieta sem glúten e sem lactose após um check-up
revelar colesterol elevado e alto risco de diabetes. “Estranhei a
retirada do glúten porque adoro comer. Mas a mudança regularizou meus
índices de risco”, diz. Ele emagreceu mais de 17 quilos em seis meses.
“Os exames de Araújo revelaram intolerância ao glúten e à lactose.
Retirar esses alimentos restaurou o equilíbrio no intestino e melhorou
seu metabolismo”, diz a nutricionista Lucyanna.
A ciência concorda que o glúten não é uma
substância completamente inofensiva. Ele não pode ser consumido de forma
alguma por portadores de doença celíaca. Nesses indivíduos, a ingestão
do composto ocasiona uma reação autoimune que com o tempo produz danos
na mucosa do intestino delgado, causa má absorção de nutrientes e pode
levar a uma grande variedade de sintomas, como diarreia, distensão
abdominal e perda de peso.
Um dos argumentos que embalam a onda
glúten-free é a afirmação de que há indivíduos que não teriam a doença
celíaca ou alergia ao trigo (neste caso, o corpo produz anticorpos
específicos contra o glúten), mas uma sensibilidade à proteína.
“Sensibilidade ao glúten é uma condição mais recentemente identificada
que imita muitos dos sintomas de doença celíaca, mas é menos grave e não
causa dano intestinal. Temos muito a aprender sobre ela”, disse à ISTOÉ
o cientista Alessio Fasano, do Centro de Pesquisa Celíaca e Tratamento
do Hospital Geral de Massachusetts, nos Estados Unidos. “Meus estudos
revelaram uma nítida diferença entre o mecanismo molecular da doença
celíaca e o da sensibilidade ao glúten. Agora, trabalho para achar uma
substância que sirva de marcador para diagnosticar a sensibilidade ao
glúten”, afirmou. Fasano e a escritora científica Susie Flaherty acabam
de lançar o livro “Gluten Freedom”, ainda sem tradução. Para ele, quem
tem sensibilidade à proteína de fato se beneficia com a sua retirada.
VARIEDADE
Patrícia não entrou na onda. Fez reeducação
alimentar e emagreceu comendo de tudo
Patrícia não entrou na onda. Fez reeducação
alimentar e emagreceu comendo de tudo
SERVE PARA QUEM?
Aqui, porém, começam os problemas apontados
pelos críticos dessa estratégia. “As únicas pessoas para quem a
retirada do glúten é recomendada são os celíacos”, afirma a
endocrinologista Cintia Cercato, do Departamento de Obesidade da
Sociedade Brasileira de Endocrinologia e Metabologia. “E eles somam
apenas 1% da população”, complementa.
Há também uma grande controvérsia no meio
científico em relação à tal sensibilidade ao glúten. Recentemente, Peter
Gibson, da Monash University, o mesmo pesquisador que em 2011 publicou
artigo sobre o assunto, surpreendeu seus pares com a divulgação do
resultado de outras duas pesquisas, dessa vez feitas com mais rigor,
mostrando que a sensibilidade existe, mas não é tão comum, e que, na
verdade, o responsável pelos sintomas de desconforto não seria o glúten,
mas um tipo específico de carboidrato conhecido como FODMAPs. “Pessoas
sem doença celíaca, mas com desconforto abdominal, podem se beneficiar
com a redução do consumo de alimentos com trigo, mas isso está sendo
atribuído incorretamente ao glúten”, afirmou o cientista à ISTOÉ.
“Nossos estudos não identificaram qualquer evidência de que a proteína
seja a responsável pelos sintomas. As 37 pessoas estudadas melhoraram
quando foi diminuída a quantidade de FODMAPs. Isso não significa que
todos os indivíduos que pensam ser sensíveis ao glúten não o sejam, mas
isso é muito incomum, para dizer o mínimo”, disse à ISTOÉ. O cientista
Alessio Fasano contesta. “A intolerância alimentar, geralmente
envolvendo o açúcar dos alimentos e os FODMAPS, é muito diferente de
sensibilidade ao glúten. É como comparar maçãs e laranjas”, diz. “No
entanto, pode ser que eles agravem o quadro clínico da sensibilidade ao
glúten”, afirma.
Outra ponderação contra a dieta é que ela
priva o organismo de uma boa parte de carboidratos, fonte importante de
energia. Sem ela, o corpo pode acabar recorrendo às fontes da gordura e
da proteína para obter o combustível de que necessita. “Quebrar a
proteína da gordura, por exemplo, para transformá-la em energia tem um
custo alto para o organismo”, afirma o pediatra Mauro Fisberg, de São
Paulo, também especialista em nutrição. Há um gasto metabólico
desnecessário aplicado para essa função.
