"Chega um momento na nossa vida em que devemos renunciar”, disse na
semana passada o sociólogo e filósofo francês Edgar Morin, com vigor e
lucidez aos 91 anos. Renunciar a uma ou mais coisas que pareciam
essenciais antes. Renunciar a um cargo, a uma paixão, um desamor, uma
obsessão, uma disputa, uma vaidade, ao sol a pino, à carne vermelha no
jantar, seja lá o que for. Saber dizer não com serenidade pode ser um
ato revolucionário e de liberdade individual.
Pelo ineditismo e pela surpresa, a renúncia do papa Bento XVI foi dissecada no mundo inteiro em plena festa profana, o Carnaval. Cada um viu o que quis. Vemos aquilo em que cremos. Católicos fervorosos se sentiram perdidos ao perceber, enfim, que o papa não é santo. Não é mesmo, nunca foi. Agnósticos e cristãos com um mínimo de perspectiva histórica sabem que a batina não sacraliza ninguém. Amém.
O papa não tem influência na minha vida particular, embora eu tenha sido batizada e feito primeira comunhão nas igrejas de Copacabana. Na infância, era obrigada a ir à missa todo domingo. Havia um anjo de gesso sobre minha cama. Ele me dava um certo medo. Tinha aulas de catecismo numa escola laica. Via, na confissão, uma enorme teatralidade. Às vezes inventava pecados para testar a reação daquele desconhecido que parecia dormir, de perfil. Não entendia a lógica do número de ave-marias e padre-nossos, como castigo ou promessa de salvação eterna.
Bem mais tarde, o papa passou a me interessar apenas como chefe de um Estado implacável e multimilionário que se aliou a demônios palpáveis e históricos. Um Estado com poder transnacional sobre governos, política, ciência e sobre a vida das pessoas comuns. Na semana passada, o papa passou a me interessar como alguém de carne e osso. Por mais sinais de cansaço e desilusão que tivesse dado, era difícil crer que logo um Ratzinger apelidado de “papa panzer” e “rottweiler de Deus” decidisse apear da cruz e humanizar-se.
Ratzinger é um homem com um marca-passo. Não queria deteriorar ao vivo como seu antecessor. Considerava a saúde da carne um imperativo para exercer direito o poder do espírito. Sentia-se impotente diante do enfraquecimento da Igreja Católica. Ficava irritado com as fofocas nos corredores do Vaticano. Inseguro diante dos escândalos de pedofilia de padres e cardeais. Culpado pelos escândalos de corrupção interna, vazados por seu mordomo. Traído por sua equipe de confiança. Magoado com sua imagem de autoritário e conservador no Twitter.
Ele nem pediu para sair. Não negociou com seus pares ou súditos. Disse: “Fui”. Decidiu “em plena liberdade” – como se alguém pudesse ser plenamente livre. Dizer que renunciou “pelo bem da Igreja” é conversa para cardeal dormir. Uma tentativa póstuma de se fazer de soldado humilde de Jesus. Um homem diz “não” pelo seu próprio bem. Bento XVI era um papa relutante e acidental, sem carisma. Virou astro pela negação.
O que se seguiu foram os obituários em vida. Como os papas costumam morrer em exercício, são poupados de assistir a seu funeral. Pelo menos de corpo presente. Bento XVI assiste de camarote à enorme confusão provocada por seu gesto libertário ou covarde. Se existem outros vazamentos de escândalos na fila, melhor estar na casa de verão em Castelgandolfo, meia hora ao sul de Roma, meditando, orando e escrevendo.
É um palácio sobre uma colina, com vista para um lago, na verdade a boca de um vulcão adormecido. Simbólico, diante de toda a lava derramada nos últimos anos envolvendo a Igreja Católica. Quem ficará na boca de um vulcão ativo será outro papa, mais jovem, mais saudável, menos rígido e mais antenado com as redes sociais. Não é assim a vida fora do Vaticano?
O “basta” de Bento XVI me lembrou o filme premonitório de Nanni Moretti, Habemus papam, do ano passado. É uma comédia de costumes inofensiva. Eleito pelo conclave dos cardeais, o novo sumo pontífice – protagonizado por Michel Piccoli – entra em pânico. Apavorado com o que o espera no comando da Igreja, recusa-se a ser identificado na sacada para os fiéis.
Um psiquiatra ateu (Nanni Moretti) é chamado ao Vaticano. Na cena mais hilária do filme, os cardeais dizem ao psiquiatra que ele só não poderá discutir assuntos como “fé, desejos, sonhos, sexo, infância e mãe”. É uma paródia de como a Igreja Católica se despregou da realidade. A partir daí, o novo papa, descrente de si mesmo, de sua fé e da Igreja, foge do cerco e perde-se pelas ruas de Roma. Frágil, vulnerável, ele fica maravilhado com o anonimato, as pessoas e sua vida normal, seus tropeços e alegrias. Vê, de fora, como seu rebanho o enxerga. Renuncia a ser pastor. E assume a si mesmo.
