Protestos e mídia
A cobertura acerca da prisão dos 23 manifestantes no
Rio de Janeiro mostra, mais uma vez, a postura criminalizadora da mídia
conservadora quando o assunto é luta social.
por Coletivo Intervozes
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"Sininho" na saída de um depoimento em fevereiro último, no Rio de Janeiro
* Por Mônica Mourão
A negação do pedido de habeas corpus para 23 manifestantes que tiveram sua prisão preventiva decretada a partir de investigação do Ministério Público traz novamente à tona a atuação da mídia na criminalização das lutas sociais.
Apesar das manifestações contrárias às prisões por parte de mandatos parlamentares e instituições como sindicatos, federações profissionais, além de organizações como a Anistia Internacional, Tortura Nunca Mais e a Ordem dos Advogados do Brasil, que chamam atenção principalmente para a falta de respaldo legal e as evidências de perseguição política nas ações, o enquadramento das matérias produzidas pela mídia conservadora prioriza a versão do Judiciário.
O tom da cobertura dos jornais da TV Globo e do diário impresso O Globo reforça a visão de que, quando se tratam de manifestantes, todos são culpados até que se prove o contrário. Obviamente, isso é feito de forma a pontuar “o outro lado”, jargão usado para manter, na prática, um ideal de objetividade e neutralidade que serve bem ao discurso de autoridade jornalístico, mas pouco a uma cobertura efetivamente equilibrada. “O outro lado” está, nesse caso, sempre se defendendo de acusações já colocadas anteriormente como verdadeiras. “O outro lado” está acuado, está se defendendo no tribunal midiático e no de justiça.
A matéria do Bom Dia Brasil desta terça-feira (22/7), que repetia trechos também veiculados na noite anterior no Jornal Nacional e domingo no Fantástico, foi aberta com a apresentadora afirmando que, das pessoas acusadas de praticar atos violentos nas manifestações de rua no último ano, cinco já estão presas. As demais são consideradas, pelo Judiciário e pela mídia, “foragidas”.
O “já” de alívio pela garantia da ordem pública conduzia o restante da matéria. Logo depois de apresentar o trecho de um vídeo em que a advogada Eloísa Samy, que teve a prisão preventiva decretada e pediu asilo político ao Uruguai, nega qualquer envolvimento com atos violentos, a edição da matéria é cortante. Um “mas” abre a sequência de acusações feitas contra ela em inquérito policial. O jogo textual e de imagens forma um discurso lógico: a culpa recai sobre aqueles ombros, sem sombra de dúvidas.
Além da falsa neutralidade, as matérias têm mostrado uma tendência antiga no jornalismo brasileiro: a relação de subserviência com fontes que são autoridades, como a policial. Faz parte de tal relação tanto o uso acrítico de informações oriundas da polícia como a cessão, muitas vezes com exclusividade para certos meios de comunicação, de materiais sigilosos da investigação. (Paradoxalmente, os próprios acusados e seus advogados não conseguem ter acesso aos autos dos processos). Para não restar dúvidas da isenção das informações policiais, o tempo de investigação para se chegar às prisões preventivas, de sete meses, foi repetido como mais uma ferramenta de respaldo da dupla autoridade imprensa-polícia.
A veiculação midiática de gravações feitas para inquéritos policiais está banalizada e foi fartamente utilizada nas matérias de TV dos últimos três dias. Uma delas, em que a ativista Elisa Quadros, conhecida como Sininho, pede ajuda de seu padrasto para ficar longe de cidades onde pode ser perseguida, prova muito mais o seu temor por uma punição do que qualquer ação criminosa praticada por ela.
Sininho, inclusive, é um caso emblemático na cobertura criminalizante, feita desde 2013, sobre os atos de massa. A moça foi catapultada à condição de líder pela própria mídia, desde matéria no jornal O Globo, cuja capa tratava da prisão de “70 vândalos”, em outubro de 2013. A condição de liderança sempre foi negada por ela e por movimentos sociais e, até hoje, quase um ano depois, nenhuma prova contundente foi apresentada. Desde então, o jornalismo se retroalimenta de sua própria cobertura. E Sininho se vê presa – também – num emaranhado de narrativas que se sustentam umas nas outras.
E os demais casos? O casal que comemora o lançamento de um coquetel molotov e as amigas que combinam uma oficina de fabricação de “drinks” (código para o coquetel)? Mesmo aqui cabe uma reflexão básica: estão sendo presas ou procuradas pessoas que ainda não tiveram seu julgamento concluído. Não se sabe ainda se são ou não culpadas. E, se forem, não se sabe qual pena terão de cumprir. A ação, contrária às normas democráticas, de punir primeiro para averiguar depois é feita pelo Judiciário com a aclamação e o reforço de parte da grande mídia. Prática corriqueira com presos comuns em programas policialescos, com a repercussão política das atuais prisões preventivas, o modus operandi ganha mais fortes contornos de absurdo.
