Paciente com grave ansiedade social automedicou-se com propranolol durante seis anos, em doses de até 320 mg/d. Além do tratamento psicanalítico que já havia iniciado, foi tratada com tranilcipromina, apresentando melhora parcial do quadro fóbico e do abuso do betabloqueador. Após introdução de paroxetina, houve melhora ainda mais pronunciada. Apesar da automedicação com uma substância potencialmente eficaz em alguns casos, perpetuou-se durante anos um grave padrão fóbico de comportamento. O caso exemplifica as dificuldades de procura de tratamento específico pela população de fóbicos sociais. Levanta-se a hipótese da existência de uma prática crescente de automedicação com betabloqueadores entre fóbicos sociais e pessoas com ansiedade de desempenho, problema cuja relevância para a saúde pública ainda não foi pesquisada.
Descritores: Propranolol. Transtornos fóbicos. Abuso de substâncias. Automedicação. Fobia social.
Introdução
O transtorno de ansiedade social (ou fobia social) teve seus sinais e sintomas sistematizados há três décadas.1 O diagnóstico baseia-se no sintoma do medo de avaliações negativas em situações de exposição social fora do ambiente familiar, sentindo-se a pessoa examinada em seus desempenhos, embaraçada ou envergonhada. A evitação de tais situações pode levar a intenso isolamento social e inviabilizar a história educacional e profissional de algumas pessoas. As taxas de prevalência na população geral variam entre 2 a 16%, possivelmente refletindo o uso de diferentes critérios diagnósticos.2-7 Nas coortes mais jovens, a prevalência é maior,2 levantando a discussão sobre as variáveis socioculturais na etiologia da ansiedade social.
Prescrevem-se betabloqueadores para ansiedade de desempenho há pelo menos três décadas. Ingeridos cerca de uma hora antes do evento ansiogênico, podem interromper a retroalimentação positiva em que sintomas autonômicos pioram o medo do desempenho social – medo que, por sua vez, piora a sintomatologia autonômica. São também prescritos associados a medicamentos de uso contínuo eficazes para quadros mais graves (ISRS, IMAO, tricíclicos e benzodiazepínicos).8 É igualmente comum que os fóbicos sociais se automediquem com álcool e outras substâncias psicoativas.5,9-11
Relata-se o caso de paciente com quadro de ansiedade social generalizada e abuso contínuo de propranolol por seis anos (até 320 mg/d). Ilustra-se o relato com transcrições de um pequeno texto autobiográfico escrito pela paciente a pedido do autor.
Apresentação do caso
Identificação e motivo de consulta
Sexo feminino, 34 anos, ensino superior completo, queixa-se de "tremeliques" há 20 anos, em várias situações cotidianas: tremor intenso, medo e sensação de incapacidade de realizar, diante de outras pessoas, tarefas cotidianas simples (como pagar contas no comércio) ou mais complexas (como participar de reuniões profissionais).
História pregressa
Aos 12-13 anos percebia-se "nervosa" ao realizar tarefas familiares: ir ao comércio, entregar algum objeto, escrever diante de alguém, proceder a pagamentos ou conversar com pessoas estranhas. Passou a se recusar a fazê-las, gerando conflitos familiares: "meu pavor era tanto que comecei a me recusar; não ia a lugar nenhum, praticamente".
Os sintomas intensificaram-se na faculdade, comprometendo seus rendimentos escolares:
Em vez de me preocupar com a prova, ficava apavorada com a lista de presença. Ficava estática, sem conseguir me concentrar - nem olhava as questões. Esperava a lista chegar. Levava uns 15 minutos nessa espera, ou seja, praticamente perdia uma questão. De repente, estava o professor ao meu lado e eu tendo que escrever meu nome naquele papel, enquanto ele me observava. O tremelique era tanto que mal conseguia firmar a caneta.
Inicialmente automedicou-se por meses com bromazepam e atenolol, por recomendação de uma conhecida não médica (amiga que, por sua vez, já se automedicava com essas substâncias). Entretanto, não as considerou suficientemente eficazes e teve, por exemplo, ansiedade antecipatória relacionada a um evento durante todo um semestre letivo:
Não podia fugir do seminário de fim de semestre, valia 60% da nota. Foi o pior da minha vida escolar: angustiada, esperando. No dia, tomei vários lexotan e atenol. Apresentei sentada na mesa do professor de tanto que tremia, mas consegui subir no tablado e abrir a boca. À noite, ao deitar, tive um mal-estar esquisito: meu corpo ficou dormente, não conseguia mover um músculo. Morava sozinha... senti medo.
Sua amiga havia então "descoberto o propranolol"; a paciente usou e o considerou "fantástico". Embora temendo efeitos adversos, passou a tomar propranolol para enfrentar "qualquer que fosse a situação, mesmo em ocasiões imprevistas":
Engolia a seco mesmo, se não tivesse nada líquido. Tem um gosto horroroso. Não importava se o tempo era curto para o remédio agir. Não existe noção, paladar... Nada parece viável e sensato quando penso no que sinto quando entro em pânico. Nada é pior que algo que anula completamente minha racionalidade, meu controle sobre meu corpo.
