Olhe bem para estas jovens mulheres. Elas são o retrato de uma vergonha brasileira: o alto índice de mortalidade materna
Quando a mãe não voltou para casa, Alice tinha muitas perguntas. “Cadê minha mãe? Onde está o bebê? Por que minha mãe não volta?” Depois de ouvir as respostas, parou de falar. Tentava, mas não conseguia. Quando conseguia, gaguejava. Com Alice foi assim: primeiro perdeu a mãe, depois as palavras. E só tinha 5 anos. Outros cinco se passaram. E Alice perdeu mais. Um ano de escola, porque não falava direito. O pai construiu uma nova família e quase não a vê. A avó ficou doente e não pode mais trabalhar como doméstica. No ano passado, mais uma filha morreu, ela passou a criar outro neto. Quem sustenta a todos é a bisavó, de 77 anos. Alice hoje tem 10. E uma vida que já não cabe em palavras.
Alice da Silva Pimentel, a menina de olhos tristes de Belford Roxo, na Baixada Fluminense, está no centro de um julgamento internacional. No banco dos réus, o Estado brasileiro. A morte de sua mãe, Alyne, foi levada ao Comitê da Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Contra a Mulher (Cedaw), das Nações Unidas. O Brasil é o primeiro país no mundo julgado por um caso de morte materna. Tem até 16 de julho para explicar por que deixou a mãe de Alice morrer, aos 28 anos de idade e aos seis meses de gestação. É um julgamento moral e político, o que na diplomacia se chama de “the power of embarrassment” – e que pode ser traduzido por “o poder do constrangimento”.
Evitar que mulheres morram ao dar à luz é hoje o drama do Brasil. O índice de mortalidade materna é um dos melhores parâmetros para avaliar a qualidade da saúde de um país. Quando muitas mulheres perdem a vida durante a gestação, no parto ou nos 42 dias seguintes a ele – o critério técnico que define morte materna –, é sinal de que todo o sistema de saúde funciona mal. Mulheres jovens em pleno exercício da função natural de ter filhos não deveriam morrer. Principalmente com a tecnologia disponível em 2008: exames precisos, cirurgias modernas, antibióticos potentes. Qualquer morte é uma tragédia. Nesse caso, o escândalo é maior porque mais de 90% dos óbitos poderiam ter sido evitados.
Eliane Brum e Cristiane Segatto
Revista Época
Foto: Vânia tinha 35 anos
Por Clarinha Glock (Original na Revista Época- 30/05/2008)
Veja matéria na íntegra: Elas morreram de parto
Vânia era feminista e defendia a humanização do parto. Seu médico foi condenado na Justiça por duplo homicídio, mas se considera um mártir
Vânia Araújo Machado costumava dizer que, para sua vida ficar completa, só faltava mesmo um filho. Aos 35 anos, depois de um tratamento de fertilização, comemorou a primeira gravidez com a mesma energia depositada em sua carreira profissional. Formada em Educação Física, dançarina e professora de dança, amante do teatro, feminista entusiasta, foi pedagoga e coordenou a implantação da educação infantil no município. Sua luta em defesa dos direitos da mulher a levou à coordenação geral da Coordenadoria Estadual da Mulher, criada em 1999 pelo governo do Rio Grande do Sul.
Foi no final daquele ano, já exercendo o cargo, que engravidou. Havia conhecido o companheiro, Marcelo D’Elia Branco, numa passeata pelas ruas de Porto Alegre, e nunca mais se desgrudaram. A opção pelo parto de cócoras parecia mais do que natural para os dois. Durante seis anos, foi paciente do obstetra e ginecologista Ricardo Herbert Jones, considerado uma autoridade em parto humanizado, e fez com ele todo o pré-natal. Vânia era uma ativista tão convicta que em seu chá de fraldas convidou o médico para falar sobre o tema para suas amigas.
No dia 12 de setembro de 2000, quando ela deu entrada no hospital, em Porto Alegre, já havia escolhido o nome do filho, Cauê. “Às 10h ela estava com dilatação completa”, acredita Branco, que ficou com a mulher todo o tempo, acompanhado por uma amiga que levou sua câmera para filmar o nascimento. Mas o bebê não nascia, e o pai começou a ficar apreensivo. O obstetra o tranqüilizou, disse que estava tudo bem. Vez ou outra, a câmera o filmou escutando o coração da criança. Relatos dos médicos que ouviram a gravação depois indicam que talvez o bebê já estivesse com bradicardia (diminuição da freqüência cardíaca).
