Cercada pelas netas pequenas que correm de um lado para o outro, Kimio
Shirakawa conta que hoje já é ca-paz de sorrir quando olha para as
meninas. Ela vive em Ishinomaki, uma das cidades mais atingidas pelo
ter-remoto seguido de tsunami que devastou a costa nordeste do Japão em
11 de março de 2011 – aproximada-mente 6 mil dos 15.854 mortos eram de
lá – e culminou com a tragédia nuclear nos reatores de Fukushima. Depois
de perder sua casa e seu negócio (um açougue), Kimio demorou mais de
seis meses para sair de um estado de negação absoluta: não aceitava o
fim de sua pacífica vida. Um ano depois, ela diz sentir-se anestesia-da.
“Vivemos no limbo. Meu tempo parou”, diz a avó de Riona, de 4 anos, e
Runa, de 3. As meninas brincam dentro de uma sala comunitária gelada,
num dos conjuntos pré-fabricados erguidos pelo governo para quem ficou
sem nada.
A mistura de sentimentos de Kimio reflete o estágio em que os japoneses
se encontram no primeiro aniversário da tragédia natural, a segunda
maior do país em número de mortos em mais de 100 anos. Eles continuam
orgulhosos de seu poder de supe-ração, mas, desta vez, a dimensão dos
estragos – tanto materiais quanto psicológicos – foi tão grande que o
país ainda não des-cobriu que rumo seguirá. O foco do problema é como
reconstruir e tornar mais resistente a desastres naturais a região de
Toho-ku, que abriga as três províncias mais afetadas: Miyagi (onde fica
Ishinomaki), Iwate e Fukushima.
Aos olhos do mundo, será um trabalho gigantesco. Ninguém põe em questão
a capacidade japonesa de reerguer tudo. Nos últimos 100 anos, nenhum
povo passou por tantas catástrofes naturais ou provocadas por guerras e
conseguiu voltar a crescer (leia o quadro abaixo). Por duas
vezes nesse período, Tóquio se levantou dos escombros do terremoto de
1923, o mais mortífero de todos os tempos no Japão, e dos bombardeios
americanos da Segunda Guerra Mundial, em 1945. Hiroshima e Nagasaki,
pulverizadas pelo cogumelo atômico naquele mesmo ano, são talvez o
símbolo maior do poder de recuperação de uma nação que passou da
humilhação a um dos mais vigorosos crescimentos econômicos do século XX.
E ainda há o exemplo mais recente de Kobe, a sexta maior cidade
japonesa, transformada numa montanha de entulho em chamas após um tremor
de magnitude 6,9 provocar um grande incêndio e matar mais de 6.400
pessoas em 1995. Redesenhada, Kobe se tornou uma metrópole mais moderna e
segura.
A mensagem Para o Brasil Os japoneses dão um exemplo de reconstrução após catástrofes naturais Para o mundo Os desafios encarados pelo Japão mostram como uma tragédia pode mudar um país
Não foi diferente com o terremoto do ano passado. A região de Tohoku
também deu ao mundo exemplos de reação em tempo recorde. O tremor
destruiu mais da metade da Tohoku Expressway, uma rodovia de 675
quilômetros que liga Tóquio ao norte do Japão. Em menos de um mês, ela
estava reaberta ao tráfego. Nas cidades da Serra Fluminense atingidas
pelas enchentes de janeiro de 2011, numa tragédia de dimensões bem
menores que no Japão, ainda não foi construída nenhuma das 75 pontes
prometidas pelo Estado para substituir as que caíram – os moradores
improvisam passagens de madeira (leia ao final desta reportagem).
Numa das imagens mais impressionantes do dia do terremoto, uma maré
negra de destroços tomou conta da pista do aeroporto de Sendai, capital
de Miyagi. Os voos foram retomados um mês depois. O fornecimento de
água, luz e gás, interrompido em cerca de 2,6 mi-lhões de casas, foi
restabelecido quase integralmente uma semana depois. Em Ishinomaki,
embarcações foram cuspidas da água para o meio das ruas, pontes
desapareceram e as chamas consumiram o que as ondas de até 20 metros de
altura inundaram. Nas primeiras semanas, os sobreviventes caminharam
sobre os escombros, buscando corpos e pertences. Hoje, à beira-mar, o
cenário de hecatombe deu lugar a uma extensa faixa de terra deserta, que
passou por uma colossal operação de limpeza. Mais de 6 milhões de
toneladas de destroços foram acumulados em imensas montanhas de lixo,
vistas em vários pontos da cidade de 160 mil habitantes. À sombra delas,
restou apenas a base de prédios demolidos. A carcaça da Escola
Elementar de Kodonowaki, que ardeu num incêndio, ganhou um letreiro onde
se lê: “Descansem em paz”. Os alunos se salvaram porque subiram o morro
logo atrás da instituição. Ao redor da escola não existe mais nada, a
não ser as lápides de pedra ainda derrubadas de um cemitério, cobertas
pela neve do rigoroso inverno japonês. Uma bicicleta infantil,
cor-de-rosa, deixada sobre o que um dia foi a sala de uma casa, é um dos
poucos sinais de que a costa de Ishinomaki já foi habitada.
