11.28.2011

O esfoliate que apaga a memória indesejável (software de esquecimento)

Como um aplicativo que altera sua história na rede social ensina a viver – e trair velhos sonhos

O programa exfoliate limpa seu passado no Facebook, permitindo que você redesenhe sua história na rede social. Dessa forma, podem-se apagar amigos ingratos, discussões agressivas, amores que queremos bem longe – e aqueles colegas que promovem festas de velhas turmas, que só servem para fazer com que a gente se dê conta de quanto envelheceu. O exfoliate elimina as contradições, os conflitos, os dilemas morais – o mal-estar, enfim. Ele instrui muito sobre a vida e as relações pessoais, pois extermina os cookies da alma. É um software de esquecimento, que reproduz em bits o que nossa mente faz no mundo real.
Nosso pobre cérebro foi fabricado com um material frágil e perecível - fibras, sangue e cartilagens -, é demasiado lento e processa as informações sem que consigamos controlá-las conscientemente. Eu adoraria possuir um exfoliate embutido no meio da minha massa cinzenta. Quem sabe em breve isso aconteça, quando inserirem chips no corpo dos cidadãos. Aí eu me esquecerei de que não sou feito de matéria inorgânica, trocarei as ansiedades pela alta produtividade. O controle nosso sobre nós mesmos e dos outros sobre nós será completo, e assim poderemos viver na pax aeterna dos aplicativos.
Afinal, tornar-se um algoritmo perfeito tem sido o anseio de todos – ou, pelo menos, a vontade de conviver intimamente com as máquinas inteligentes, penetrar nelas ou ser penetrado por elas como se fossem, como se fôssemos, processadores sexuais de alto rendimento. Os resenhistas de tecnologia não qualificam os celulares de “sexy”? Alguns geeks japoneses se casam com seus celulares. Eu tentei me casar com um modelo, mas logo troquei-o por outro, mais jovem e repleto de aplicativos surpreendentes. Mesmo assim, ainda não me esqueci do celular que abandonei. O remorso me corrói por dentro. Talvez eu seja um pouco humano demais.
Se eu já tivesse um exfoliate para interagir com meus neurônios, não sentiria culpa por isso nem por nada. Meu problemas seriam resolvidos. Continuaria a viver feliz, flutuante e sem amarras como querem os psicanalistas. Não vamos esquecer que os médicos têm recorrido à química para aplacar as paixões. Eles costumam receitar com sucesso antidepressivos e ansiolíticos, que são precursores da esfoliação digital da memória. A química tem ajudado a engenharia de seres perfeitos.
E pensar que li fascinado na adolescência o romance Admirável mundo novo, de Aldous Huxley, publicado em 1932, como se fosse ficção-científica. Ele parecia delirante. Pois não é que o tempo mostrou que aquela sociedade tecnocrática, controlada e sexualmente feliz descrita pelo escritor inglês era a imagem exata do futuro que eu nunca imaginei viver? Fui condicionado a vislumbrar o futuro com pessimismo, através das lentes de romances posteriores que me pareciam mais próximos da realidade social e política, como 1984, de George Orwell (1949), e Fahrenheit 451 (1953), de Ray Bradbury. Cheguei a fantasiar que no século XXI eu participaria da resistência à extinção dos livros e da consciência crítica. Mal podia supor que isso não aconteceria. O Grande Irmão (Big Brother) não está observando você como descreve 1984, mas você vê o Big Brother, título de um reality show. A novilíngua e a reescritura da História de Orwell não se revelaram criações de um estado totalitário. Ao contrário, surgem novilínguas e mil reescrituras historiográfico no próprio seio dos povos – ou, melhor dizendo, no próprio seio das redes sociais. Os livros não foram queimados como em Fahrenheit 451: estão sendo eliminados fisicamente para que suas palavras migrem para os leitores digitais e criem um novo ciclo de lucro (como eu poderia imaginar isso?). George e Ray, sinto informar que Huxley tinha razão. Jamais pensei que agora eu viveria no Admirável Mundo Novo, feliz em me enquadrar nos aplicativos (prefiro a palavra “aplicações”, mas faço a concessão ao peculiar português falado no Brasil) da moda e me tornar comprador compulsivo de ofertas da internet e engenhocas de alta tecnologia. Adoro me esquecer de mim mesmo distraído com elas. Quando tenho alguma ideia, consigo expresá-la em menos de 140 caracteres do Twitter.
Se eu voltasse neste instante com 52 anos e conversasse com quem eu era aos 18, eu adolescente chamaria eu maduro de imbecil. “Como você aderiu à amnésia da sociedade de consumo? Por que você não está escrevendo aqueles romances e contos com que sonhei? É verdade que você não está lutando contra o fim dos valores, da arte, da cultura, da sensibilidade? Você está psicologicamente domesticado e biologicamente controlado! Só escreve bobagens de chute curto. Eu imaginava que eu seria John, o Selvagem, que rompe com a civilização, e não Bernard Marx, o execrável psicólogo hipnotizador da casta alfa. Você se rendeu à narcose tecnológica. Você me decepcionou. Imbecil!”
Sim, é verdade. O menino que lia Eco, Foucault e Baudrillard tem razão, mas não vou lhe responder nada. Vou apenas sorrir com superioridade. Anto encantado com a ausência de efeitos colaterais da “soma”, a droga que a casta alfa do romance de Huxley criou como a maravilha da química capaz de apaziguar todas as ansiedades e medos – e, ao mesmo tempo, manter o desejo sexual superativo. A “soma” de hoje está nos aplicativos da moda criados pela casta alfa do Vale do Silício, como o fantástico exfoliate. Eu gostaria de tomar uma dose maior dessa nova “soma” para manter o alto-astral e esquecer dos pensamentos do adolescente pentelho dos anos 70 que me assombra às vezes. Estou precisando me esfoliar mais.
(Luís Antônio Giron)

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