Por seis anos manteve este padrão de uso, pois imaginava que poderia ser escalada de última hora para apresentar seu trabalho aos colegas e à chefia (o que, na prática, ocorre uma ou duas vezes por mês). A dose habitual foi de 80mg/d, mas, sendo mais provável uma apresentação pública ou diante de superiores hierárquicos importantes, tomava até 320 mg/d.
Antecedentes
Sem antecedentes pessoais ou familiais relevantes à compreensão atual do caso.
Evolução
Mantido o tratamento psicanalítico já iniciado com outro profissional. Instituída psicofarmacoterapia: tranilcipromina 40 mg/d + propranolol corretamente prescrito (20 mg antes de situações especialmente ansiogênicas).
A prescrição da tranilcipromina como primeira escolha deveu-se a dois fatores: o custo financeiro de um ISRS e a possibilidade de interação medicamentosa entre um ISRS e o propranolol (cujo uso não prescrito – em doses altas – poderia não ser interrompido pela paciente em curto prazo). (Muitos ISRS inibem significativamente a isoenzima CYP2D6, responsável pela metabolização propranolol,12 e há casos relatados de grave bradicardia com a interação de betabloqueador com fluoxetina e paroxetina).13,14
Com este tratamento (tranilcipromina e psicanálise), a paciente relatou ter desenvolvido algumas habilidades de enfrentamento de situações antes evitadas ou enfrentadas com angústia descrita como quase insuportável. Interrompeu o abuso do betabloqueador.
Mantendo freqüência inconstante ao consultório nos dois primeiros anos de atendimento, ao final deste período relatou não mais tolerar a hipotensão postural (efeito adverso da tranilcipromina). Comprometendo-se a não abusar do betabloqueador, passou a ser medicada com um ISRS (paroxetina 30 mg/d), com melhora mais pronunciada do quadro fóbico. Mantém-se melhor depois de 12 meses com este tratamento, tomando apenas eventualmente 20 mg de propranolol (cerca de uma vez a cada dois meses).
Discussão
Não foram encontrados dados na literatura médica sobre automedicação ou uso abusivo de propranolol, medicamento de venda praticamente livre no mercado brasileiro. Devido aos possíveis efeitos adversos, sua utilização deveria ser sempre intermediada medicamente, após exclusão de algumas morbidades pulmonares e cardíacas altamente prevalentes (doenças obstrutivas broncopulmonares, bradicardia sinusal, insuficiência cardíaca, bloqueios átrio-ventriculares etc).
No caso relatado, o padrão fóbico de comportamento foi perpetuado apesar da automedicação, tendo a paciente mantido intensa ansiedade antecipatória e evitação de tarefas cotidianas. Sem orientações adequadas, a paciente não utilizou a medicação de maneira correta. Desenvolveu conhecimento informal (baseado na experiência própria) sobre uma das indicações clínicas do medicamento, mas o desconhecimento sobre sua farmacocinética impedia a ingestão com antecedência necessária para a maximização dos efeitos pretendidos. Entretanto, alguns sintomas foram minimizados pela automedicação, permitindo o enfrentamento de tarefas tidas como imprescindíveis.
A anamnese apresentada faz emergir a hipótese da existência de uma prática de automedicação e abuso de betablo queadores entre pessoas com ansiedade social. Talvez esteja ocorrendo transmissão de informações incompletas sobre os efeitos destas substâncias em alguns grupos sociais como, por exemplo, no dia-a-dia das relações sociofamiliares (como no caso relatado) ou em outros meios de interação social (como listas de discussão de fóbicos sociais na internet). A venda praticamente livre destes medicamentos no País favoreceria tal fenômeno e talvez reforce as especiais dificuldades desta população em procurar tratamento formal específico,3,5 expondo-a aos riscos de efeitos adversos.
Sendo este um tema ainda pouco conhecido, requerem-se pesquisas qualitativas exploratórias para se compreenderem os significados pessoais e grupais da automedicação com betabloqueadores em fóbicos sociais e pessoas com ansiedade de desempenho. Posteriormente, a prevalência desta prática pode ser pesquisada, avaliando sua relevância para saúde pública.
A discussão sobre a evolução do quadro clínico da paciente fica limitada pela impossibilidade de se avaliar o peso de cada uma das intervenções adotadas (tratamento psicanalítico; suporte psicoterápico durante o atendimento psiquiátrico; tranilcipromina em doses abaixo das doses máximas possíveis e, por fim, a paroxetina).
Referências
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Bruno José Barcellos Fontanella
Laboratório de Pesquisas Clínico-Qualitativas do Departamento de Psicologia Médica e Psiquiatria da Faculdade de Ciências Médicas da Universidade Estadual de Campinas. Campinas, SP, Brasil
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