Doença do refluxo
Dr. Marcelo Averbach é médico gastroenterologista, cirurgião do aparelho digestivo e trabalha no Hospital Sírio-Libanês de São Paulo (SP).
. Vamos entender por que isso
acontece.
Os alimentos mastigados na boca passam pela faringe, pelo esôfago (um tubo que desce pelo tórax na frente da coluna vertebral) e caem no estômago situado no abdômen. Entre o esôfago e o estômago, existe uma válvula que se abre para dar passagem aos alimentos e se fecha imediatamente para impedir que o suco gástrico penetre no esôfago, pois a mucosa que o reveste não está preparada para receber uma substância tão irritante (imagem 1).
Quando existe alguma fraqueza nessa região provocada por alterações funcionais do próprio músculo ou porque o diafragma (músculo que separa o tórax do abdômen) não consegue conter as estruturas que estão abaixo dele, o estômago sobe e forma uma protrusão chamada hérnia de hiato. Nesse caso, um líquido ácido escapa do estômago, atinge o esôfago e pode alcançar outros órgãos dos aparelhos digestivo e respiratório.
A imagem 2 ajuda a entender o percurso do suco gástrico até faringe e a boca, e a irritação que pode provocar nas estruturas da cavidade oral. Como a parte superior do aparelho digestivo está em contato íntimo com o aparelho respiratório (a faringe é separada da laringe pela epiglote), o suco gástrico pode alcançar a glote e penetrar na laringe, traqueia, brônquios e pulmões e provocar problemas graves no organismo.
MECANISMO
Drauzio – Como o suco gástrico consegue manter-se restrito ao estômago?
Marcelo Averbach – É tudo um jogo de pressão. No interior do estômago, ela é maior do que no esôfago, daí a tendência de o conteúdo estomacal subir em direção do esôfago. Isso não acontece porque a natureza lança mão de outros mecanismos de pressão que impedem tal migração. O principal deles é o esfíncter inferior do esôfago que se situa entre o estômago e o esôfago, uma área de alta pressão. Ele se chama esfíncter funcional e funciona como uma verdadeira válvula que não deixa o material do estômago refluir para o esôfago.
Drauzio - Que alteração nesse mecanismo possibilita o refluxo gastroesofágico?
Marcelo Averbach – Presença de refluxo gastroesofágico é sempre sinal que algo errado está acontecendo nessa região do organismo. O indivíduo pode ter hérnia de hiato, isto é, um deslocamento da transição entre o esôfago e o estômago que se projeta para dentro da cavidade torácica, ou outra alteração funcional do mecanismo que possibilita o retorno do suco gástrico.
Existe, porém, o refluxo fisiológico que todos temos um pouquinho de vez em quando. Nesse caso, o líquido que reflui é eliminado naturalmente pelos movimentos do esôfago. É um processo de limpeza chamado clareamento que o esôfago faz em si mesmo quando o ácido estomacal chega até ele.
Drauzio – Nos episódios de refluxo, até onde pode chegar o suco gástrico?
Marcelo Averbach – O refluxo pode chegar até a boca e provocar alterações dentárias e gosto ruim, mas pode também subir pelo esôfago e comprometer a laringe e os pulmões.
SINTOMAS
Drauzio – Qual a relação entre refluxo gastroesofágico e azia?
Marcelo Averbach – Na verdade, azia é um dos inúmeros sintomas que as pessoas com a doença do refluxo apresentam.
Drauzio – Azia é um sintoma fácil de entender. Quando o suco gástrico sobe, queima as paredes do esôfago e aparece o ardor característico da azia. Quais são os outros sintomas?
Marcelo Averbach – A doença do refluxo se manifesta de forma extremamente ampla. São sintomas próprios do refluxo no esôfago a queimação e a dor torácica, uma dor tão intensa que às vezes simula a dor da angina, do infarto ou da isquemia no coração.
Quando atinge a laringe, o refluxo pode provocar inflamação acompanhada de tosse seca.
ALTERAÇÕES NO APARELHO RESPIRATÓRIO
Drauzio – Em geral, as pessoas custam a entender como um problema no estômago pode provocar tosse.
Marcelo Averbach – Eventualmente, pacientes com laringite de refluxo que têm tosse podem ter o esôfago normal, porque o ácido passa sem machucá-lo muito. O único sintoma é mesmo a tosse e por isso eles acabam procurando um otorrinolaringologista ou um pneumologista que reconhecem as alterações sugestivas de refluxo.
Drauzio – Que outras alterações o ácido estomacal pode provocar no aparelho respiratório?
