10.24.2016

Crivella é um perigo, inclusive, para os evangélicos. Por Hermes Fernandes, bispo no RJ


MarceloCrivella
Por uma santa coincidência, o segundo turno destas eleições caiu justamente no dia em que se comemora 499 anos da Reforma Protestante. E por uma santa ironia, dentre as causas defendidas pelos reformadores estava a separação entre a igreja e o estado. Mas vivemos dias tenebrosos, quando os autoproclamados herdeiros da reforma traem o seu legado, atentando contra a sagrada laicidade do estado.
Chamo de “sagrado” no sentido de ser intocável, e, portanto, digna de ser defendida com unhas e dentes.
A cidade do Rio vive sua mais acirrada disputa eleitoral dos últimos tempos. De um lado do ringue, Marcelo Freixo, deputado estadual, professor de história, que alcançou notoriedade por sua luta contra as milícias, do outro, Marcelo Crivella, bispo licenciado da Igreja Universal presidida pelo seu tio Edir Macedo.
Conheço o Crivella há muitos anos, e posso dar testemunho de sua idoneidade. Da penúltima vez que estivemos juntos, almoçávamos num restaurante da Barra da Tijuca, quando ele me confessou com os olhos cheios de lágrimas que havia deixado a África contra sua própria vontade em obediência à ordem de seu tio. Os anos se passaram e o então candidato ao senado parece ter pego o gosto pela política. Se não, por que razão teria se candidatado tantas outras vezes?
O que me assusta em sua candidatura é o que ela representa. Ainda que nas entrelinhas, seu discurso repete exaustivamente a ladainha vociferada nos púlpitos de suas igrejas. O projeto de poder de seu tio não é segredo para ninguém. Basta desfolhar o livro “Plano de Poder” de sua autoria lançado anos atrás para deparar-se com uma proposta que beira à teocracia.
Particularmente, sinto-me enojado com a possibilidade de um talibã gospel implantado em terras tupiniquins. O sonho de Macedo é presidir o país e torná-lo cristão na canetada, bem ao estilo de Constantino, o imperador romano que tornou o cristianismo na religião oficial do império. Crivella demonstrou ser apenas mais um pau mandado à serviço dessa funesta agenda.
Houve um tempo em que os bispos da igreja temiam que numa eventual morte de Macedo, Crivella assumisse a sua direção e a transformasse numa igreja de verdade, retomando os princípios apregoados na Reforma Protestante. Por isso mesmo, pressionaram Macedo a tirá-lo do ministério pastoral, trocando o púlpito pelo plenário. No púlpito (eles o chamam de altar), Crivella se constituía numa ameaça, mas no plenário ou num posto executivo, ele seria uma mão na roda. A partir daí, seu inegável carisma estaria a serviço de um projeto que extrapola os limites eclesiásticos.
A julgar pelos vídeos publicados na internet e pelo livro escrito em 2002, Crivella teve sua fase de intolerância. Mas acredito que seu trânsito pelos corredores do poder conseguiu adestra-lo e torna-lo mais palatável. Todavia, o cerne de sua mensagem segue sendo o mesmo. Algo semelhante à descrição da besta do Apocalipse que tinha aparência de cordeiro, mas falava como dragão. O invólucro é sedutor, capaz de atrair os incautos, mas a essência do discurso se mantém intacta, comprometida até o último fio de cabelo com o conservadorismo e o fundamentalismo.
Não precisamos de um prefeito evangélico, muito menos de um presidente comprometido com esta agenda de poder. Precisamos de um prefeito engajado com a justiça social, independentemente do credo que professe.
Jesus disse que o Seu reino não era deste mundo. Isto é, Seu reino não segue a lógica do poder. De acordo com as parábolas contadas pelo mestre galileu, quem quisesse ser o maior, deveria ser o menor e assim, servir aos seus semelhantes. Quem quiser ser o primeiro, que seja o último. Portanto, não há lugar no reino para quem impõe sua agenda aos demais.
Jesus ensinou-nos a orar rogando que Seu reino viesse a este mundo, de modo que Sua vontade fosse feita aqui na terra como é feita no céu. Repare nisso: o reino não é DESTE mundo, mas é PARA este mundo. E qual seria a tal agenda do reino? Que vontade é esta que deve cumprir-se aqui, como se cumpre lá? Ele responde na própria oração do Pai Nosso. Que o pão nosso de cada dia nos seja dado hoje.
Atente para o detalhe: A oração começa com “Pai NOSSO” e pouco depois fala de uma pão que deve ser igualmente NOSSO. Tal é a natureza do reino de Deus. O Pai só poderia ser nosso onde o pão igualmente o fosse. Quem compartilha da paternidade divina, deve dispor-se a partilhar o seu pão com os demais. A mesma prece nos ensina a perdoar os nossos devedores e não a extorquir-lhes com juros abusivos como tem sido feito.
Infelizmente, os que se dizem porta-vozes do tal reino dos céus se aliaram com os que exploram e extorquem seu próprio povo. O pão é destinado apenas a alguns. Os demais, que se contentem com as migalhas que caem das mesas dos abastados.
Em contrapartida, do outro lado da trincheira, encontramos que não ouse falar em nome de Deus, mas que, ainda que inconsciente, busca fazer Sua vontade. Num de Seus últimos sermões, Jesus diz que no Dia do Juízo Final, Ele daria boas-vindas aos que lhe teriam dado de comer quando faminto, saciado Sua sede, cobrindo-o no frio, visitando-o no cadeia, e ele lhe responderiam: Não nos lembramos de termos feito nada disso para Ti.
E Ele dirá: Vocês me fizeram quando socorreram a um dos meus pequeninos. Subentende-se daí, que os que se solidarizaram com a dor alheia não o fizeram por motivos religiosos. Eles nem sequer tinham consciência de estarem servindo a Deus. Não tinham a menor intenção de usar suas boas obras para barganhar com Deus. Sua única motivação era o amor que se expressa no serviço prestado ao seu semelhante.
Recuso-me a dar meu voto a quem defenda os interesses dos que só fazem concentrar riquezas, negando-se a partilhar seu pão. Recuso-me a dar meu voto a quem não tenha qualquer escrúpulos de usar o nome de Deus para se enriquecer ou para galgar posições políticas.
Recuso-me a votar em quem não tenha demonstrado ter personalidade, dobrando-se aos caprichos dos que lhes impõe a própria vontade.
Não quero um país evangélico. Quero um país de todos. Onde cada pessoa siga sua consciência, sem interferência de quem quer que seja. Um país que respeite a diversidade, que valorize o diálogo, que abrace o forasteiro e garanta os direitos de seus cidadãos.
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