“Você é minha esfinge!”,
disse um amigo à ela, tamanho era seu mistério. E, para ela, não havia
outra definição que pudesse defini-la melhor: um enigma nunca antes
desvendado, tal como a esfinge de Édipo. Reclinada em sua poltrona,
ela recebia essa mensagem com a estranha sensação de resignação, como se
ainda não tivesse nascido ainda alguém que pudesse compreendê-la. Ela
era o maior desafio para terapeutas, amigos e, sobretudo, para ela
mesma.
Não que ela fosse a pessoa mais
complicada do mundo, longe disso. Também não era a pessoa com mais
problemas do que as outras, embora tivesse seus dramas. Não tinha um
gênio indomável, tampouco era fria:. Não pecava pelos excessos, pelo
contrário: sua fala é mansa, suave, quase que embalando uma melodia,
embora se esconda um vulcão, um tsunami. Por trás dos seus olhos
serenos e seu sorriso contagiante, encontravam-se terremotos, maremotos e
chuvas torrenciais. Talvez esse fosse justamente o problema: só ela
sabia dessa ambigüidade, mas se continha a tal ponto que até ela, por
vezes, se esquecia do que ela era.
Talvez ela possuísse uma imagem
parcial, incompleta, de si mesma e se assustava sempre que os seus
outros lados, como aquele mais obscuro e o mais impulsivo, apareciam. E
eles sempre aparecem, pois a natureza sempre põe à tona aquilo que
tentamos esconder de nós mesmo, não importa como. E como ninguém gosta
de viver de sobressaltos, ela se protegeria a sua maneira: uns diziam
que ela se fechava em uma concha, outros diziam que ela colocava
dezenas, centenas de camadas a sua volta, assim como uma cebola.
Todos nós temos diversos
“lados”, facetas. Não seria exclusividade só dela. Todavia, há formas e
formas de revelá-los. Alguns simplesmente deixam essas facetas fluírem
naturalmente, sem controle prévio ou censura. Impulsivos, por mais
organizados que sejam cada minuto é uma grande surpresa pra eles: não se
sabe como irão reagir a um gesto, uma palavra, um olhar do outro ou de
si mesmo. Outros, por sua vez, controlam cada passo que irão dar: está
tudo arquitetado, evitam o improviso que a impulsividade obriga a ter.
Cada palavra dita é proferida devidamente pensada e repensada, cada
gesto é filtrado e não foge a seu controle. Mas como a natureza sempre
põe à tona aquilo que tentamos conter, sempre que se há um lapso e ela
se escapole de sua concha, sempre que percebe que a cebola sendo
descascada muito rápida ou profundamente, ela se fecha cada vez mais,
seja em uma concha mais resistente, seja em uma cebola com mais camada.
Mas não seria o fluxo da vida
abundante demais para se passar por um eterno e rigoroso controle?
Tentar viver em um casulo é como controlar um vazamento com chiclete:
uma hora não vai segurar mais, vai arrebentar. E a vida pode ficar tão
mais divertida, tão mais colorida quando deixamos o impulsivismo
aparecer em nossas vidas: quando falamos aquilo que queremos falar, que
digamos bobagem, quando agimos passionalmente mesmo que depois fiquemos
vermelhos de vergonha do que fizemos. Que nos apaixonemos e
desapaixonemos. Quando agimos antes de pensar, quando não pensamos nas
consequências. Enfim, não é ser irresponsável, é ser humano, é ter vida.
E Talvez ela saiba disso: há uma certeza quase geral de que nem o
melhor dos psicólogos vai dizer alguma coisa sobre ela que ela já não
saiba. Mas, assim mesmo, ela continua sendo um desafio para si e para os
outros: qual a razão para tanto domínio de ímpeto? Seria medo de ser
feliz de uma forma diferente do que passou a vida planejando? Desfazer
os castelos de areia da alma é tão doloroso quanto perder parte do
corpo, e nem todos estão preparados para isso.
Só aqueles olhos calmos que
escondem uma grande ressaca do mar seriam tão mais belos se permitissem
que fôssemos engolidos por suas gigantes ondas. Que aquela fala
carinhosa que acalma o seu ouvinte também se permitisse queimá-lo com as
lavas do seu Vulcão. Que a mão que acalenta se permitisse colocá-lo no
meio de um terremoto. Mas para ela pode ser que seja mais forte que ela
desviar-se do assunto quando ele vai entrar em uma área onde ela não
tem total controle. Ou que é mais forte que ela desconfiar de alguém que
apenas quer conhecê-la, pois não existe amizade sem conhecimento do
outro. Talvez, para ela, perceber que no meio de uma conversa, o outro
está perto de si mesma, em uma área perigosíssima, a do seu eu
desprotegido, ambíguo, sem máscaras, é tão assustador que a faz usar
qualquer arma para despistar, fugindo logo em seguida. Talvez, quando
ela sai da conversa, foge não por ser covarde, mas porque não se sente
confortável para se abrir para o outro. Mas como se sentir confortável
quando não se abre espaço? Embora sempre risonha, fazê-la sorrir aquele
sorriso verdadeiro, de dentro pra fora, aquele que mostra a janela
secreta da alma, seja para muitos dos seus queridos uma vitória.
Mas, apesar de tudo, é
justamente nesse ser contido que se guarda um charme, algo que atrai as
pessoas a quererem conhecê-la melhor. Arrasta-nos para uma grande areia
movediça, prendendo ali eternamente sem nunca ter certeza completa de
que a realmente conhece. Talvez este seja o segredo dessa esfinge
pós-moderna: descobrir uma senha que nos livre dessa incontrolável
compulsão em desvendá-la ou que a faça sair de sua concha
ultra-resistente. Por mais que seja meio exagerado dizer que ainda não
nasceu um Édipo para desvendar esse enigma, o fato é que ainda não ele
não foi encontrado. Esse ar misterioso, contido, pode ser justamente uma
escolha dela, que permitirá a apenas a alguns privilegiados, que
possuindo a resposta do seu enigma, tem as chaves de seu coração e
mente. Que por trás daquela fachada quieta e serena, existia uma
intensidade explícita em seu viver. Ou será que sua intensidade esta
circunscrita aos suas loucuras secretas? Daria pra viver certas loucuras
de vez em quando sem necessariamente romper as barreiras do seu
casulo? Enquanto isso não acontecia, ela poderia estar se deliciando
em devorar meros mortais extremamente curiosos em desvendá-la,
bagunçando suas cabeças metidas a analistas freudianos.
Depois de sua resignação
inicial, e reorganizando seus pensamentos, ela, com um sorriso no canto
na boca, fala para uma confidente e surda tela: “É, talvez eu seja uma esfinge! Decifra-me ou te devoro!”.
Posso escutar o seu contido riso travesso quebrando o silencio de seu quarto.
Memórias espalhadas, soltas, desconexas, mas minhas. Um dia venho aqui pegá-las de volta. Aproveite enquanto isso
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