3.20.2018

Justiça autoriza importação de remédios sem certificado da Anvisa


Para reduzir custo, governo escolheu fabricante sem registro; Aldurazyme, Fabrazyme e Miozyme são usados para tratar doenças como mucopolissacaridose – Shutterstock/Africa Studio
BRASÍLIA – Medicamentos de alto custo comprados pelo governo para pacientes com doenças raras chegarão ao país sem o aval técnico da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa). O presidente da agência, Jarbas Barbosa, disse ao GLOBO que o órgão foi obrigado, por uma decisão judicial da qual vai recorrer, a emitir uma autorização excepcional para a aquisição de três remédios, mas que não poderá atestar a segurança e eficácia das drogas.
O problema em questão é que a empresa Global Gestão em Saúde venceu uma concorrência de R$ 19,9 milhões e recebeu adiantado para fornecer os medicamentos, mas não tem a Declaração de Detentor de Registro (DDR). O documento é uma espécie de credenciamento do fabricante exigido quando a importadora não é a detentora do registro do produto no Brasil. Serve como um atestado de procedência e condições adequadas das substâncias.
— Vamos dar a autorização, em cumprimento à decisão judicial, dizendo claramente que não temos condições de avaliar a qualidade e segurança do produto— afirma Jarbas, ressaltando: — A DDR não é uma burocracia, serve para garantir que a empresa foi vistoriada e tem condições de armazenagem e distribuição dos medicamentos.
O ministro da Saúde, Ricardo Barros, que chegou a incentivar pacientes a processar a Anvisa por conta da exigência da DDR nessa compra, conforme mostrou a coluna do GLOBO “Poder em Jogo”, não vê problemas no alerta da agência reguladora. Segundo ele, é papel do “fornecedor” atestar a qualidade dos medicamentos trazidos de fora.
— Se o produto chegar aqui e não estiver em condições adequadas, nós notificaremos (o fornecedor) e o devolveremos — diz Barros.
Pacientes temem falta de qualidade
Os pacientes de doenças raras, que sofrem com o atraso na compra dos medicamentos, temem receber produtos fora dos padrões adequados. Maria Cecília Oliveira, presidente da Associação dos Familiares, Amigos e Portadores de Doenças Graves (Afag), critica a dispensa do documento, determinada pela Justiça em ação ajuizada pela Global.
— Vamos correr o risco de consumir um medicamento falso, sem saber a cadeia de distribuição, como chegou? São medicamentos biológicos, com uma série de questões como temperatura, acondicionamento — afirma Maria Cecília.
A Global não tem sequer a Autorização de Funcionamento de Empresas (AFE) da Anvisa, uma espécie de registro para atuar na área, segundo o presidente da agência. O documento seria necessário para qualquer atividade da marca, pelas normas sanitárias do país.
— Legalmente, não dá para dizer que ela é uma importadora e distribuidora de medicamentos. Numa comparação grosseira, é como se um bar quisesse vender remédios — dispara Jarbas.
Outra falha apontada por associações de pacientes que estão debruçadas no processo, temendo de um lado a demora no fornecimento e de outro a qualidade dos medicamentos, é que o próprio pregão da compra pública exigia o DDR. Mesmo assim, o Ministério da Saúde não desabilitou a empresa da concorrência.
Questionado, Barros limitou-se a dizer que o modelo de tomada de preços usado foi o de compras regulares, o que não era adequado para a aquisição dos medicamentos. Isso porque tais compras só ocorrem por determinação judicial e exigiriam, dessa forma, um rito especial, segundo o ministro. Ele disse que a área jurídica da pasta estuda alterações necessárias no processo e que trabalha para viabilizar os medicamentos:
— É um assunto polêmico, a Justiça determinou e é assim que faremos. Estamos trabalhando para concluir as compras e garantir os medicamentos aos pacientes.
A despeito da posição técnica da Anvisa, o ministro Barros vem defendendo que há um monopólio de mercado disputado pelas distribuidoras que querem fornecer os produtos importados. Em nota, a pasta afirmou que duas liminares da Justiça já apontam que as “medidas adotadas pela Anvisa prejudicam a concorrência e determinam que a agência libere a importação dos produtos”.
Segundo a pasta, a Global apresentou menor preço do que a distribuidora Sanofi Genzyme, detentora do registro no país, o que resultará numa economia de R$ 400 mil em um ano. O ministério aponta que fez novo processo para garantir a assistência e que inicia a entrega de medicamentos a 152 pacientes com doenças raras na próxima semana.
O impasse está travando a compra dos remédios Aldurazyme, Fabrazyme e Miozyme, usados por pessoas com Doença de Fabry, mucopolissacaridose, entre outras doenças raras. Em geral, são pacientes sem qualquer outra opção de tratamento que, sem os medicamentos de alto custo, têm piora acelerada na saúde.
— Muitos pacientes estão internados e desesperados. É desumano o que está sendo feito em nome de uma suposta economia ao custo de vidas humanas. E não sabemos o porquê de o ministério insistir em não cumprir as leis sanitárias do país — reclama Maria Cecília, presidente da Afag.
Em nota, a Global afirmou que apresentou “toda documentação” necessária e que a Anvisa não libera a compra “por motivos desconhecidos, desrespeitando decisão judicial”. A empresa disse ainda que a DDR é “um instrumento de proteção comercial que não poderia ser solicitado” porque a empresa está representando o importador, “que no caso é o Ministério da Saúde”.
A empresa ressaltou que duas decisões judiciais, da 21ª Vara Cível do Tribunal de Justiça do Distrito Federal e do Tribunal Regional Federal da Primeira Região (TRF-1), já confirmaram tal entendimento.
“A Anvisa jamais comunicou à Global Saúde a ausência de outros documentos que não DDR que, como explicado, não é exigida nesta importação, posição reforçada por duas decisões judiciais”, afirma a Global.
O ministério afirmou que a Global recebeu antecipadamente, com base em lei de 1993, que prevê o pagamento a vencedores de concorrência para atender demandas judiciais com medicamentos importados, o que caracteriza situação de emergência.
Vice-presidente do Instituto Vidas Raras, Regina Próspero diz que a entrada dos remédios sem o aval da Anvisa “abre um perigoso precedente”:
— Essa situação nos dá muita insegurança. Pavor, até. Porque a Anvisa existe justamente para impedir que produtos que podem prejudicar a saúde ou que são placebo sejam tomados. Não temos nenhuma informação precisa sobre o remédio em questão, que, aliás, já está há muito tempo parado no Panamá, esperando para entrar no Brasil. Lá, não sabemos como ele vem sendo armazenado. Se fosse meu filho, eu não o deixaria tomar.
Fonte: O Globo

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