Marcelo Averbach – Se for aspirado, o refluxo gastroesofágico pode ir parar dentro dos pulmões e causar as doenças pulmonares propriamente ditas: pneumonias, bronquites e asma. Muitos pacientes jovens com asma desencadeada pelo refluxo melhoram muito do quadro asmático quando recebem tratamento para o refluxo.
Drauzio – A asma é uma doença autoimune e as mais variadas substâncias funcionam como gatilho das crises. O que leva o médico a desconfiar de que o suco gástrico migrou, entrou pela glote e atingiu o aparelho respiratório?
Marcelo Averbach – Até alguns anos atrás, considerava-se que o refluxo provocava basicamente esofagite de refluxo. Hoje se sabe que ele atua em diversos segmentos. Por isso, ao tratar um paciente com asma ou pneumonias de repetição, o médico precisa levantar a hipótese de a doença do refluxo estar causando alterações fora do aparelho digestivo.
SITUAÇÕES DESFAVORÁVEIS
Drauzio – Em que situações o refluxo é mais frequente?
Marcelo Averbach – Pode-se dizer que os episódios de refluxo são mais frequentes quando a pessoa está deitada. Em pé, a gravidade ajuda a impedir a migração do conteúdo gástrico para o esôfago. Na verdade, a situação ideal para o refluxo é a do indivíduo que, depois de um dia trabalhando, chega em casa cansado, com fome, faz uma refeição volumosa e se deita logo após o jantar.
Drauzio – O ideal seria que ele comesse menos no jantar e respeitasse um intervalo de quantas horas entre o jantar e ir para cama?
Marcelo Averbach – Três horas seria o tempo ideal entre a refeição da noite e o deitar-se. Seria interessante também fracionar a dieta ao longo do dia, ou seja, a pessoa deveria alimentar-se de forma adequada no café da manhã, almoço, lanche da tarde e jantar, evitando assim que ele fosse a principal refeição do dia.
ALTERAÇÕES ANATÔMICAS E FUNCIONAIS
Drauzio – Existem alterações anatômicas ou funcionais que levam ao refluxo?
Marcelo Averbach – A obesidade é um fator de risco importante para o refluxo. Pacientes obesos com pressão abdominal aumentada, que fazem refeições volumosas e se deitam em seguida, estão mais sujeitos a episódios desse tipo e muitos, quando emagrecem, deixam de apresentar o problema.
Roupas apertadas também facilitam o refluxo gastroesofágico por aumentar a pressão intra-abdominal.
DIETA ADEQUADA
Drauzio – Você disse que o refluxo pode estar associado a refeições volumosas ingeridas antes de ir para a cama. Existe algum tipo de alimento que favorece o refluxo?
Marcelo Averbach – Existem alimentos que favorecem e alimentos que provocam o refluxo, porque ajudam a comprometer a mucosa do esôfago e do estômago. Classicamente, é o caso do café, mas também do chá preto e chá mate, que também contêm cafeína, do chocolate, dos alimentos ácidos, molho de tomate, bebidas alcoólicas e bebidas gasosas (o gás promove o aumento da pressão intragástrica).
Drauzio - Qualquer tipo de bebida alcoólica, ou algumas provocam mais refluxo do que outras?
Marcelo Averbach – A rigor, qualquer tipo de bebida alcoólica, mas a reação varia de pessoa para pessoa. Por exemplo, a cerveja que é habitualmente ingerida em volumes maiores e tem gás deveria ser menos tolerada por indivíduos com refluxo. No entanto, há os que se queixam de que o vinho tinto provoca situações de desconforto piores do que a cerveja.
REFLUXO NA INFÂNCIA
Drauzio – Refluxo não aparece apenas nos adultos. Crianças pequenas também têm refluxo.
Marcelo Averbach – Nas crianças pequenas, os tecidos não estão totalmente formados e existe certa fragilidade principalmente na transição entre o estômago e o esôfago. Além disso, e o mais importante, é que a criancinha mama e deita, quer dizer, deixa de ter a seu favor a gravidade.
Felizmente, esse tipo de refluxo acaba sendo resolvido espontaneamente em virtude do desenvolvimento dos tecidos e da mudança da alimentação. No início, o bebê toma só leite; depois são introduzidas papinhas e alimentos sólidos que refluem com menor facilidade.
Por fim, há a alteração do decúbito. A criancinha que passava o dia inteiro deitada, fica sentada e em pé, dá os primeiros passos, o que favorece a boa evolução do quadro de refluxo.
Drauzio – Toda mãe sabe que depois de amamentar deve pôr a criança em pé e bater em suas costinhas para eliminar o ar que ficou preso no estômago. O que mais deve ser recomendado?
