Tinha tanto medo de solidão
que nem espantava as moscas
Quando já não havia outra tinta no mundo o poeta usou do seu próprio sangue.
Não dispondo de papel, ele escreveu no próprio corpo.
Assim, nasceu a voz, o rio em si mesmo ancorado.
Como o sangue: sem voz nem nascente.
A nossa língua comum foi construída por laços antigos, tão antigos que por vezes lhes perdemos o rasto.
Cada um descobre o seu anjo
tendo um caso com o demônio.
IdentidadePreciso ser um outro
para ser eu mesmo
Sou grão de rochaSou o vento que a desgasta
Sou pólen sem insecto
Sou areia sustentandoo sexo das árvores
Existo onde me desconheço
aguardando pelo meu passadoansiando a esperança do futuro
No mundo que combato morro
no mundo por que luto nasço
Destinoà ternura pouca
me vou acostumando
enquanto me adio
servente de danos e enganosvou perdendo morada
na súbita lentidão
de um destino
que me vai sendo escassoconheço a minha morte
seu lugar esquivo
seu acontecer dispersoagora
que mais
me poderei vencer?
Horário do Fimmorre-se nada
quando chega a vez
é só um solavanco
na estrada por onde já não vamos
morre-se tudo
quando não é o justo momento
e não é nunca
esse momento
Ser, parecer…Entre o desejo de ser
e o receio de parecer
o tormento da hora cindida
Na desordem do sangue
a aventura de sermos nós
restitui-nos ao ser
que fazemos de conta que somos.
BiofagiaÉ vitalício: comer a Vida
deitando-a entontecida
sobre o linho do idioma.
Nesse leito transverso
dispo-a com um só verso.
Até chegar ao fim da voz.
Até ser um corpo sem foz.
O PoetaO poeta não gosta de palavras:
escreve para se ver livre delas.
A palavra
torna o poeta
pequeno e sem invenção.
Quando,
sobre o abismo da morte,
o poeta escreve terra,
na palavra ele se apaga
e suja a página de areia.
Quando escreve sangue
o poeta sangra
e a única veia que lhe dói
é aquela que ele não sente.
Com raiva,
o poeta inicia a escrita
como um rio desflorando o chão.
Cada palavra é um vidro em que se corta.
O poeta não quer escrever.
Apenas ser escrito.
Escrever, talvez,
apenas enquanto dorme.
O beijo e a lágrimaQuero um beijo, pediu ela.
Um sismo
abalou o peito dele.
E devotou o calor
de lava dos seus lábios,
entontecida água na cascata.
Entusiamado,
ele se preparou para, de novo,
duplicar o corpo e regressar à vertigem do beijo.
Mas ela o fez parar.
Só queria um beijo.
Um único beijo para chorar.
Há anos que não pranteava.
E a sua alma se convertia
em areia do deserto.
Encantada,
ela no dedo recolheu a lágrima.
E se repetiu o gesto
com que Deus criou o Oceano.
NocturnamenteNocturnamente te construo
para que sejas palavra do meu corpo
Peito que em mim respira
olhar em que me despojo
na rouquidão da tua carne
me inicio
me anuncio
e me denuncio
Sabes agora para o que venho
e por isso me desconheces
Natural da Beira, Moçambique, o galardoado escritor Mia Couto é
considerado um dos nomes mais importantes da nova geração de escritores
africanos de língua portuguesa. A escrita tem sido uma paixão constante,
desde a poesia, na qual se estreou em 1983, com A Raiz de Orvalho,
até à escrita jornalística e à prosa de ficção. Vencedor de vários
prêmios, tem a sua obra traduzida em alemão, castelhano, francês,
inglês, italiano, neerlandês, norueguês e sueco.
Imagem daqui
Imagem daqui
Nenhum comentário:
Postar um comentário