Outra reflexão simples que parece ter faltado ao setor de jornalismo das Organizações Globo é sobre como são feitas as coberturas quando a violência está do lado de lá. O que seus jornais tiveram a dizer quando, no ano passado, milhares de pessoas – muitas que simplesmente tentavam ir embora das manifestações – foram encurraladas pelas ruas do Centro da cidade e da Lapa, no Rio de Janeiro, com bombas de gás lacrimogêneo? O que disseram quando, no dia da final da Copa do Mundo, policiais mantiveram pessoas em cárcere a céu aberto no entorno da praça Saens Peña, na Tijuca, em meio a bombas de gás e chuvas de cassetetes? O silêncio pode ser tão revelador quanto as palavras.
Enquanto isso, longe (de uma distância outra, nem sempre geográfica) das grandes avenidas e praças da cidade, quantas vezes Cláudias e Amarildos precisam provar o que estão fazendo naquele lugar e naquela hora, são sempre aquele “outro lado” que se defende de não ser traficante, de não ser criminoso?
No jornal impresso O Globo, pouco espaço para brechas, sutilezas, não ditos. Na edição de hoje (22/7), a matéria com o título “Conexão sindical” associa sindicatos de professores, da saúde e de petroleiros (Sepe, Sindprev e Sindpetro) do Rio de Janeiro a “protestos violentos”, conforme escrito pelo jornal e mostrado em foto com jovem provocando um incêndio na rua. Boxes com a retranca “Opinião” deixam muito evidente: para o veículo, tratar as prisões como casos de repressão política é “balela”, conforme edição de 15 de julho. Dois dias depois, manifestantes em geral e uma professora (Camila Jourdan) foram comparados a grupos que “desembocaram no terrorismo” na Alemanha, na Itália e no Peru. Também no último dia 15, o jornal alertou: “O Estado apenas cumpre sua função de defender a sociedade da ação de grupos violentos”.
E quem nos defende do Estado? Quem nos defende do discurso criminalizante do maior conglomerado de mídia do país? Melhor buscar rapidamente uma defesa, pois do crime de livre pensamento, manifestação e expressão, do crime de teimar em viver numa democracia, também somos culpados.
*Mônica Mourão é jornalista e integrante do Intervozes.
A negação do pedido de habeas corpus para 23 manifestantes que tiveram sua prisão preventiva decretada a partir de investigação do Ministério Público traz novamente à tona a atuação da mídia na criminalização das lutas sociais.
Apesar das manifestações contrárias às prisões por parte de mandatos parlamentares e instituições como sindicatos, federações profissionais, além de organizações como a Anistia Internacional, Tortura Nunca Mais e a Ordem dos Advogados do Brasil, que chamam atenção principalmente para a falta de respaldo legal e as evidências de perseguição política nas ações, o enquadramento das matérias produzidas pela mídia conservadora prioriza a versão do Judiciário.
O tom da cobertura dos jornais da TV Globo e do diário impresso O Globo reforça a visão de que, quando se tratam de manifestantes, todos são culpados até que se prove o contrário. Obviamente, isso é feito de forma a pontuar “o outro lado”, jargão usado para manter, na prática, um ideal de objetividade e neutralidade que serve bem ao discurso de autoridade jornalístico, mas pouco a uma cobertura efetivamente equilibrada. “O outro lado” está, nesse caso, sempre se defendendo de acusações já colocadas anteriormente como verdadeiras. “O outro lado” está acuado, está se defendendo no tribunal midiático e no de justiça.
A matéria do Bom Dia Brasil desta terça-feira (22/7), que repetia trechos também veiculados na noite anterior no Jornal Nacional e domingo no Fantástico, foi aberta com a apresentadora afirmando que, das pessoas acusadas de praticar atos violentos nas manifestações de rua no último ano, cinco já estão presas. As demais são consideradas, pelo Judiciário e pela mídia, “foragidas”.
O “já” de alívio pela garantia da ordem pública conduzia o restante da matéria. Logo depois de apresentar o trecho de um vídeo em que a advogada Eloísa Samy, que teve a prisão preventiva decretada e pediu asilo político ao Uruguai, nega qualquer envolvimento com atos violentos, a edição da matéria é cortante. Um “mas” abre a sequência de acusações feitas contra ela em inquérito policial. O jogo textual e de imagens forma um discurso lógico: a culpa recai sobre aqueles ombros, sem sombra de dúvidas.
