3.30.2011

Não posso reclamar de solidão porque vivo cercado de gente.

Por isso, para mim os momentos em que passo sozinho não são nada dolorosos. Ao contrário, servem para refletir, ouvir as músicas que amo, fazer planos para os próximos minutos e mesmo pensar em abstrato, sem um alvo fixo. Mas hoje a solidão dos outros me contagia. Estou só no carro, indo ao trabalho. Ouço um triste quinteto com piano e cordas e olho para frente com lágrimas impostas pelo compositor nos olhos. Vejo apenas as traseiras dos carros que nervosamente passam à minha frente.
Sou devagar no carro, não acelero muito talvez para não sentir o tempo passar. Os outros são diferentes, e não formam exatamente o paraíso que inventei em alguma história. É isto: ao dirigir o carro, escrevo mentalmente histórias, que podem ser chamadas de crônicas porque no Brasil poema em prosa é crônica. Sim, estou distraído no meio do trânsito, os outros buzinam e sou puxado por todos os lados, tenho de acelerar e parar quando me forçam a isso. O clima está meio frio, as janelas de todos os veículos estão fechadas. É um hábito recente, derivado do excesso de violência e assédio nas esquinas.
Lembro que não havia solidão no trânsito quando todo mundo andava de janela aberta, batia papo com o motorista do carro do lado, ou mesmo o insultava com ímpeto. Eu gostava de observar a madame nervosa que esnobava os outros de seu carrão alto; o mocinho que, ao volante, enchia o peito se fingindo de adulto; o profissional paramentado para ir, todo ereto no banco, ao trabalho; o mano dançando com som alto; a mãe que transportava um enxame de filhos barulhentos, mais o cachorro tomador de vento; o folclórico velho de chapéu que rareia, até porque chapéu voltou à cabeça dos jovens... Essa divertida fauna sobre jaulas motorizadas sumiu para dentro dos veículos superprotegidos, que mais parecem incubadoras ou foguetes. Hoje, as pessoas se esconderam por trás do insufilm – já quase não é possível observar o quem está dentro dos carros.
Talvez para compensar o isolamento, começaram a surgir adesivos nas traseiras dos carros. São adesivos de identidade, de todos os tipos e feitios. Eles pretendem obviamente revelar as personalidades, os gostos e até os origens do motorista e dos passageiros. Os carros agora querem dizer coisas específicas, enviar mensagens determinadas para quem está fora e em volta. Os bairristas exibem orgulhosamente as bandeiras de seus estados, só mesmo conhecida e compartilhada por seus concidadãos. Descubro hordas de gaúchos pela cidade, já que muitos fazem questão de usar a bandeira verde, vermelha e amarela do estado, que eu conheço por ser de lá (confesso: eu próprio já usei a bandeira farroupilha no meu carro, para assim ser reconhecidos pelos conterrâneos, e só por eles). As gentes manifestam sua fé, ao grudar no carro símbolos religiosos: cruzes, peixes (sabe-se que é um carro evangélico), estrelas de Davi, terços de imagens da Virgem Maria. Curiosamente, para falar na religião mais forte do pais, poucos ousam exibir símbolos de times de futebol, por medo de depredação da torcida rival. Médicos e advogados trazem suas respectivas credenciais simbólicas em suas respectivas traseiras. Parecem dizer: “olha o respeito, você aí!). Há aqueles motoristas que, ao contrário, espantam o medo ao querer infundir pavor, e se jactam de pertencer a algum clube secreto ou a uma tribo temível. Esses ostentam um símbolo como uma carranca amedrontadora. Como não temer a caveira do metaleiro, o distintivo de algum tribunal de alçada ou o esquadro e o compasso de um maçom veloz e intrépido?
Em tempos recuados, havia a filosofia dos parachoques de caminhão. Os caminhoneiros eram os maiores solitários do Brasil. Viviam longe de namoradas e da família. Só lhes sobrava um pouco de humor para compartilhar com quem os ultrapassava. Quantos aforismos maravilhosos não li em alta velocidade: “De pensar, morreu um burro, e, aposto que ainda não entendeu!” “Estrada reta é igual à mulher sem cintura, só dá sono.” “Divórcio é igual engenho, só devolve o bagaço.” “Há males que vem para pior.” “Se a prática conflita com a teoria, muda-se a teoria!” “Do frio do sul ao calor do norte, montado na morte, à procura da sorte” “Se a vida é um buraco, esta rua é cheia de vida”. Essas frases geniais dos caminhoneiro – que valem uma crônica à parte - estão desaparecendo das estradas, talvez porque tenham arranjado companhia fixa, talvez porque instalaram DVD-player na boleia, ou porque a nova ortografia aboliu a palavra “para-choque” e a substitui por uma feiosa “parachoque”. Com isso, os motoristas de caminhão estão perdendo o traço que os distinguia dos outros. Hoje a maioria usa o símbolo banal da companhia de seguros ou então os dizeres colados pelo dono da empresa de transporte com uma pergunta específica: “Como estou dirigindo? Ligue para...” Não existe mais metafísica nem mesmo no seu último baluarte: as carrocerias dos caminhões.
De um tempo para cá, noto que os carros e até os caminhões andam exibindo bonequinhos que representam um grupo de pessoas. São figurinhas simples, quase desprovidas de senso artístico que começaram a povoar todo tipo de veículo. Elas não estão ali apenas para fins de decoração, como anos atrás acontecia com Bart Simpson, Pink e o Cérebro e outros personagens de desenho animado. Não: as novas imagens têm um sentido específico, elas representam quem está dentro do carro, ou melhor, quem o ocupa habitualmente: a conjuntos com pai, mulher e filhos; outros já trazem o gato e o cão; há os que incluem até a sogra no alegre grupo de passageiros. A moda pegou. Trata-se de uma nova forma de afetividade. É também uma forma de informar que dentro do carro tem gente, tem muita gente. E também de parecer inofensivo aos outros motoristas. Alguns especialistas chegam a dizer que as “familinhas” põem os passageiros em perigo, pois assim os bandidos podem detectar facilmente quem está dentro do veículo que pretendem assaltar. É um pouco de paranoia desses experts.
Não vejo perigo nem desdouro nos adesivos de identidade. Eles são veículos de proteção e de aproximação, formas de expressão de credo, origem, profissão e vínculo. Nada mais. Aqui do meu carro lento, suponho que o problema não seja o que desejam dizer, mas o que evitam dizer: as figurinhas passaram a servir como substitutos das relações humanas reais. Funcionam como uma anestesia à solidão que, apesar de toda a nova iconografia, insiste em existir.

POR LUÍS ANTÔNIO GIRON

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