9.16.2012

Morar ancorado pode custar menos que o aluguel de um quarto e sala na Zona Sul

Famílias deixaram suas casas e vivem em barcos na Marina da Glória


Dany Golberg. “Às vezes, estou lendo num silêncio total e é o barulho de uma tainha pulando na água que me distrai ”, brinca
Foto: Leo Martins / O Globo
Dany Golberg. “Às vezes, estou lendo num silêncio total e é o barulho de uma tainha pulando na água que me distrai ”, brinca Leo Martins / O Globo
RIO - Em dezembro de 2011, Leonardo Eloi deixou o confortável apartamento que dividia com dois amigos em Jacarepaguá para viver num pequeno veleiro ancorado na Marina da Glória. Após trabalhar por seis anos numa multinacional de consultoria com sede na Barra, ele havia acabado de assumir um cargo na ONG Meu Rio, localizada na Glória. Com a mudança para o novo escritório, Leonardo, que estava acostumado a chegar ao trabalho em dez minutos, de carro, havia passado a perder até três horas de seu dia no trânsito.
— Era um suplício. Em um mês, vi que não iria aguentar aquela rotina — lembra.
A solução seria mudar para a Zona Sul. Leonardo começou a desbravar os classificados, mas se deparou com os preços inflados do mercado imobiliário carioca. Além disso, a falta de um fiador e a dificuldade de encontrar alguém para dividir o aluguel o deixaram a ver navios.
Naquela época, Leonardo foi a um churrasco num terraço na Glória. Desolado, contemplou, após algumas cervejas, os barquinhos repousando na Marina. Lembrou-se, então, que o pai de um amigo presente na mesma festa estava vendendo um antigo veleiro:
— Eu costumava velejar com eles desde criança. Foi o momento da epifania, do “eureca”. Na mesma noite, acertamos um preço.
No dia seguinte, ele foi até a Marina da Glória investigar se o plano era viável. Lá, ficou sabendo que poderia, sim, ancorar o barco permanentemente num píer, a um custo mensal de R$ 31 por pé, unidade de medida náutica, que equivale a 30,48 centímetros. Satisfeito, calculou que pelo seu novo barco, de 26 pés, gastaria R$ 806 por mês. Além disso, teria acesso a água potável e eletricidade. O mar, concluiu, seria o terreno perfeito para uma mudança de vida.
— Decidi associar um novo momento profissional a um novo tipo de moradia. Não sabia quase nada de vela, mas dei um jeito. Daquele cara engravatado, só sobrou o relógio de pulso — conta Leonardo, que aprendeu vários nós de marinheiro e outras técnicas náuticas consultando sites especializados no assunto.
Para aliviar a solidão que vitima até os mais experientes marujos, ele ganhou, há dois meses, a companhia de um amigo recém-divorciado, com quem tem dividido o barco. Nos fins de semana, os dois levantam âncora e içam as velas em passeios pelo litoral carioca.
Uma aventura que preferem evitar, porém, é a preparação de refeições na mínima cozinha do barco. Leonardo come na rua e lava as roupas numa lavanderia no Catete. O veleiro tem televisão, aparelho de ar-condicionado e frigobar. Mas o charme fica por conta de um projetor que transforma o pano da vela em tela para assistir a filmes sob o teto de estrelas. Propulsor de conquistas românticas, é um dos únicos itens “supérfluos” que guarda.
— Minha antiga casa não cabia no barco. Acabei doando muitas coisas para amigos. Costumo dizer que a vida aqui é minimalista.
Em outro píer da Marina, o psicanalista Dany Goldberg desfrutava da manhã de um sábado em seu veleiro. Mais espaçosa, a embarcação conta com dois cômodos, um banheiro e uma cozinha. Cada móvel ou equipamento ali é adaptado e otimizado de acordo com as restrições de espaço, um dos primeiros desafios que o tripulante tem que enfrentar. Familiarizado com o mar desde cedo — já teve caiaque, bote inflável e outro barco —, ele elogia a segurança da Marina e se diz um apreciador da “vida técnica” cultivada pelos que moram no mar.
— A manutenção do barco é toda artesanal. Aqui há sempre algo para consertar, é preciso gostar disso. Já ouvi muita história de barco abandonado por caras que não se acostumam.
Já faz dois anos e meio que ele está na Marina. Antes, pagava R$ 600 num quarto e sala em Botafogo. Quando o contrato acabou, o proprietário quis subir o preço, animado com a escalada dos aluguéis. Diante da iminente facada, Dany entregou-se ao desejo que nutria desde pequeno, quando vibrava com as aventuras de Jaques Cousteau na TV. Arrematou um veleiro com mais de 30 anos e começou a morar nele, enquanto o reformava aos poucos.
— Às vezes, estou lendo num silêncio total e é o barulho de uma tainha pulando na água que me distrai. Aqui as coisas têm um outro tempo — explica ele, que recentemente foi aprovado no rigoroso exame para capitão.
Nos últimos anos, a presença de cardumes de peixes e até mesmo de tartarugas marinhas de porte médio vem surpreendendo os habitantes da Marina, um sinal de que ainda há salvação para a Baía de Guanabara. Após chuvas mais fortes, porém, o cenário se transforma, com ratos mortos e preservativos trazidos pelas tubulações de esgoto.