Além da falsa neutralidade, as matérias têm mostrado uma tendência antiga no jornalismo brasileiro: a relação de subserviência com fontes que são autoridades, como a policial. Faz parte de tal relação tanto o uso acrítico de informações oriundas da polícia como a cessão, muitas vezes com exclusividade para certos meios de comunicação, de materiais sigilosos da investigação. (Paradoxalmente, os próprios acusados e seus advogados não conseguem ter acesso aos autos dos processos). Para não restar dúvidas da isenção das informações policiais, o tempo de investigação para se chegar às prisões preventivas, de sete meses, foi repetido como mais uma ferramenta de respaldo da dupla autoridade imprensa-polícia.
A veiculação midiática de gravações feitas para inquéritos policiais está banalizada e foi fartamente utilizada nas matérias de TV dos últimos três dias. Uma delas, em que a ativista Elisa Quadros, conhecida como Sininho, pede ajuda de seu padrasto para ficar longe de cidades onde pode ser perseguida, prova muito mais o seu temor por uma punição do que qualquer ação criminosa praticada por ela.
Sininho, inclusive, é um caso emblemático na cobertura criminalizante, feita desde 2013, sobre os atos de massa. A moça foi catapultada à condição de líder pela própria mídia, desde matéria no jornal O Globo, cuja capa tratava da prisão de “70 vândalos”, em outubro de 2013. A condição de liderança sempre foi negada por ela e por movimentos sociais e, até hoje, quase um ano depois, nenhuma prova contundente foi apresentada. Desde então, o jornalismo se retroalimenta de sua própria cobertura. E Sininho se vê presa – também – num emaranhado de narrativas que se sustentam umas nas outras.
E os demais casos? O casal que comemora o lançamento de um coquetel molotov e as amigas que combinam uma oficina de fabricação de “drinks” (código para o coquetel)? Mesmo aqui cabe uma reflexão básica: estão sendo presas ou procuradas pessoas que ainda não tiveram seu julgamento concluído. Não se sabe ainda se são ou não culpadas. E, se forem, não se sabe qual pena terão de cumprir. A ação, contrária às normas democráticas, de punir primeiro para averiguar depois é feita pelo Judiciário com a aclamação e o reforço de parte da grande mídia. Prática corriqueira com presos comuns em programas policialescos, com a repercussão política das atuais prisões preventivas, o modus operandi ganha mais fortes contornos de absurdo.
Outra reflexão simples que parece ter faltado ao setor de jornalismo das Organizações Globo é sobre como são feitas as coberturas quando a violência está do lado de lá. O que seus jornais tiveram a dizer quando, no ano passado, milhares de pessoas – muitas que simplesmente tentavam ir embora das manifestações – foram encurraladas pelas ruas do Centro da cidade e da Lapa, no Rio de Janeiro, com bombas de gás lacrimogêneo? O que disseram quando, no dia da final da Copa do Mundo, policiais mantiveram pessoas em cárcere a céu aberto no entorno da praça Saens Peña, na Tijuca, em meio a bombas de gás e chuvas de cassetetes? O silêncio pode ser tão revelador quanto as palavras.
Enquanto isso, longe (de uma distância outra, nem sempre geográfica) das grandes avenidas e praças da cidade, quantas vezes Cláudias e Amarildos precisam provar o que estão fazendo naquele lugar e naquela hora, são sempre aquele “outro lado” que se defende de não ser traficante, de não ser criminoso?
No jornal impresso O Globo, pouco espaço para brechas, sutilezas, não ditos. Na edição de hoje (22/7), a matéria com o título “Conexão sindical” associa sindicatos de professores, da saúde e de petroleiros (Sepe, Sindprev e Sindpetro) do Rio de Janeiro a “protestos violentos”, conforme escrito pelo jornal e mostrado em foto com jovem provocando um incêndio na rua. Boxes com a retranca “Opinião” deixam muito evidente: para o veículo, tratar as prisões como casos de repressão política é “balela”, conforme edição de 15 de julho. Dois dias depois, manifestantes em geral e uma professora (Camila Jourdan) foram comparados a grupos que “desembocaram no terrorismo” na Alemanha, na Itália e no Peru. Também no último dia 15, o jornal alertou: “O Estado apenas cumpre sua função de defender a sociedade da ação de grupos violentos”.
E quem nos defende do Estado? Quem nos defende do discurso criminalizante do maior conglomerado de mídia do país? Melhor buscar rapidamente uma defesa, pois do crime de livre pensamento, manifestação e expressão, do crime de teimar em viver numa democracia, também somos culpados.
*Mônica Mourão é jornalista e integrante do Intervozes.
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