RIO - No intenso início de seu pontificado, Francisco levou a Igreja a
fazer voto de pobreza e prometeu reformar a Cúria e o Banco do
Vaticano. Sua ascensão é amparada por alta popularidade, mas alvo de
‘tramas’ e intrigas de setores conservadores arraigados ao poder. Amiga
do Papa, a jornalista argentina Elisabetta Piqué narra esses bastidores
no livro “Papa Francisco — Vida e Revolução”, que a editora LeYa lança
este mês no Brasil.Depois de entrar pela primeira vez na Capela Sistina
com o hábito branco papal, o cardeal argentino Jorge Mario Bergoglio,
que viria a ser Francisco, quebra o protocolo. Em vez de se dirigir à
sacada para cumprimentar o povo, caminha até um canto para cumprimentar
um cardeal doente. No caminho, tropeça em um degrau, pois as vestes são
grandes demais para ele. Esta é uma das passagens que Elisabetta
descreve com riqueza de detalhes. Mas não é, de longe, uma tônica das
dificuldades — bem mais sérias — que ele enfrentou neste ano e meio à
frente da Santa Sé.
Seu
pedido por uma Igreja pobre chocou não poucos cardeais, que temem
reformas na Cúria e no quase secreto Banco do Vaticano. Da simples Casa
de Santa Marta, onde vive (e não no Palácio Apostólico, como quase todos
os seus antecessores), assinou mudanças no Código Penal e pregou contra
a pedofilia no Vaticano. Não é só: Francisco fez declarações que
denotam uma inédita abertura aos gays.
Assim que escolheu o
nome Francisco, o cardeal Jorge Mario Bergoglio impôs uma “Igreja para
os pobres”, o que promoveu muitas resistências internas. Por que esse
ideal provocou um choque tão grande?
Segundo o
vaticanista Marco Politi, exigir uma Igreja pobre coloca em contradição
os estilos de vida e comportamento de eclesiásticos. Outro escritor,
Vittorio Messori, gerou grande controvérsia ao dizer que Jesus tinha
condições econômicas e, quando foi crucificado, usava uma veste
costurada com um só pedaço de tecido, um luxo raro. De acordo com ele,
“Jesus vestia Armani”. É uma amostra de como Francisco incomodou ao
quebrar o estilo tradicional de um pontífice. Está claro que ele quer
renovar e reformar a Igreja, que, como declarou o cardeal jesuíta Carlo
Maria Martini (1927-2012), está pelo menos 200 anos atrás dos tempos
atuais.
Bergoglio ficou em segundo lugar no conclave de
2005, quando Joseph Ratzinger se elegeu Papa Bento XVI. Quando voltou à
Argentina, confessou a um amigo que nunca sofreu tanto. Por quê?
Bergoglio
se sentiu manipulado. Sabia que parte dos cardeais votou nele meramente
porque não gostava de Ratzinger. Foi, então, usado para atrasar o
resultado do conclave. Ao mesmo tempo, seus inimigos comunicavam aos
cardeais que Bergoglio foi cúmplice da ditadura argentina, o que era uma
acusação falsa. De fato, logo após a eleição de Bento XVI, seus
adversários tramaram manobras para tentar afastar Bergoglio da Argentina
e levá-lo para a Cúria, que tem um estilo tão oposto ao seu. Seria,
para ele, um golpe mortal. Ele admitiu em uma entrevista: “Eu morro se
tiver que ir à Cúria”.
E o que mudou no ano passado? Ele estava preparado para assumir o Vaticano?
Acredito
que sim, mas inconscientemente. Bergoglio sempre disse que uma pessoa
precisa ser louca se deseja ser Papa. No entanto, ele teve tempo para se
mostrar um líder engajado e que se mantém autêntico. É, então, a pessoa
certa para uma Igreja que enfrenta escândalos como abuso sexual de
menores e roubo de documentos confidenciais.
No último
conclave, acreditava-se que seu principal adversário era o arcebispo de
São Paulo, Odilo Scherer, avaliado como um conservador. É possível dizer
como seria a Igreja hoje, caso ele tivesse vencido?
Não,
é arriscado fazer qualquer associação. O que sabemos é que um grupo de
cardeais não queria mudanças e temia uma limpeza depois do pontificado
de Bento XVI. Esse grupo foi o responsável por impulsionar a candidatura
de Scherer.
Desde o conclave, Francisco mora na Casa
Santa Marta. É o primeiro Papa, desde o século XIV, a não ocupar o
Palácio Apostólico ou locais onde, agora, estão os museus do Vaticano.
Ainda existe pressão para que ele se mude?
Não. As pessoas já entenderam que não existe essa possibilidade. Então, desistiram de qualquer argumento.
A
senhora já ouviu algumas pessoas dizerem na rua que Francisco poderia
ser “envenenado, assim como aconteceu com João Paulo I”, porque ele é
“puro e humilde demais”. O que acha desse medo?
Não
acredito que o Papa corra perigo. Mas entendo essa “sabedoria popular”,
porque já é evidente que Francisco está realmente tentando reformar a
Cúria, inclusive enfrentando o lado obscuro do Vaticano, que, nos
últimos anos, tornou-se uma fonte de intrigas e jogos de poder.
Francisco quer eliminar o carreirismo e a “psicologia dos príncipes”.
Outro temor dos conservadores da Cúria seria o destino do Banco do Vaticano...
Sim,
um setor da Cúria estava apavorado com a possibilidade de que Francisco
acabasse com o Instituto para as Obras de Religião (IOR), muitas vezes
chamado erroneamente de Banco do Vaticano. Francisco criou uma comissão
para investigar o órgão, ouviu seus relatos e concluiu que o banco deve
continuar como uma instituição financeira a serviço da Igreja, mas tomou
medidas para que seja totalmente transparente. Ele mudou a
administração e tem, agora, consultoria empresarial.
Como é a relação entre Francisco e o Papa emérito Bento XVI?
Francisco
já declarou que considera Bento um avô da Igreja. Eles conversam muito
por telefone, trocam recados e, às vezes, se encontram. A convite de
Francisco, Bento foi a um encontro de cardeais em fevereiro e à
canonização de João XXIII e João Paulo II, em abril. Francisco disse
publicamente que Bento não é uma estátua de museu, e sim uma instituição
que abriu as portas para a aposentadoria de papas. Também destacou a
coragem que Bento teve para renunciar. Este, por sua vez, disse, em
carta a um teólogo, que estava muito grato pela “grande identificação de
visões” com o sucessor.
Que política de Bento XVI foi continuada por Francisco?
A
“tolerância zero” ao abuso sexual de crianças. De fato, Francisco criou
uma comissão para investigar casos de pedofilia e, na semana passada,
pela primeira vez, um núncio (Jozef Wesolowski), ex-embaixador da Igreja
na República Dominicana, foi condenado de acordo com o Código Penal do
Vaticano.
A senhora conhece o Papa há 13 anos. Acredita que sua relação pessoal com ele influenciou ao escrever o livro?
Claro.
Mesmo que seja uma biografia não autorizada, escrevi de uma forma
objetiva. Fui honesta e nunca escondi minha admiração por Jorge
Bergoglio.
Sabe-se que Francisco não gosta de TV. Ganha
DVDs, mas não assiste a eles. E acha que os noticiários são uma
“baixaria”. O que ele vê?
Ele viu o filme “A vida é
bela”, de Roberto Benigni (1997). Deve ter gostado. E não vê os jogos da
Copa, mas se interessa pelos resultados.
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