Nome de barco tem simbolismo para o dono. Amante de Guimarães Rosa, Dany batizou seu veleiro de Sagarana, neologismo que mistura germânico antigo com um dialeto indígena e dá nome ao célebre livro do autor.
— A ideia inicial era chamar de “A Terceira margem do Rio” (título de um dos contos de Sagarana). Só que eu logo vi que, por ser muito grande, não soaria bem no rádio transmissor — explica Dany, que também trabalha fazendo excursões em seu barco para destinos como Ilha Grande e Ilhas Cagarras.
No fim de semana, é difícil encontrar marinheiro só por ali. Os cerca de dez donos de barcos que vivem na Marina costumam se reunir com outros marujos mais esporádicos em churrascos e passeios marítimos. Vez por outra, a administração promove regatas em que os prêmios são descontos no aluguel.
— Cada píer é um pequeno universo. Isso aqui é meio Edifício Master, só tem figura — diz Dany, referindo-se ao prédio de Copacabana retratado num filme de Eduardo Coutinho.
Atualmente, estão atracadas ali dezenas de embarcações, que vão desde lanchas de passeio até o avantajado veleiro Lady Laura, do cantor Roberto Carlos, cuja tripulação também vive a bordo. Em setembro de 2009, o grupo EBX, de Eike Batista, adquiriu a concessão para administrar a Marina, cuja área é estrategicamente situada em frente ao Hotel Glória, que está sendo remodelado pelo empresário. O projeto de reforma da Marina, porém, ainda não saiu do papel e aguarda autorização definitiva do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan).
Embora não seja obrigatório, é indicado que aqueles que pretendem viver em barco adquiram conhecimentos básicos de náutica. Além disso, a decisão geralmente depende de algum capital inicial. Um veleiro novo de 33 pés pode custar até R$ 200 mil. Um modelo usado e um pouco menor, à venda na Marina, está saindo por R$ 45 mil. Além disso, se o aluguel na Marina não é caro, o mesmo não se pode dizer da manutenção.
— Um barco legal e confiável é caro. E os reparos são rotineiros — diz o designer gráfico Sérgio de Garcia, na Marina desde 1993.
Sérgio decidiu morar num barco quando vivia a ressaca de uma separação amorosa. Com a ajuda de um funcionário que faz bicos por ali, ele aperfeiçoa continuamente o seu veleiro. Há pouco tempo, instalou uma antena da Sky com sinal HD e uma TV de tela plana em um dos dois cômodos do barco, que chama de “salão”. Parte da energia é acumulada por uma placa solar.
O melhor de viver em barco, diz, é a sensação de liberdade da qual usufrui.
— Morar aqui me dá autonomia e distanciamento intelectual em relação à cidade. É uma vida alternativa, à margem do sistema.
Há poucos minutos dali, o escritório de Sérgio no Centro é a base onde lava, passa roupas e guarda algumas poucas coisas que não cabem no barco. Morar num espaço restrito, diz, nos ensina que não precisamos de muito. O nome que deu ao barco, Terra Firme, representa a maneira como se sente a bordo.
— O meu lar é aqui no barco, no mar. Essa é a minha terra firme, não ali na cidade — diz Sérgio, que veleja desde os 9 anos e, em 1976, participou de uma expedição até a África do Sul.
Casados há cerca de um mês, Luana e Victor Daher dividem, desde então, o veleiro Das Flieng Papier, cujo interior mede 4,8 metros de comprimento. Junto com eles, há ainda o pequeno Giovanni, de 9, filho do primeiro casamento de Luana. Oceanógrafo, Victor já morava na Marina há cerca de dois anos. Deixou um apartamento na Lapa levando apenas o forno de micro-ondas e uma muda de roupas.
Seu primeiro barco chamava-se Parnaíba — homenagem a Santana de Parnaíba, sua cidade natal, no interior paulista — e era ainda menor. Para morar num lugar tão pequeno, conta, é preciso ser um arrumador incansável. Acostumado a construir galinheiros e cocheiras na fazenda onde foi criado, Victor restaurou o Parnaíba, que havia comprado por R$ 7 mil. Viveu ali por um ano, até que um antigo vizinho da Marina ofereceu o Das Fliengpapier.
— Digo que a casa é pequena, mas o quintal e a piscina são imensos — brinca.
Na noite anterior, a família havia custado a pegar no sono por conta de uma festa na vizinhança. Os decibéis abusivos de saveiros alugados e barcos turísticos são uma das maiores queixas de quem mora por lá. Por isso, há alguns meses a administração passou a multar embarcações que ligassem o som alto nas proximidades da Marina.
Com pesar, Victor informa que o Das Fliengpapier está à venda, pois dentro de algumas semanas a família se muda para a França, onde ele irá trabalhar numa estação meteorológica por seis meses. Na volta, pretende comprar um barco com mais espaço.
— Já apareceu um cara interessado no Das Flieng, senti uma dó no coração — conta.

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