Trote, uma prática medieval que desafia as universidades
Instituições tentam implementar programas de "boas-vindas aos calouros", mas ainda falham em coibir agressões e humilhações
Nathalia Goulart
Calouro da USP de 1996 tenta "matar formiga no grito": ritual de passagem não pode descambar para violência e humilhação
Linha do tempo: os trotes violentos no Brasil, de 1831 a 2011
O trote é uma demonstração de que, a despeito de avanços inegáveis, o mundo não mudou tanto assim em quase 800 anos. Mantém no século XXI um tanto de século XIV. Prova disso é que o trote se mantém no calendário como uma atividade acadêmica regular: encerrada a fase de vestibulares, se inicia a de divulgação de listas de candidatos aprovados e explode a agressão e a humilhação dos novatos. Neste ano, por exemplo, uma tropa de veteranos da Universidade de Brasília (UnB) exibiu sua porção medieval ao obrigar calouras a simular sexo oral com uma linguiça envolta numa camisinha e embebida em leite condensado. Americanos e franceses, entre outros, também tem motivos para lamentar. Lá, como aqui, o trote persiste, preocupa e escapa do controle.
No centro do problema, estão as próprias universidades. A maioria das instituições proíbe o trote dentro de suas dependências – algumas já o fazem há cerca de 40 anos. Contudo, em geral, a fiscalização não é rigorosa, e as atividades envolvendo veteranos e calouros muitas vezes acontecem do lado de fora dos muros acadêmicos. "A universidade ainda não vê como sua tarefa coibir o trote", diz Antonio Ribeiro de Almeida Júnior, professor de sociologia da Escola Superior de Agricultura Luiz de Queiroz (Esalq-USP) e autor do livro Universidade, Preconceito e Trote. "A proibição por si só não funciona. É preciso punir aqueles que desrespeitam a norma. O problema é que normalmente as universidades se restringem a abrir inquéritos, mas ninguém é punido", afirma.
Mostrar aos algozes a face dura da lei foi a escolha da França. Desde 1998, está em vigor no país uma lei que criminaliza o trote violento. Os condenados podem pegar um ano de prisão e pagar multa de até 15.000 euros. Desde que o mecanismo entrou em vigor, os veteranos passaram a se comportar melhor, apontam estudos locais. As práticas humilhantes e violentas foram substituídas por uma jornada de integração dos novos alunos à instituição. Estudante de psicologia da École des Psychologues Praticiens, de Paris, Maria Elisa Serra passou pela experiência. "Foram promovidas festas, gincanas e atividades dentro da universidade. Foram dois dias divertidos e saudáveis", diz a brasileira. Alguma semelhança com a tradicional baderna por que passaram seus colegas no Brasil? "Nenhuma", ela responde.
Calouros do Mackenzie obrigados a ingerir pinga, em 2008
Os legisladores brasileiros ainda discutem o que fazer para enfrentar o problema que, por aqui, já tem quase dois séculos – o trote chegou ao país trazido por brasileiros que haviam estudado na Europa no século XIX. Um projeto de lei que pretende disciplinar o assunto foi aprovado na Câmara em 2009 e, desde então, repousa no Senado. Pretende proibir o constrangimento dos calouros, a exposição deles a situações vexatórias e ofensas graves, além de garantir a integridade física dos novatos. O texto determina que as universidades abram processos disciplinares contra os veteranos violentos, mas não prevê sanções a instituições que se furtarem a cumprir suas responsabilidades. Aos alunos que se excederem, seriam aplicadas multas – de 1.000 a 20.000 reais –, suspensão de um a seis meses e até expulsão. Desde 1999, alguns estados mantêm leis locais que tratam do tema, caso de São Paulo e Santa Catarina. No entanto, passada mais de uma década, não há registros de condenações motivadas por esses freios legais.
Os Estados Unidos também tentam minorar o problema pela via legal – e têm falhado igualmente. Em 44 estados, o trote já é considerado crime. Contudo, 29 estudantes morreram vítimas de trotes violentos na última década, cinco deles só em 2008, segundo levantamento de Hank Nuwer, professor do Franklin College e estudioso do assunto. "As leis e os programas das universidades que tentam promover atividades alternativas ainda são ineficientes. É difícil combater uma prática que, até a metade do século passado, era amplamente incentivada pelas próprias instituições de ensino", diz Nuwer.
Entre os americanos, em geral, violência e humilhação não são impostos cobrados às portas da instituição. Lá, os maiores problemas são registrados durante a seleção promovida por veteranos para escolher os novatos que serão aceitos pelas fraternidades (somente de homens) e irmandades (de mulheres). Ambos são grupos fechados que alegam selecionar os melhores e, posteriormente, beneficiá-los de alguma forma, como oferecendo conexões sociais privilegiadas ou acesso a oportunidades de emprego. A possibilidade de se tornar um líder no meio universitário – e fora dele – anima os jovens a encarar provas arriscadas para fazer parte dos grupos. "O maior problema ali é relativo ao abuso de bebida alcoólica, além de brincadeiras aparentemente inocentes, como levar um candidato a uma área rural ou a um bairro extremamente perigoso em plena madrugada e deixá-lo ali sozinho, à própria sorte", conta o especialista americano.
Como ocorria há quase 800 anos, o ingresso de um calouro na universidade pode de fato configurar um ponto de inflexão na vida desse jovem. É quando uma porta se abre à sua frente. Fazem sentido, por isso, festas e cerimônias. "O momento pede um ritual que marque a transição. O calouro precisa ser iniciado no meio acadêmico e os veteranos precisam cumprir esse papel", afirma o professor Antônio Zuin, da UFSCar. Está claro, contudo, que, em pleno século XXI, esse ritual não pode reproduzir a face obscura do século XIV.
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