Crônica / Matheus Pichonelli
Ao ser xingada, Dilma não se tornou alvo da
insatisfação, legítima ou não. Tornou-se alvo de quem perdeu a vergonha
de fazer em público o que faz todo dia no sofá: relinchar
por Matheus Pichonelli
—
Roberto Stuckert Filho/PR
O brasileiro médio saiu do armário. Na
abertura do maior evento da história do País, teve a chance de mostrar
em rede mundial sua maior virtude e não decepcionou: sabendo que seria
visto e ouvido, fez exatamente o que faz em seu sofá diante da tevê e
sem o menor pudor: relinchou. E relinchou alto, como quem enfia o
sorvete na testa.
Não, não me refiro às vaias contra a presidenta Dilma Rousseff, talvez o maior termômetro do esgotamento de um modelo de gestão incapaz de propor soluções novas para velhos problemas. Me refiro aos xingamentos intercalados entre gritos de brasileiros com muito orgulho e muito amor. Confortáveis nas cadeiras padrão Fifa, bem vestidos e bem almoçados, os representantes da brasilidade média não hesitaram em mandar em coro um “Ei, Dilma, vai tomar no cu”. O alvo do azedume, vale lembrar, era simplesmente a maior autoridade do País. E a autoridade, quando dá a cara ao tapa, como fez, não está imune a críticas ou vaias, merecidas ou não. (Até as cadeiras montadas em cima da hora na Arena Corinthians sabiam dos riscos da hostilidade. Os riscos, portanto, foram calculados). Mas, ao ser xingada, Dilma não se tornou apenas alvo de uma insatisfação. Tornou-se alvo da ignorância, do desrespeito e da arrogância.
Ignorância porque, se você perguntar aos probos embandeirados os motivos da bronca, duvido que soubessem responder além das quatro linhas do campo: “roubalheira”, “corrupção”, “vai para Cuba”, “metrô”, “legado”, “tem que sentar o cacete”, “impostos”. É a reação do cidadão Teletubbie, já descrito neste espaço: o cidadão que associa signos e produz emoções a partir de cores, bandeiras e frases feitas, mas é incapaz de ligar os pontos e elaborar qualquer relação entre alhos e bugalhos. Por isso, quando estimulados por uma imagem no telão (o poder?) relincham. Pudera: aprenderam em casa e nas escolas de ponta que xingar político era exercício de cidadania, ainda que reclamem por acordar cedo no domingo para votar a cada dois anos.
O xingamento é o descarte da associação honesta entre os pontos, entre eles o fato de que essa Copa não é dessa presidenta. Estava definida cerca de quatro anos antes de ela tomar posse e acordar com um Mundial inacabado no seu colo. Foi, talvez, a pior pegadinha deixada pelo seu padrinho e antecessor, este sim um entusiasta da ideia – assim como todos os governadores e prefeitos que saíram no tapa para ter em seu quintal uma Copa para chamar de sua. Mas autômato não vê fato nem vê argumento: apenas xinga quando sensibilizado, principalmente quando se sente confortável ao lado de tantos autômatos. (Não deixa de ser curioso: no tete-a-tete e em reuniões do condomínio, o rebelde de arquibancada chama bandido de doutor). O lapso entre os pontos chega ao absurdo de associar a crise do metrô à esfera federal, e não a uma quadrilha que transformou, nos últimos 20 anos, o sistema se transporte público de São Paulo em pula-pula de quermesse, com direito a cartel, propina, chefe de tribunal de contas enchendo as burras e secretário de primeiro escalão fingindo que o assunto não é com ele.
Mas a arrogância escancarada é filha da ignorância: a ignorância de quem vive em um país imaginário cujas mazelas são exteriores a ele, seu corpo e seus amigos e familiares. De corpo imune em corpo imune, criamos um país sentado no sofá (ou na arquibancada) à espera de milagres de tudo o que vem de fora. Por isso malha o professor, o porteiro, o policial e o político que ele despreza.
São os eternos rebeldes contentes. Os descontentes, fora do estádio, não deixaram por menos: quem propunha o boicote ao Mundial escancarava, sem querer, tudo o que sabia sobre a população mais surrada do País (nada) ao impor o que era bom para a tosse: desligar a tevê ou torcer para a Croácia. É uma atitude sintomática: o detentor da luz e da consciência vai até a comunidade dizer o que o morador da comunidade deve fazer para não ser um autômato. “Se o Brasil ganha, ganha a propaganda nacionalista. Mas eu acho que o Brasil vai ganhar porque a Copa está comprada. A reeleição da Dilma está no pé do Neymar”, disse à Folha de S.Paulo, durante o jogo, uma atriz de 26 anos que teve a bondade de sair de casa para catequizar os nativos.
Curiosa essa forma de conscientização: é mais ou menos como fazíamos no computador ao guiar os lemmings, aqueles bichinhos que não sabiam o que queriam nem para onde iam e dependiam da mão destra do jogador para não cair em abismos nem bater a cabeça na parede. Não, minha cara. A alienação que você jura combater não é resultado de propaganda nem do futebol. E, sim, é possível ser consciente e se rebelar com o que deve ser questionado antes, durante e depois de 90 minutos de jogo. Para quem levanta cedo no dia seguinte às partidas, a vida segue, talvez com mais cor, talvez com menos disposição. Mas segue. Seria melhor se seguisse sem levar nas costas as botas de uma velha pedagogia: a pedagogia do subestimado, a mesma que espalha relincho quando confunde indignação com arrogância. O autômato, pode acreditar, está do lado oposto do seu espelho.