A imagem da orla silenciosa numa cidade que girava em torno do mar, com
sua indústria pesqueira, incomoda os moradores de Ishinomaki. É um
sinal de que o caminho da reconstrução é mais complexo e demorado do que
tendem a enxergar os estrangeiros. “O socorro e a reação inicial foram
rápidos na primeira fase após o tsunami. Mas o processo entrou em marcha
lenta. As pessoas estão ali, paradas, esperando agora as decisões
oficiais sobre como será possível reconstruir as comunidades”, diz o
engenheiro brasileiro Shinji Mogi, de 43 anos. Nissei que vive no Japão
há 20 anos, Mogi trabalhou nos últimos meses como voluntário em
Ishinomaki, coordenando a ajuda oferecida por empresas e imigrantes
brasileiros. Ele é recebido com carinho e docinhos por algumas das
famílias que conheceu em momentos de dor. Dono de uma pequena empresa de
construção civil, Mogi saiu da região metropolitana de Tóquio
arrastando um trator em sua caminhonete e chegou ao litoral poucos dias
após o desastre, quando os mortos ainda estavam nas ruas. “O terremoto
me ajudou a entender uma guerra. Depois de um tempo, você se acostuma ao
choque e só pensa em viver”, afirma.
Em 2011, a retirada dos destroços, a busca pelos desaparecidos e o
destino dos desabrigados mobilizaram as autoridades e organizações
civis, enquanto a luta para controlar os reatores nucleares
superaquecidos da usina de Fukushima – a mais imprevisível das
consequências do tsunami – continuava. A catástrofe deixou uma herança
dramática com duas frentes. Na primeira, Fukushima ainda não está
totalmente sob controle. A área vizinha à usina, contaminada pela
radiação, é uma terra de ninguém, totalmente abandonada. A usina nuclear
está estabilizada, diz o governo, mas a vida a seu redor ainda é de
incerteza, apesar de especialistas afirmarem que o risco à saúde é
pequeno (leia a entrevista com Robert Gale).
A faixa de 20 quilômetros em torno dos reatores que sofreram explosões
ainda é uma zona de exclusão, onde ninguém pode entrar. Os moradores de
11 municípios não sabem se um dia poderão voltar para casa. Parte deles
vive em abrigos temporários. Os mais jovens, principalmente os pais de
crianças pequenas, mais vulneráveis aos efeitos da radiação, desistiram
de morar ali. O pânico provocado pelo acidente de Fukushima levou ao
fechamento de 52 dos 54 reatores nucleares do Japão, responsáveis por
30% da energia do país. Até abril, os dois restantes também deverão ser
paralisados, trazendo mais um desafio ainda sem solução. O país fechou
2011 com o PIB em queda de 0,7% e seu primeiro deficit
comercial em 31 anos. O iene altamente valorizado pesou, mas o aumento
das importações de petróleo (21%) e gás (37%), resultado direto da crise
energética, foi a principal causa do tombo.
A segunda frente da crise é representada por cidades como Ishinomaki,
que estão longe dos reatores, mas ainda não sabem como e quando seu
cotidiano será retomado. “A vida sumiu”, diz Yoshiko Kono. Ela perdeu
cinco pessoas da família, entre elas a sobrinha, que se afogou ao lado
da filha de 6 meses. “A repercussão internacional de Fukushima deixou as
decisões sobre nosso futuro em segundo plano”, afirma. Kono também
ocupa hoje uma moradia temporária – habitações iguais, que se assemelham
a contêineres. Líder comunitária, ela organizava atividades para a
população idosa. Dezenas de pessoas com quem trabalhava estão mortas.
Das 250 famílias que viviam em seu bairro, só 13 permanecem.