Às 14h10min o médico decidiu fazer uma cesariana. “Não havia anestesista preparado para uma emergência, tiveram de trazer de fora do hospital”, conta o marido. Quando o profissional finalmente chegou, e a cesariana foi feita. Cauê nasceu sem batimentos cardíacos. Foi reanimado, ficou vários dias na UTI do hospital em estado vegetativo, e morreu.
Vânia resistiu 24 dias depois da cesariana. Teve de passar por nove cirurgias, até sua morte, em 5 de outubro de 2000. Entre elas, a retirada do baço e do útero. Morreu 14 dias antes do filho.
O choque pela perda da mulher e do filho levaram Branco a não questionar nada. Até que as amigas de Vânia e os familiares começaram a perguntar o que havia acontecido de errado. Foram levantando fatos e laudos. Os peritos concluíram que o trabalho do parto havia se prolongado mais do que o recomendável, causando o sangramento e as complicações. O médico, por sua vez, alega que Vânia sofreu “uma embolia aguda por líquido amniótico durante o trabalho de parto, doença impossível de prever ou prevenir”. E que, curada da doença, “ela morreu mesmo foi de catapora, infectada dentro do hospital”.
Com a assessoria jurídica especializada da ONG Themis, a família de Vânia conseguiu comprovar suas suspeitas na Justiça. Jones foi condenado na área penal por dois homicídios culposos (sem intenção) - de Vânia e Cauê. Cumpriu a pena de dois anos e quatro meses de serviço comunitário e pagou a multa de 20 salários mínimos para a Associação Beneficente Fraterno Auxílio Cristão da Sagrada Família.
O processo ético-profissional realizado junto ao Conselho Regional de Medicina do Rio Grande do Sul (CREMERS) em 2003 determinou, por unanimidade, a pena de suspensão do exercício profissional por 30 dias “por não ter feito qualquer registro, em prontuário, da evolução da paciente durante mais de seis horas de acompanhamento de trabalho de parto”; por negligência, “ao não atentar e valorizar as condições fetais, ao retardar a indicação de cesariana e ao não usar dos meios disponíveis no hospital para melhor monitorizar a viabilidade fetal”. Diz ainda o acórdão do CREMERS que Jones “foi imprudente ao não providenciar anestesista mais cedo, ao menos após as grandes evidências de desproporção, e imperito ao não diagnosticar a distocia (parto difícil) subseqüente e ao realizar uma histerectomia puerperal (retirada do útero depois do parto) para controle de sangramento em condições graves, incompleta e inadequada”. O acórdão do CREMERS pode ser acessado na íntegra no blog criado pelo marido de Vânia.
Jones recorreu da decisão. O recurso foi julgado pelo Conselho Federal de Medicina, que decidiu pela pena de advertência privada: isso significa que o médico não chegou a ser suspenso, nem a decisão foi noticiada pela imprensa. Para ele, foi como uma absolvição. Passados oito anos, sequer cogita que pode ter ocorrido alguma falha em sua conduta. Ao contrário, diz que o período de trabalho de parto de Vânia foi até rápido em comparação com o de outras mulheres, que chamou o anestesista para fazer a cesariana quando detectou uma anormalidade e que ficou perto de sua paciente todo o tempo. Arrepende-se apenas de não ter feito um prontuário melhor, que o protegesse “das agressões dos colegas”.
Aos 48 anos, 23 de profissão, Jones é filiado à Rede pela Humanização do Parto e Nascimento e à International Motherbaby Childbirth Organization, e orgulha-se de viajar pelo mundo dando palestras em defesa de um modelo de parto que, segundo ele, “dignifica o nascimento, devolve o protagonismo e a autonomia à mulher e diminui a mortalidade materna”.
Considera-se um mártir. “Imagina um indivíduo que entra num hospital privado de Porto Alegre onde ocorrem 90% de cesarianas e atende partos normais - esse indivíduo incomoda por sua prática e por seu discurso: por pertencer a uma organização nacional e por ser um porta-voz destas idéias”, diz. “Todos os profissionais que ousaram se postar corajosamente contra o poder constituído sofreram coisas parecidas com o que sofri, isso não é novidade. O teu “patrício” Freud (diz para a repórter, que é judia) sofreu a mesma coisa, foi estraçalhado pelo conselho dos médicos de Viena. O Darwin, pior ainda. Galileu Galilei quase foi pra fogueira”.
