Por uma santa
coincidência, o segundo turno destas eleições caiu justamente no dia em
que se comemora 499 anos da Reforma Protestante. E por uma santa ironia,
dentre as causas defendidas pelos reformadores estava a separação entre
a igreja e o estado. Mas vivemos dias tenebrosos, quando os
autoproclamados herdeiros da reforma traem o seu legado, atentando
contra a sagrada laicidade do estado.
Chamo de “sagrado” no sentido de ser intocável, e, portanto, digna de ser defendida com unhas e dentes.
A cidade do Rio
vive sua mais acirrada disputa eleitoral dos últimos tempos. De um lado
do ringue, Marcelo Freixo, deputado estadual, professor de história, que
alcançou notoriedade por sua luta contra as milícias, do outro, Marcelo
Crivella, bispo licenciado da Igreja Universal presidida pelo seu tio
Edir Macedo.
Conheço o Crivella
há muitos anos, e posso dar testemunho de sua idoneidade. Da penúltima
vez que estivemos juntos, almoçávamos num restaurante da Barra da
Tijuca, quando ele me confessou com os olhos cheios de lágrimas que
havia deixado a África contra sua própria vontade em obediência à ordem
de seu tio. Os anos se passaram e o então candidato ao senado parece ter
pego o gosto pela política. Se não, por que razão teria se candidatado
tantas outras vezes?
O que me assusta em
sua candidatura é o que ela representa. Ainda que nas entrelinhas, seu
discurso repete exaustivamente a ladainha vociferada nos púlpitos de
suas igrejas. O projeto de poder de seu tio não é segredo para ninguém.
Basta desfolhar o livro “Plano de Poder” de sua autoria lançado anos
atrás para deparar-se com uma proposta que beira à teocracia.
Particularmente,
sinto-me enojado com a possibilidade de um talibã gospel implantado em
terras tupiniquins. O sonho de Macedo é presidir o país e torná-lo
cristão na canetada, bem ao estilo de Constantino, o imperador romano
que tornou o cristianismo na religião oficial do império. Crivella
demonstrou ser apenas mais um pau mandado à serviço dessa funesta
agenda.
Houve um tempo em
que os bispos da igreja temiam que numa eventual morte de Macedo,
Crivella assumisse a sua direção e a transformasse numa igreja de
verdade, retomando os princípios apregoados na Reforma Protestante. Por
isso mesmo, pressionaram Macedo a tirá-lo do ministério pastoral,
trocando o púlpito pelo plenário. No púlpito (eles o chamam de altar),
Crivella se constituía numa ameaça, mas no plenário ou num posto
executivo, ele seria uma mão na roda. A partir daí, seu inegável carisma
estaria a serviço de um projeto que extrapola os limites eclesiásticos.
A julgar pelos
vídeos publicados na internet e pelo livro escrito em 2002, Crivella
teve sua fase de intolerância. Mas acredito que seu trânsito pelos
corredores do poder conseguiu adestra-lo e torna-lo mais palatável.
Todavia, o cerne de sua mensagem segue sendo o mesmo. Algo semelhante à
descrição da besta do Apocalipse que tinha aparência de cordeiro, mas
falava como dragão. O invólucro é sedutor, capaz de atrair os incautos,
mas a essência do discurso se mantém intacta, comprometida até o último
fio de cabelo com o conservadorismo e o fundamentalismo.
Não precisamos de
um prefeito evangélico, muito menos de um presidente comprometido com
esta agenda de poder. Precisamos de um prefeito engajado com a justiça
social, independentemente do credo que professe.
Jesus disse que o
Seu reino não era deste mundo. Isto é, Seu reino não segue a lógica do
poder. De acordo com as parábolas contadas pelo mestre galileu, quem
quisesse ser o maior, deveria ser o menor e assim, servir aos seus
semelhantes. Quem quiser ser o primeiro, que seja o último. Portanto,
não há lugar no reino para quem impõe sua agenda aos demais.
Jesus ensinou-nos a
orar rogando que Seu reino viesse a este mundo, de modo que Sua vontade
fosse feita aqui na terra como é feita no céu. Repare nisso: o reino
não é DESTE mundo, mas é PARA este mundo. E qual seria a tal agenda do
reino? Que vontade é esta que deve cumprir-se aqui, como se cumpre lá?
Ele responde na própria oração do Pai Nosso. Que o pão nosso de cada dia
nos seja dado hoje.
Atente para o
detalhe: A oração começa com “Pai NOSSO” e pouco depois fala de uma pão
que deve ser igualmente NOSSO. Tal é a natureza do reino de Deus. O Pai
só poderia ser nosso onde o pão igualmente o fosse. Quem compartilha da
paternidade divina, deve dispor-se a partilhar o seu pão com os demais. A
mesma prece nos ensina a perdoar os nossos devedores e não a
extorquir-lhes com juros abusivos como tem sido feito.
Infelizmente, os
que se dizem porta-vozes do tal reino dos céus se aliaram com os que
exploram e extorquem seu próprio povo. O pão é destinado apenas a
alguns. Os demais, que se contentem com as migalhas que caem das mesas
dos abastados.
Em contrapartida,
do outro lado da trincheira, encontramos que não ouse falar em nome de
Deus, mas que, ainda que inconsciente, busca fazer Sua vontade. Num de
Seus últimos sermões, Jesus diz que no Dia do Juízo Final, Ele daria
boas-vindas aos que lhe teriam dado de comer quando faminto, saciado Sua
sede, cobrindo-o no frio, visitando-o no cadeia, e ele lhe
responderiam: Não nos lembramos de termos feito nada disso para Ti.
E Ele dirá: Vocês
me fizeram quando socorreram a um dos meus pequeninos. Subentende-se
daí, que os que se solidarizaram com a dor alheia não o fizeram por
motivos religiosos. Eles nem sequer tinham consciência de estarem
servindo a Deus. Não tinham a menor intenção de usar suas boas obras
para barganhar com Deus. Sua única motivação era o amor que se expressa
no serviço prestado ao seu semelhante.
Recuso-me a dar meu
voto a quem defenda os interesses dos que só fazem concentrar riquezas,
negando-se a partilhar seu pão. Recuso-me a dar meu voto a quem não
tenha qualquer escrúpulos de usar o nome de Deus para se enriquecer ou
para galgar posições políticas.
Recuso-me a votar
em quem não tenha demonstrado ter personalidade, dobrando-se aos
caprichos dos que lhes impõe a própria vontade.
Não quero um país
evangélico. Quero um país de todos. Onde cada pessoa siga sua
consciência, sem interferência de quem quer que seja. Um país que
respeite a diversidade, que valorize o diálogo, que abrace o forasteiro e
garanta os direitos de seus cidadãos.
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