Pelo ineditismo e pela surpresa, a renúncia do papa Bento XVI foi dissecada no mundo inteiro em plena festa profana, o Carnaval. Cada um viu o que quis. Vemos aquilo em que cremos. Católicos fervorosos se sentiram perdidos ao perceber, enfim, que o papa não é santo. Não é mesmo, nunca foi. Agnósticos e cristãos com um mínimo de perspectiva histórica sabem que a batina não sacraliza ninguém. Amém.
O papa não tem influência na minha vida particular, embora eu tenha sido batizada e feito primeira comunhão nas igrejas de Copacabana. Na infância, era obrigada a ir à missa todo domingo. Havia um anjo de gesso sobre minha cama. Ele me dava um certo medo. Tinha aulas de catecismo numa escola laica. Via, na confissão, uma enorme teatralidade. Às vezes inventava pecados para testar a reação daquele desconhecido que parecia dormir, de perfil. Não entendia a lógica do número de ave-marias e padre-nossos, como castigo ou promessa de salvação eterna.
Bem mais tarde, o papa passou a me interessar apenas como chefe de um Estado implacável e multimilionário que se aliou a demônios palpáveis e históricos. Um Estado com poder transnacional sobre governos, política, ciência e sobre a vida das pessoas comuns. Na semana passada, o papa passou a me interessar como alguém de carne e osso. Por mais sinais de cansaço e desilusão que tivesse dado, era difícil crer que logo um Ratzinger apelidado de “papa panzer” e “rottweiler de Deus” decidisse apear da cruz e humanizar-se.
Ratzinger é um homem com um marca-passo. Não queria deteriorar ao vivo como seu antecessor. Considerava a saúde da carne um imperativo para exercer direito o poder do espírito. Sentia-se impotente diante do enfraquecimento da Igreja Católica. Ficava irritado com as fofocas nos corredores do Vaticano. Inseguro diante dos escândalos de pedofilia de padres e cardeais. Culpado pelos escândalos de corrupção interna, vazados por seu mordomo. Traído por sua equipe de confiança. Magoado com sua imagem de autoritário e conservador no Twitter.
Ele nem pediu para sair. Não negociou com seus pares ou súditos. Disse: “Fui”. Decidiu “em plena liberdade” – como se alguém pudesse ser plenamente livre. Dizer que renunciou “pelo bem da Igreja” é conversa para cardeal dormir. Uma tentativa póstuma de se fazer de soldado humilde de Jesus. Um homem diz “não” pelo seu próprio bem. Bento XVI era um papa relutante e acidental, sem carisma. Virou astro pela negação.
O que se seguiu foram os obituários em vida. Como os papas costumam morrer em exercício, são poupados de assistir a seu funeral. Pelo menos de corpo presente. Bento XVI assiste de camarote à enorme confusão provocada por seu gesto libertário ou covarde. Se existem outros vazamentos de escândalos na fila, melhor estar na casa de verão em Castelgandolfo, meia hora ao sul de Roma, meditando, orando e escrevendo.
É um palácio sobre uma colina, com vista para um lago, na verdade a boca de um vulcão adormecido. Simbólico, diante de toda a lava derramada nos últimos anos envolvendo a Igreja Católica. Quem ficará na boca de um vulcão ativo será outro papa, mais jovem, mais saudável, menos rígido e mais antenado com as redes sociais. Não é assim a vida fora do Vaticano?
O “basta” de Bento XVI me lembrou o filme premonitório de Nanni Moretti, Habemus papam, do ano passado. É uma comédia de costumes inofensiva. Eleito pelo conclave dos cardeais, o novo sumo pontífice – protagonizado por Michel Piccoli – entra em pânico. Apavorado com o que o espera no comando da Igreja, recusa-se a ser identificado na sacada para os fiéis.
Um psiquiatra ateu (Nanni Moretti) é chamado ao Vaticano. Na cena mais hilária do filme, os cardeais dizem ao psiquiatra que ele só não poderá discutir assuntos como “fé, desejos, sonhos, sexo, infância e mãe”. É uma paródia de como a Igreja Católica se despregou da realidade. A partir daí, o novo papa, descrente de si mesmo, de sua fé e da Igreja, foge do cerco e perde-se pelas ruas de Roma. Frágil, vulnerável, ele fica maravilhado com o anonimato, as pessoas e sua vida normal, seus tropeços e alegrias. Vê, de fora, como seu rebanho o enxerga. Renuncia a ser pastor. E assume a si mesmo.
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