A história de Vânia virou um símbolo da luta contra a mortalidade materna no Rio Grande do Sul. Seu nome foi dado a um centro de referência que atende mulheres que sofreram todo tipo de violência.
Veja mais sobre o caso:
- Informações de 2006
- Vânia e Cauê: Justiça Cível condena Médico e Hospital
Alice da Silva Pimentel, a menina de olhos tristes de Belford Roxo, na Baixada Fluminense, está no centro de um julgamento internacional. No banco dos réus, o Estado brasileiro. A morte de sua mãe, Alyne, foi levada ao Comitê da Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Contra a Mulher (Cedaw), das Nações Unidas. O Brasil é o primeiro país no mundo julgado por um caso de morte materna. Tem até 16 de julho para explicar por que deixou a mãe de Alice morrer, aos 28 anos de idade e aos seis meses de gestação. É um julgamento moral e político, o que na diplomacia se chama de “the power of embarrassment” – e que pode ser traduzido por “o poder do constrangimento”.
Evitar que mulheres morram ao dar à luz é hoje o drama do Brasil. O índice de mortalidade materna é um dos melhores parâmetros para avaliar a qualidade da saúde de um país. Quando muitas mulheres perdem a vida durante a gestação, no parto ou nos 42 dias seguintes a ele – o critério técnico que define morte materna –, é sinal de que todo o sistema de saúde funciona mal. Mulheres jovens em pleno exercício da função natural de ter filhos não deveriam morrer. Principalmente com a tecnologia disponível em 2008: exames precisos, cirurgias modernas, antibióticos potentes. Qualquer morte é uma tragédia. Nesse caso, o escândalo é maior porque mais de 90% dos óbitos poderiam ter sido evitados.
Eliane Brum e Cristiane Segatto
Revista Época
Ela lutava pelos direitos das mulheres
Foto: Vânia tinha 35 anos
Por Clarinha Glock (Original na Revista Época- 30/05/2008)
Veja matéria na íntegra: Elas morreram de parto
Vânia era feminista e defendia a humanização do parto. Seu médico foi condenado na Justiça por duplo homicídio, mas se considera um mártir
Vânia Araújo Machado costumava dizer que, para sua vida ficar completa, só faltava mesmo um filho. Aos 35 anos, depois de um tratamento de fertilização, comemorou a primeira gravidez com a mesma energia depositada em sua carreira profissional. Formada em Educação Física, dançarina e professora de dança, amante do teatro, feminista entusiasta, foi pedagoga e coordenou a implantação da educação infantil no município. Sua luta em defesa dos direitos da mulher a levou à coordenação geral da Coordenadoria Estadual da Mulher, criada em 1999 pelo governo do Rio Grande do Sul.
Foi no final daquele ano, já exercendo o cargo, que engravidou. Havia conhecido o companheiro, Marcelo D’Elia Branco, numa passeata pelas ruas de Porto Alegre, e nunca mais se desgrudaram. A opção pelo parto de cócoras parecia mais do que natural para os dois. Durante seis anos, foi paciente do obstetra e ginecologista Ricardo Herbert Jones, considerado uma autoridade em parto humanizado, e fez com ele todo o pré-natal. Vânia era uma ativista tão convicta que em seu chá de fraldas convidou o médico para falar sobre o tema para suas amigas.
No dia 12 de setembro de 2000, quando ela deu entrada no hospital, em Porto Alegre, já havia escolhido o nome do filho, Cauê. “Às 10h ela estava com dilatação completa”, acredita Branco, que ficou com a mulher todo o tempo, acompanhado por uma amiga que levou sua câmera para filmar o nascimento. Mas o bebê não nascia, e o pai começou a ficar apreensivo. O obstetra o tranqüilizou, disse que estava tudo bem. Vez ou outra, a câmera o filmou escutando o coração da criança. Relatos dos médicos que ouviram a gravação depois indicam que talvez o bebê já estivesse com bradicardia (diminuição da freqüência cardíaca).
Às 14h10min o médico decidiu fazer uma cesariana. “Não havia anestesista preparado para uma emergência, tiveram de trazer de fora do hospital”, conta o marido. Quando o profissional finalmente chegou, e a cesariana foi feita. Cauê nasceu sem batimentos cardíacos. Foi reanimado, ficou vários dias na UTI do hospital em estado vegetativo, e morreu.