CONTA DE CALORIAS
Os críticos também argumentam que o
emagrecimento resultante da dieta advém da redução do consumo de
alimentos calóricos nos quais há a presença do glúten, como os pães e as
pizzas. “Muitas vezes essas são as fontes de vulnerabilidade para que a
pessoa engorde”, diz a nutricionista Beatriz Rique, da Clínica Ivo
Pitanguy, do Rio de Janeiro. A especialista lembra a história de uma
paciente que entrou na onda glúten-free e acabou engordando porque
passou a comer tanto quanto antes, mas dessa vez produtos sem o
ingrediente. “E o pão sem glúten tem calorias semelhantes aos integrais e
francês”, complementa o médico pós-graduado em nutrologia João Curvo,
do Rio de Janeiro. “A tapioca, muito usada para substituir o pão, não
emagrece”, diz.
A administradora de empresas carioca
Patrícia Dias, 32 anos, preferiu seguir essa linha de pensamento a
aderir à moda sem glúten da qual muitas de suas amigas viraram
seguidoras. “Perguntei à minha nutricionista se valia a pena tirá-lo”,
lembra. “Ela me disse que se não tivesse doença celíaca ou intolerância
não era o caso de fazer isso.” Com uma dieta personalizada, ela
emagreceu. “E comendo de tudo”, ressalta.
CRÍTICA
O especialista Fisberg diz que a retirada do glúten e da lactose da alimentação
sem necessidade pode causar prejuízos ao organismo
O especialista Fisberg diz que a retirada do glúten e da lactose da alimentação
sem necessidade pode causar prejuízos ao organismo
Diante de tanta controvérsia, há quem
prefira ficar no meio-termo. O publicitário Gustavo Negrini, de São
Paulo, que trabalha com marketing na área da nutrição, decidiu evitar o
glúten há cerca de cinco anos, quando começou a ler a respeito para
organizar um evento no setor, a feira Gluten Free, que ocorrerá em
agosto. “Não tenho problema algum com o glúten, mas sinto a digestão
mais leve e fico mais disposto quando escolho alimentos sem o
nutriente”, afirma. Hoje, Negrini diz que só não resiste à tentação de
estar diante de um pão caseiro assado na hora, como ocorreu no final de
semana, em uma pousada em São Carlos do Pinhal (SP). Sua namorada, a
chef Renata Macena, colabora para mantê-lo afastado do nutriente.
Celíaca, ela cria pães e doces sem glúten. “Dá para viver muito bem. É
só aprender a escolher.”
A onda sem lactose
Na
esteira da moda glúten-free surgiu também a dieta sem lactose, o açúcar
do leite. Portanto, a recomendação é não consumir leite, ou, se beber,
ingerir os produtos que não contenham a substância. E milhares de
pessoas no mundo estão fazendo isso. O raciocínio é parecido com o
aplicado para justificar a retirada do glúten da alimentação. A lactose
também provocaria intolerância em muita gente, sendo responsável por
sintomas desconfortáveis, como diarreia, inchaço e dor abdominal.
Há
de fato uma condição de saúde caracterizada pela intolerância à lactose.
O composto é metabolizado no organismo pela enzima lactase. O problema é
que com o passar dos anos sua produção diminui, o que,
consequentemente, reduz a quebra da lactose. Esse processo pode resultar
no surgimento dos sintomas. Além disso, há algumas circunstâncias
transitórias, como intoxicações alimentares, e a presença de
enfermidades como a doença de Crohn que também prejudicam a fabricação
da enzima, facilitando o acúmulo de lactose no organismo.
A
primeira crítica a esse modismo é que a intolerância ao composto estaria
sendo superdiagnosticada, embora existam testes que forneçam uma
resposta concreta. E, por conta disso, muita gente estaria
desnecessariamente prescindindo de um alimento essencial para a saúde.
“O leite tem alto valor nutricional”, explica o pediatra Mauro Fisberg.
Sua proteína participa de processos do crescimento, da síntese de outras
proteínas e hormônios e também alguns relacionados à imunidade. “Além
disso, é a melhor fonte de cálcio, ajudando no fortalecimento ósseo”,
diz a endocrinologista Cintia Cercato. Na opinião dos especialistas
contrários à exclusão da lactose, a suplementação de cálcio feita por
meio de comprimidos não apresenta os mesmos benefícios proporcionados
pela ingestão do mineral por meio da alimentação.
Eles
ponderam ainda que, também a exemplo do glúten, as opções sem lactose
costumam ser mais caras, o que pode afastar o indivíduo do consumo. No
entanto, é importante ressaltar que os derivados lácteos possuem os
mesmos benefícios do leite, mas com menor teor de lactose (o açúcar
acaba sendo quebrado durante o processo de fabricação). Por isso, podem
servir de boa alternativa para quem não consome o leite em sua forma
natural.
Foto: Kelsen Fernandes/Agência Istoé, Airam asil, Calebe Simões – Agência Istoé, Bruno Poppe; Gabriel Chirastelli
* Cilene Pereira (cilene@istoe.com.br), Mariana Brugger (marianabrugger@istoe.com.br) e Mônica Tarantino (monica@istoe.com.br)
* Cilene Pereira (cilene@istoe.com.br), Mariana Brugger (marianabrugger@istoe.com.br) e Mônica Tarantino (monica@istoe.com.br)
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