Não, não me refiro às vaias contra a presidenta Dilma Rousseff, talvez o maior termômetro do esgotamento de um modelo de gestão incapaz de propor soluções novas para velhos problemas. Me refiro aos xingamentos intercalados entre gritos de brasileiros com muito orgulho e muito amor. Confortáveis nas cadeiras padrão Fifa, bem vestidos e bem almoçados, os representantes da brasilidade média não hesitaram em mandar em coro um “Ei, Dilma, vai tomar no cu”. O alvo do azedume, vale lembrar, era simplesmente a maior autoridade do País. E a autoridade, quando dá a cara ao tapa, como fez, não está imune a críticas ou vaias, merecidas ou não. (Até as cadeiras montadas em cima da hora na Arena Corinthians sabiam dos riscos da hostilidade. Os riscos, portanto, foram calculados). Mas, ao ser xingada, Dilma não se tornou apenas alvo de uma insatisfação. Tornou-se alvo da ignorância, do desrespeito e da arrogância.
Ignorância porque, se você perguntar aos probos embandeirados os motivos da bronca, duvido que soubessem responder além das quatro linhas do campo: “roubalheira”, “corrupção”, “vai para Cuba”, “metrô”, “legado”, “tem que sentar o cacete”, “impostos”. É a reação do cidadão Teletubbie, já descrito neste espaço: o cidadão que associa signos e produz emoções a partir de cores, bandeiras e frases feitas, mas é incapaz de ligar os pontos e elaborar qualquer relação entre alhos e bugalhos. Por isso, quando estimulados por uma imagem no telão (o poder?) relincham. Pudera: aprenderam em casa e nas escolas de ponta que xingar político era exercício de cidadania, ainda que reclamem por acordar cedo no domingo para votar a cada dois anos.
O xingamento é o descarte da associação honesta entre os pontos, entre eles o fato de que essa Copa não é dessa presidenta. Estava definida cerca de quatro anos antes de ela tomar posse e acordar com um Mundial inacabado no seu colo. Foi, talvez, a pior pegadinha deixada pelo seu padrinho e antecessor, este sim um entusiasta da ideia – assim como todos os governadores e prefeitos que saíram no tapa para ter em seu quintal uma Copa para chamar de sua. Mas autômato não vê fato nem vê argumento: apenas xinga quando sensibilizado, principalmente quando se sente confortável ao lado de tantos autômatos. (Não deixa de ser curioso: no tete-a-tete e em reuniões do condomínio, o rebelde de arquibancada chama bandido de doutor). O lapso entre os pontos chega ao absurdo de associar a crise do metrô à esfera federal, e não a uma quadrilha que transformou, nos últimos 20 anos, o sistema se transporte público de São Paulo em pula-pula de quermesse, com direito a cartel, propina, chefe de tribunal de contas enchendo as burras e secretário de primeiro escalão fingindo que o assunto não é com ele.
Mas a arrogância escancarada é filha da ignorância: a ignorância de quem vive em um país imaginário cujas mazelas são exteriores a ele, seu corpo e seus amigos e familiares. De corpo imune em corpo imune, criamos um país sentado no sofá (ou na arquibancada) à espera de milagres de tudo o que vem de fora. Por isso malha o professor, o porteiro, o policial e o político que ele despreza.
São os eternos rebeldes contentes. Os descontentes, fora do estádio, não deixaram por menos: quem propunha o boicote ao Mundial escancarava, sem querer, tudo o que sabia sobre a população mais surrada do País (nada) ao impor o que era bom para a tosse: desligar a tevê ou torcer para a Croácia. É uma atitude sintomática: o detentor da luz e da consciência vai até a comunidade dizer o que o morador da comunidade deve fazer para não ser um autômato. “Se o Brasil ganha, ganha a propaganda nacionalista. Mas eu acho que o Brasil vai ganhar porque a Copa está comprada. A reeleição da Dilma está no pé do Neymar”, disse à Folha de S.Paulo, durante o jogo, uma atriz de 26 anos que teve a bondade de sair de casa para catequizar os nativos.
Curiosa essa forma de conscientização: é mais ou menos como fazíamos no computador ao guiar os lemmings, aqueles bichinhos que não sabiam o que queriam nem para onde iam e dependiam da mão destra do jogador para não cair em abismos nem bater a cabeça na parede. Não, minha cara. A alienação que você jura combater não é resultado de propaganda nem do futebol. E, sim, é possível ser consciente e se rebelar com o que deve ser questionado antes, durante e depois de 90 minutos de jogo. Para quem levanta cedo no dia seguinte às partidas, a vida segue, talvez com mais cor, talvez com menos disposição. Mas segue. Seria melhor se seguisse sem levar nas costas as botas de uma velha pedagogia: a pedagogia do subestimado, a mesma que espalha relincho quando confunde indignação com arrogância. O autômato, pode acreditar, está do lado oposto do seu espelho.
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