Vânia resistiu 24 dias depois da cesariana. Teve de passar por nove cirurgias, até sua morte, em 5 de outubro de 2000. Entre elas, a retirada do baço e do útero. Morreu 14 dias antes do filho.
O choque pela perda da mulher e do filho levaram Branco a não questionar nada. Até que as amigas de Vânia e os familiares começaram a perguntar o que havia acontecido de errado. Foram levantando fatos e laudos. Os peritos concluíram que o trabalho do parto havia se prolongado mais do que o recomendável, causando o sangramento e as complicações. O médico, por sua vez, alega que Vânia sofreu “uma embolia aguda por líquido amniótico durante o trabalho de parto, doença impossível de prever ou prevenir”. E que, curada da doença, “ela morreu mesmo foi de catapora, infectada dentro do hospital”.
Com a assessoria jurídica especializada da ONG Themis, a família de Vânia conseguiu comprovar suas suspeitas na Justiça. Jones foi condenado na área penal por dois homicídios culposos (sem intenção) - de Vânia e Cauê. Cumpriu a pena de dois anos e quatro meses de serviço comunitário e pagou a multa de 20 salários mínimos para a Associação Beneficente Fraterno Auxílio Cristão da Sagrada Família.
O processo ético-profissional realizado junto ao Conselho Regional de Medicina do Rio Grande do Sul (CREMERS) em 2003 determinou, por unanimidade, a pena de suspensão do exercício profissional por 30 dias “por não ter feito qualquer registro, em prontuário, da evolução da paciente durante mais de seis horas de acompanhamento de trabalho de parto”; por negligência, “ao não atentar e valorizar as condições fetais, ao retardar a indicação de cesariana e ao não usar dos meios disponíveis no hospital para melhor monitorizar a viabilidade fetal”. Diz ainda o acórdão do CREMERS que Jones “foi imprudente ao não providenciar anestesista mais cedo, ao menos após as grandes evidências de desproporção, e imperito ao não diagnosticar a distocia (parto difícil) subseqüente e ao realizar uma histerectomia puerperal (retirada do útero depois do parto) para controle de sangramento em condições graves, incompleta e inadequada”. O acórdão do CREMERS pode ser acessado na íntegra no blog criado pelo marido de Vânia.
Jones recorreu da decisão. O recurso foi julgado pelo Conselho Federal de Medicina, que decidiu pela pena de advertência privada: isso significa que o médico não chegou a ser suspenso, nem a decisão foi noticiada pela imprensa. Para ele, foi como uma absolvição. Passados oito anos, sequer cogita que pode ter ocorrido alguma falha em sua conduta. Ao contrário, diz que o período de trabalho de parto de Vânia foi até rápido em comparação com o de outras mulheres, que chamou o anestesista para fazer a cesariana quando detectou uma anormalidade e que ficou perto de sua paciente todo o tempo. Arrepende-se apenas de não ter feito um prontuário melhor, que o protegesse “das agressões dos colegas”.
Aos 48 anos, 23 de profissão, Jones é filiado à Rede pela Humanização do Parto e Nascimento e à International Motherbaby Childbirth Organization, e orgulha-se de viajar pelo mundo dando palestras em defesa de um modelo de parto que, segundo ele, “dignifica o nascimento, devolve o protagonismo e a autonomia à mulher e diminui a mortalidade materna”.
Considera-se um mártir. “Imagina um indivíduo que entra num hospital privado de Porto Alegre onde ocorrem 90% de cesarianas e atende partos normais - esse indivíduo incomoda por sua prática e por seu discurso: por pertencer a uma organização nacional e por ser um porta-voz destas idéias”, diz. “Todos os profissionais que ousaram se postar corajosamente contra o poder constituído sofreram coisas parecidas com o que sofri, isso não é novidade. O teu “patrício” Freud (diz para a repórter, que é judia) sofreu a mesma coisa, foi estraçalhado pelo conselho dos médicos de Viena. O Darwin, pior ainda. Galileu Galilei quase foi pra fogueira”.
A história de Vânia virou um símbolo da luta contra a mortalidade materna no Rio Grande do Sul. Seu nome foi dado a um centro de referência que atende mulheres que sofreram todo tipo de violência.
Veja mais sobre o caso:
- Informações de 2006
- Vânia e Cauê: Justiça Cível condena Médico e Hospital
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