O alerta de tsunami soou logo após o terremoto que sacudiu Tohoku às
14h46 do dia 11. Acostumados a tremores, os moradores acharam que
estariam protegidos pela muralha que cerca o litoral ou que seria
suficiente subir para o 2o andar de sua casa. Estavam errados. “Esta foi
uma das lições: não podemos confiar demais em barreiras ao longo da
costa e em torno dos portos. Ficou claro que há limites para o que se
pode fazer. Essas construções foram erguidas de acordo com
especificações que tinham como base tsunamis que podem acontecer a cada
200 anos. O que ocorreu foi muito maior do que isso, um desastre natural
que só tem registro a cada 1.000 anos”, disse, em entrevista a
jornalistas estrangeiros em Tóquio, o responsável pela Agência de
Reconstrução, Tatsuo Hirano.
A criação do órgão só foi oficializada pelo primeiro-ministro,
Yoshihiko Noda, em 8 de fevereiro, 11 meses após a tragédia. Sua função é
acelerar a reconstrução de Tohoku, avaliada em 23 trilhões de ienes
(cerca de R$ 500 bilhões) e prevista para durar dez anos. Hirano já
tinha o cargo de ministro – desde julho estava na pasta da Gestão de
Calamidades –, mas somente agora obteve os poderes necessários para
superar os entraves burocráticos que atrasam a liberação de ajuda e as
discussões sobre os projetos para reerguer as cidades arrasadas. A nova
agência, nas palavras do premiê Noda, será a “torre de comando” da
reconstrução. Está nos planos do governo levantar novamente as muralhas
no litoral. Não existe consenso sobre a altura dessa proteção. Em alguns
pontos, o mar deixou marcas a 40 metros de altura. “Áreas de evacuação
também foram varridas, e isso custou muitas vidas. Entre as soluções
avaliadas está a construção de rotas de fuga, com rodovias feitas
especificamente para casos de emergência, e de torres, que também
funcionariam como ponto de escape”, disse Hirano.
Ao contrário de Kobe, onde uma nova legislação antiterremoto foi
aprovada e prédios foram erguidos no lugar dos que desmoronaram, as
cidades de cara para o Pacífico não podem simplesmente ser reconstruídas
nos mesmos pontos. Em Ishinomaki, os moradores ainda não têm respostas
sobre como o município será redesenhado – incerteza que se espalha por
muitos outros vilarejos na mesma situação. As quadras residenciais que
ficavam próximas às águas aparentemente tranquilas não poderão ser
reocupadas enquanto não for aprovado um projeto urbanístico. Há várias
propostas em debate, como a instalação de parques arborizados ou a
elevação do terreno acima do nível do mar – uma obra bem mais cara e
demorada. Para colocar os planos em prática, também será preciso
discutir questões relativas à desapropriação da terra. A troca de
primeiro-ministro em agosto atrapalhou o processo. Noda, o sexto
dirigente japonês em sete anos, substituiu
Naoto Kan, que renunciou sob a acusação de incompetência para administrar o acidente de Fukushima.
“Nada começou a ser feito aqui, todas as decisões são muito lentas. A
prioridade deve ser estimular o emprego, porque sem isso a cidade vai
morrer. Os jovens partiram, e uma população idosa, vinda de comunidades
menores que desapareceram, foi transferida para cá. Não há oferta de
trabalho nem gente para trabalhar”, diz Koichi Omi, diretor do jornal Ishinomaki Hibi Shimbun.
O pequeno diário se transformou em notícia, e seus sete repórteres, em
heróis. No dia do terremoto, a tão enaltecida alta tecnologia japonesa
não funcionou. Sem luz, computadores ou acesso a mídias sociais, que
servem de fonte de informação em momentos de crise, os jornalistas –
muitos deles sem casa para voltar nem contato com a família – apelaram
ao papel e à caneta para não deixar a população sem notícias. Durante
dias, até que as máquinas pudessem ser religadas, colocaram as
informações em cartolinas, à mão, e as espalharam por centros de
desabrigados. Uma dessas páginas, com o título “O fogo se espalha”,
continua na porta da redação, como uma lembrança do pior dia na vida do
jornal e de sua equipe.
Ex-funcionárias de uma fábrica de salgadinhos, duas amigas costumam
almoçar ao lado de seu antigo local de trabalho, fechado, na região
portuária de Ishinomaki. Elas estão sem emprego há um ano, mas, como sua
casa não foi destruída, não receberam ajuda oficial. As mulheres são
vizinhas da escola primária de Okawa, palco do mais dramático episódio
de uma tarde marcada pelo horror, onde 74 dos 108 alunos morreram. Logo
depois do tremor, os professores levaram os estudantes para o pátio e
ficaram debatendo se deveriam subir até o alto de um morro (poderia ser
difícil para as crianças menores), ou se a ponte sobre o Rio Kitakami, a
200 metros dali, era um refúgio seguro. Optaram pela ponte e, 35
minutos depois, foram tragados pelo tsunami. Dez dos 13 professores
morreram. Só escapou quem decidiu correr para o morro. Em janeiro, a
Secretaria de Educação de Ishinomaki admitiu que a escola não estava
preparada para um desastre. Quatro corpos de crianças continuam
desaparecidos. Seus pais não desistem. O rio foi represado em fevereiro
para que as buscas continuem. “Não me sinto no direito de dar
entrevistas e lamentar minha sorte. Não tinha filhos estudando ali. As
mães das crianças que sobreviveram não deixam que elas brinquem na rua,
porque não querem ofender os pais dos que morreram”, afirma uma das
vizinhas da escola. “Somos felizardos, mas carregamos a culpa por
estarmos vivos.”
