Instituído por lei no fim do ano passado, o Programa Mais Médicos elegeu dois vértices para ampliar a cobertura do Sistema Único de Saúde. A solução emergencial de fixar médicos na rede pública em municípios do interior e nas periferias dos grandes centros ganhou maior destaque da mídia, em especial pelo acordo entre Brasil, Cuba e a Organização Pan-Americana da Saúde para trazer mais de 11 mil médicos cubanos, alocados em regiões carentes do País. Como resposta aos gargalos de longo prazo da saúde pública federal, cujo orçamento foi subtraído em 40% após o fim da CPMF, em 2007, o governo busca estimular a formação de especialistas em atenção básica no interior e contornar o déficit de atendimento pela inclusão dos estudantes na rotina de trabalho. O caminho pode ser menos oneroso do que criar uma carreira federal de medicina, como propôs o ex-ministro José Gomes Temporão em 2010. Mas a baixa atratividade da rede pública ainda é um entrave.
 
O Ministério da Educação acaba de aprovar as novas diretrizes curriculares dos cursos de Medicina no País. Formulado por uma comissão do Conselho Nacional de Educação, sob a relatoria do médico e professor universitário Arthur Roquete de Macedo, o texto atende a uma das demandas centrais do Mais Médicos: ao menos 30% da carga horária do estágio obrigatório, o chamado internato, deverá ser cumprida no SUS. No período, os futuros médicos poderão atuar em Unidades de Pronto Atendimento e Serviços de Atendimento Móvel de Urgência, mas devem dar prioridade à atenção básica da população.
 
Uma avaliação nacional dos estudantes a cada dois anos e um programa de qualificação dos docentes nas faculdades são outras novidades. As medidas podem contribuir para o sucesso dos cursos recém-abertos no País, com foco na formação de médicos voltados para o atendimento primário nos rincões. Em maio, foram aprovadas 420 novas vagas em universidades federais do interior do País. Em dezembro de 2013, foram 560. Na nova leva, Bahia foi o estado mais beneficiado, com a criação de três cursos.
Sob responsabilidade da Universidade Federal do Vale do São Francisco, o campus de Paulo Afonso, município de 120 mil habitantes na divisa entre Bahia e Alagoas, abrigará a sua primeira turma de medicina em 2014. Os 40 futuros médicos foram selecionados com base em suas notas no Enem. A instituição reserva 50% das vagas para estudantes egressos de escolas públicas. Eles terão aulas em um espaço provisório, uma antiga escolinha para os funcionários da Companhia Hidro Elétrica do São Francisco.
 
Segundo Leonardo Sampaio, pró-reitor da Univasf, a faculdade respeitará as atuais diretrizes curriculares. “Será um curso para a preparação de profissionais para atuar no SUS, como foco na medicina da família e das comunidades.” Pelas novas regras, os estudantes podem cursar apenas 25% da carga horária total do internato fora de seu estado de origem. O objetivo é fixar os futuros médicos nas regiões de formação. Sampaio afirma que os equipamentos da rede pública em Paulo Afonso são escassos. “Talvez alguns sejam remanejados durante o estágio para unidades de assistência social ou centros de ressocialização de adolescentes.”
 
A Faculdade de Medicina da USP, considerada uma das melhores do País, também atravessa importantes mudanças curriculares. Mas a abordagem naturalmente é distinta daquela dos cursos abertos no interior. José Auler, vice-diretor da instituição, afirma que a missão da faculdade é formar lideranças. “Temos oito institutos especializados de residência, 62 laboratórios e dezenas de grupos de pesquisa. Não podemos focar apenas na formação de médicos para a atenção primária e negar a nossa origem.”
 
A principal preocupação da instituição é em relação ao currículo, considerado ultrapassado. Atualmente, os alunos passam 11 mil horas em sala de aula, número bastante superior às 7 mil horas sugeridas pelo MEC. O objetivo da reformulação curricular é diminuir as aulas expositivas e aumentar as atividades prático-hospitalares. Disciplinas eletivas serão mais frequentes, o que permitirá ao estudante sondar a área de especialização de seu interesse durante a graduação. Conveniada a instituições estrangeiras como as universidades de Montreal e Barcelona, a faculdade quer incentivar o intercâmbio internacional ao abrir mais janelas curriculares para os estudantes cursarem disciplinas no exterior. Há ainda o objetivo de oferecer cursos a estrangeiros, mas o regimento atual não permite aulas em inglês na graduação. Quanto ao estágio obrigatório na rede pública, a USP não terá problemas. Os estudantes realizam seus internatos no Hospital das Clínicas, conveniado ao SUS. Auler afirma ainda que haverá uma avaliação semestral coordenada pela própria faculdade.
 
Embora o Mais Médicos faça uma campanha pelo reforço da atenção básica nos currículos, os estudantes da USP, diz Auler, têm pouco interesse pela área. “O problema é a empregabilidade”, diz. “Onde o estudante formado em atenção básica vai trabalhar? Não há plano de carreira e organização na rede pública.” Sampaio concorda. “Se não forem criadas condições para os recém-formados se fixarem no SUS, a proposta da Univasf cai por terra. O governo precisa fazer a parte dele.” Como 97% dos estudantes de medicina encontram um emprego no setor privado ao sair da universidade, a reformulação da carreira pública não pode ser negligenciada.