Em 2012, o Brasil terá 519 mil casos novos da doença. Como os adolescentes podem virar o jogo
Vou guardar para sempre a última conversa que tive com o ex-presidente José Alencar. Foi no quarto 1106 do Hospital Sírio-Libanês, em São Paulo. Ele morreria dois meses depois. Em cinco anos de luta contra um sarcoma, Alencar recebeu inúmeras mensagens de pessoas que diziam ter a cura do câncer. As receitas mais estapafúrdias chegaram a ele.
Naquele dia, Alencar usava um iPad para ler os emails. A mágica sugerida era uma poção de graviola. Ele correu os olhos pela mensagem, mas não se impressionou. Em tantos anos de batalha pública contra a doença, ele se acostumou a ler de tudo. Quem envia essas receitas costuma ter boa intenção, mas acho que é um desrespeito com o doente.
Agora é a vez do ator Reynaldo Gianecchini. Recentemente indicaram a ele uma panacéia à base de aspargos. O remetente acredita que adquirir aspargos in natura, cozinhá-los, fazer um purê e comer essa papa em jejum cura todos os tipos de câncer e fortifica o sistema imune. Bobagem.
Se a educação dos brasileiros é ruim, o ensino de ciência é muito pior. Falta cultura científica à nossa população. O resultado é a perpetuação desses mitos. O que fazer? Aceitar que a crença nessas bobagens é um traço cultural do povo brasileiro ou tentar virar o jogo?
Só a educação salva – e ela deve começar cedo. Estou certa disso. Essa também é a convicção do oncologista Paulo Hoff, famoso por ter cuidado ou acompanhado de perto o caso de várias celebridades que tiveram câncer recentemente (José Alencar, Dilma Rousseff, Lula, Reynaldo Gianecchini etc).
Além de atender os vips que se tratam no Sírio-Libanês, Paulo dirige o Instituto do Câncer do Estado de São Paulo (Icesp). Na quinta-feira (24), ele voltou à sala de aula. Deu uma palestra sobre prevenção a alunos do ensino médio da Escola Estadual Romeu de Moraes, na Lapa.
Outros 79 médicos se deslocaram até outras 79 escolas estaduais. Num único dia, cerca de 24 mil estudantes receberam as informações mais confiáveis sobre prevenção e tiveram a chance de desconstruir muitos mitos – um por um. Daqui para frente, o objetivo é treinar os professores de ciência para que o tema seja incluído na grade das escolas.
Fiquei encantada com o interesse demonstrado pelos alunos da Escola Romeu de Moraes. Assistiram à aula com a maior atenção. Sugaram cada minuto da atenção de Paulo e quase não o deixaram ir embora. Fizeram dezenas de perguntas.
Queriam saber se a menstruação precoce e a menopausa tardia aumentam o risco de câncer de mama. Se existe limite seguro para o consumo de cigarro. Se um bebê pode nascer com câncer. Se telefone celular causa câncer e como a doença se espalha. Qual é a diferença entre tumor benigno e maligno etc. Se você também tem dúvidas, acesse a cartilha e os vídeos produzidos pelo Icesp em parceria com a Secretaria Estadual de Educação.
Jovens bem informados são agentes de transformação. Podem influenciar familiares, amigos, espalhar o conhecimento pelas redes sociais. Mas há uma outra razão para investir nesse público.
A prevenção feita hoje vai render frutos daqui a duas décadas. Se esses meninos não quiserem ter câncer aos 50 anos, precisam se cuidar desde já. Ficar longe do cigarro (30% das mortes pela doença são causadas pelo fumo), aprender a gostar de alimentação saudável, usar protetor solar, fazer atividade física e sexo seguro.
Um tumor que aparece hoje provavelmente começou a ser gerado há 20 anos, quando o DNA das células começou a ser continuamente agredido por agentes carcinogênicos e o corpo não foi capaz de eliminar as células mutadas que dão origem ao câncer.
Quando o câncer é descoberto e se desenvolve rapidamente, esse é só o final do processo. É só a ponta do iceberg. O dano começou lá atrás, na juventude. Num tempo em que nos sentimos livres, intocáveis e imortais.
“Um sujeito de 50 anos pode ter um câncer de pulmão por causa de um carcinógeno que inalou quando tinha 20 anos e fumava”, diz Paulo. É claro que pessoas de qualquer idade devem se cuidar, mas para ganhar o jogo, de verdade, é preciso ter bons hábitos desde sempre. Começar a cuidar da saúde aos 49 anos porque o risco de câncer é maior a partir dos 50 anos não é a estratégia mais inteligente.
Em 2012, o Brasil terá 519 mil casos novos da doença, segundo uma estimativa divulgada nesta semana pelo Instituto Nacional de Câncer José Alencar Gomes da Silva (Inca). São 59 novos casos por hora ou 1.416 por dia. A estimativa de 2010 era de 489 mil casos. Os dados completos (por tipo de câncer e variações geográficas) podem ser lidos aqui.
“A prevenção feita hoje terá impacto no futuro. Só vamos conseguir modificar o curso da doença se investirmos nas crianças e nos adolescentes”, diz Cláudio Noronha, coordenador da área de ações estratégicas do Inca.
A impressão de que o câncer se tornou uma doença mais comum não é impressão. É a realidade. “Quando vocês tiverem 50 anos, a mortalidade por câncer será muito exacerbada no Brasil”, disse Paulo aos garotos. “Então, decidam agora o que vocês vão ser no futuro.”
A população deseja tratamentos modernos e acessíveis a todos. É uma aspiração justa, mas do ponto de vista epidemiológico significa apenas apagar incêndio. A forma mais eficaz e barata de interromper a curva de crescimento do câncer no Brasil é investir em prevenção.
A moçada da Escola Estadual Romeu de Moraes me encheu de esperança. Se cada adolescente, cada médico, cada jornalista, cada cidadão que tiver acesso à informação de qualidade fizer um esforço para passá-la adiante, o Brasil pode ganhar a luta contra a ignorância.
(Cristiane Segatto Revista Época)
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