As montanhas de escombros também funcionam como uma lembrança dolorosa.
Estima-se que a região de Tohoku tenha acumulado 22 milhões de
toneladas de destroços. Somente 6% foram incinerados ou reciclados. O
governo federal tem feito pressão para que os s Estados recebam o lixo e
reciclem o que for possível. Os índices de contaminação detectados nas
pilhas mais próximas de Fukushima dificultaram a remoção. O segurança
Akira Sagawara treme de frio diante das temperaturas abaixo de zero no
fim do inverno japonês, mas não pode deixar seu posto. Ele trabalha num
terreno transformado em depósito de carros destruídos, com mais de 2.500
veículos empilhados. “Eles continuam chegando, retirados dos rios e do
oceano. Os donos raramente aparecem, mas há quem se aproveite roubando
peças”, diz Sagawara, morador de Sendai que também enterrou familiares.
Apesar do futuro incerto, o casal Fujiwara decidiu arriscar. Eles
acabam de reabrir seu pequeno restaurante, o Twinkle, a 800 metros do
antigo porto de Ishinomaki. A rua onde trabalham e moram já recebeu
sinal verde para a reconstrução. O movimento no local ainda é mínimo. Os
negócios estão todos fechados. O 1o andar do restaurante ficou
submerso. O brasileiro Mogi deu de presente ao casal um conjunto de
xícaras que eles usam para servir café aos fregueses, assim como uma
foto autografada de Pelé, que esteve em Tohoku em novembro. O cheiro de
tinta fresca e as flores da reinauguração são um raro sinal de renovação
nessa parte da cidade. “Tenho esperanças, mas são poucas. Havia mais de
200 empresas nesta região. Se metade reabrir, já será muita coisa”, diz
Kinya, de 60 anos, dono do Twinkle. Kohei Sugyama, de 36, também era
dono de um restaurante, especializado em sushi. Perdeu tudo, inclusive a
própria casa. O pai morreu, e a mãe não quer deixar Ishinomaki. “Mesmo
se quisesse, não posso abandonar este lugar”, diz o sushiman. Agora ele
trabalha numa rede de restaurantes de udon, um macarrão grosso, típico
da culinária japonesa. A casa, num pequeno centro comercial
pré-fabricado, ainda não abriu suas portas. Os funcionários estão
ocupados, arrumando os últimos detalhes. Eles esperam a primavera
chegar, na esperança de que o calor dê à população de Ishinomaki mais
forças para recomeçar.
Homenagens a vítimas de tsunami
Tragédia no Japão deixou milhares de mortos e desaparecidos há um ano. Queima de fogos em Izumigaoka representou as quase 19 mil vítimas.
Roberto KovalickDa TV Globo
Japonesa
segura o retrato da filha e do neto de seis meses mortos no tsunami.
Ela participou da homenagem às vítimas em uma queima de fogos na
montanha de Izumigaoka, em Sendai, a maior cidade atingida pelo tsunami.
(Foto: Roberto Kovalick/TV Globo)
Homenagem
às vítimas do terremoto no Japão teve uma queima de fogos na montanha
de Izumigaoka, em Sendai, a maior cidade atingida pelo tsunami. Cerca de
3 mil pessoas participaram da celebração que utilizou 20 mil fogos,
quase um para cada vítima (Foram pouco mais de 19 mil mortos e
desaparecidos). (Foto: Roberto Kovalick/TV Globo)
Um
ano após o tsunami, um barco continua ao lado de uma estrada de área
atingida pela onda gigante no Japão (Foto: Roberto Kovalick/TV Globo )
O
correspondente da TV Globo no Japão, Roberto Kovalick (à esquerda), em
Natori, cidade que foi arrasada e fica ao lado de Sendai, capital da
província de Miyagi. Sendai foi a maior cidade atingida pelo tsunami e
Natori ficou arrasada. (Foto: Roberto Kovalick/TV Globo)
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