REPRODUÇÃO DA OBRA “A LIÇÃO DE ANATOMIA DO DR. TULP ” DE HARMENSZOON VAN RIJN REMBRANDT
Novos cursos foram abertos no interior. A carreira pública continua, porém, pouco atraente
O Ministério da Educação aprova o estágio obrigatório na rede pública de saúde
Por Miguel Martins
Instituído por lei no fim do ano passado, o Programa Mais Médicos
elegeu dois vértices para ampliar a cobertura do Sistema Único de Saúde.
A solução emergencial de fixar médicos na rede pública em municípios do
interior e nas periferias dos grandes centros ganhou maior destaque da
mídia, em especial pelo acordo entre Brasil, Cuba e a Organização
Pan-Americana da Saúde para trazer mais de 11 mil médicos cubanos,
alocados em regiões carentes do País. Como resposta aos gargalos de
longo prazo da saúde pública federal, cujo orçamento foi subtraído em
40% após o fim da CPMF, em 2007, o governo busca estimular a formação de
especialistas em atenção básica no interior e contornar o déficit de
atendimento pela inclusão dos estudantes na rotina de trabalho. O
caminho pode ser menos oneroso do que criar uma carreira federal de
medicina, como propôs o ex-ministro José Gomes Temporão em 2010. Mas a
baixa atratividade da rede pública ainda é um entrave.
O Ministério da Educação acaba de aprovar as novas diretrizes
curriculares dos cursos de Medicina no País. Formulado por uma comissão
do Conselho Nacional de Educação, sob a relatoria do médico e professor
universitário Arthur Roquete de Macedo, o texto atende a uma das
demandas centrais do Mais Médicos: ao menos 30% da carga horária do
estágio obrigatório, o chamado internato, deverá ser cumprida no SUS. No
período, os futuros médicos poderão atuar em Unidades de Pronto
Atendimento e Serviços de Atendimento Móvel de Urgência, mas devem dar
prioridade à atenção básica da população.
Uma avaliação nacional dos estudantes a cada dois anos e um programa de
qualificação dos docentes nas faculdades são outras novidades. As
medidas podem contribuir para o sucesso dos cursos recém-abertos no
País, com foco na formação de médicos voltados para o atendimento
primário nos rincões. Em maio, foram aprovadas 420 novas vagas em
universidades federais do interior do País. Em dezembro de 2013, foram
560. Na nova leva, Bahia foi o estado mais beneficiado, com a criação de
três cursos.
Sob responsabilidade da Universidade Federal do Vale do São Francisco, o
campus de Paulo Afonso, município de 120 mil habitantes na divisa entre
Bahia e Alagoas, abrigará a sua primeira turma de medicina em 2014. Os
40 futuros médicos foram selecionados com base em suas notas no Enem. A
instituição reserva 50% das vagas para estudantes egressos de escolas
públicas. Eles terão aulas em um espaço provisório, uma antiga escolinha
para os funcionários da Companhia Hidro Elétrica do São Francisco.
Segundo Leonardo Sampaio, pró-reitor da Univasf, a faculdade respeitará
as atuais diretrizes curriculares. “Será um curso para a preparação de
profissionais para atuar no SUS, como foco na medicina da família e das
comunidades.” Pelas novas regras, os estudantes podem cursar apenas 25%
da carga horária total do internato fora de seu estado de origem. O
objetivo é fixar os futuros médicos nas regiões de formação. Sampaio
afirma que os equipamentos da rede pública em Paulo Afonso são escassos.
“Talvez alguns sejam remanejados durante o estágio para unidades de
assistência social ou centros de ressocialização de adolescentes.”
A Faculdade de Medicina da USP, considerada uma das melhores do País,
também atravessa importantes mudanças curriculares. Mas a abordagem
naturalmente é distinta daquela dos cursos abertos no interior. José
Auler, vice-diretor da instituição, afirma que a missão da faculdade é
formar lideranças. “Temos oito institutos especializados de residência,
62 laboratórios e dezenas de grupos de pesquisa. Não podemos focar
apenas na formação de médicos para a atenção primária e negar a nossa
origem.”
A principal preocupação da instituição é em relação ao currículo,
considerado ultrapassado. Atualmente, os alunos passam 11 mil horas em
sala de aula, número bastante superior às 7 mil horas sugeridas pelo
MEC. O objetivo da reformulação curricular é diminuir as aulas
expositivas e aumentar as atividades prático-hospitalares. Disciplinas
eletivas serão mais frequentes, o que permitirá ao estudante sondar a
área de especialização de seu interesse durante a graduação. Conveniada a
instituições estrangeiras como as universidades de Montreal e
Barcelona, a faculdade quer incentivar o intercâmbio internacional ao
abrir mais janelas curriculares para os estudantes cursarem disciplinas
no exterior. Há ainda o objetivo de oferecer cursos a estrangeiros, mas o
regimento atual não permite aulas em inglês na graduação. Quanto ao
estágio obrigatório na rede pública, a USP não terá problemas. Os
estudantes realizam seus internatos no Hospital das Clínicas, conveniado
ao SUS. Auler afirma ainda que haverá uma avaliação semestral
coordenada pela própria faculdade.
Embora o Mais Médicos faça uma campanha pelo reforço da atenção básica
nos currículos, os estudantes da USP, diz Auler, têm pouco interesse
pela área. “O problema é a empregabilidade”, diz. “Onde o estudante
formado em atenção básica vai trabalhar? Não há plano de carreira e
organização na rede pública.” Sampaio concorda. “Se não forem criadas
condições para os recém-formados se fixarem no SUS, a proposta da
Univasf cai por terra. O governo precisa fazer a parte dele.” Como 97%
dos estudantes de medicina encontram um emprego no setor privado ao sair
da universidade, a reformulação da carreira pública não pode ser
negligenciada.
Publicado na edição 88, de julho de 2014
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