Marcelo Averbach – A rigor, nada. No entanto, se a criança tem refluxo que provoca problemas respiratórios ou pneumonias de repetição, a conduta precisa ser mais agressiva e exige orientação médica especializada. Alguns poucos casos, inclusive, requerem tratamento cirúrgico.
DIAGNÓSTICO
Drauzio – Há quadros de refluxo bastante sugestivos. Há outros um pouco mais complicados. Quais são os métodos usados para confirmar o diagnóstico?
Marcelo Averbach – O melhor método é a medida do pH do trato digestivo para medir o grau de acidez do estômago e do esôfago. Essa medida é tomada durante 24 horas por um exame chamado pHmetria.
Habitualmente, não se começa por ele. Começa-se pela endoscopia digestiva alta até porque algumas doenças se manifestam do mesmo modo que o refluxo e a endoscopia alta permite observar se o esôfago está inflamado (esofagite) ou se há uma hérnia de hiato.
Drauzio – Em linhas gerais, como é medido o pH?
Marcelo Averbach – Uma sonda muito fina com vários pequenos sensores é introduzida no nariz do paciente, locada em seu esôfago e faz anotações eletrônicas do que acontece naquele meio. Paralelamente, a pessoa vai registrando tudo o que sentiu ou fez no decorrer do exame. Se teve dor ou azia, sinaliza. Se fez uma refeição ou deitou-se, sinaliza. A composição dos dados obtidos permite verificar a presença de refluxo em determinados momentos.
Todavia é preciso ressaltar que a pHmetria feita em qualquer um de nós vai revelar a ocorrência de refluxo fisiológico sem complicações clínicas maiores.
Drauzio – É muito desagradável esse exame?
Marcelo Averbach – Não é muito desagradável. Os pacientes toleram bem a sonda que é fininha, embora alguns demonstrem certa aversão por fazê-lo.
A pHmetria é um exame ambulatorial, que deixa a pessoa meio fora do circuito, porque fica com a sonda durante 24 horas. Nesse tempo, ela deve agir como está habituada para estimular situações do dia a dia que possam desencadear as crises de refluxo.
TRATAMENTO
Drauzio – Feito o diagnóstico, qual o tratamento indicado para o refluxo?
Marcelo Avebach – O tratamento para refluxo pode ser clínico, endoscópico e cirúrgico. O tratamento clínico inclui a administração de drogas que diminuem a produção de ácido pelo estômago e melhoram a motilidade do esôfago. Concomitantemente, o paciente é orientado a perder peso, a evitar alimentos e bebidas que pioram o refluxo, a não se deitar logo após as refeições e a fracionar a dieta. Ele é estimulado também a praticar exercícios físicos.
Tais recomendações o paciente com refluxo deve seguir durante a vida toda e a grande maioria responde bem e se beneficia com esse tipo de tratamento.
Drauzio – A orientação dietética é complementar ao tratamento medicamentoso?
Marcelo Averbach – É complementar. Na verdade, o indivíduo obeso que consegue emagrecer pode deixar de ter refluxo e levar vida normal.
Drauzio - Qual é o objetivo do tratamento cirúrgico?
Marcelo Averbach – A proposta do tratamento cirúrgico é confeccionar uma válvula. Quando se fala em válvula, logo se pensa num dispositivo colocado dentro do corpo para impedir o refluxo. Não é isso. Trata-se de uma dobra feita ao redor do esôfago para que o estômago, quando cheio, comprima a parte terminal do esôfago e impeça o refluxo. Nos casos de hérnia, sutura-se o hiato esofágico para que desapareça o espaço por onde passa o refluxo, e isso põe fim no problema.
A cirurgia pode ser feita de maneira convencional, ou seja, abrindo a barriga, ou por via laparoscópica. Neste caso, através de dois furinhos, introduz-se uma microcâmara para orientar o procedimento.
Drauzio – Na verdade, o objetivo da cirurgia é estrangular a passagem do esôfago para o estômago a fim de impedir que o líquido estomacal reflua…
Marcelo Averbach – Não sei se a palavra é estrangular. O que se pretende é deixar a passagem o mais normal possível, evitando que o estômago permaneça fora de posição e, ao mesmo tempo, construir uma válvula para que o refluxo não ocorra.
Drauzio – Quais os casos em que a cirurgia é a melhor indicação?
Marcelo Averbach – São candidatos à cirurgia pacientes com refluxo que não querem ser tratados clinicamente. Às vezes, estão respondendo bem ao tratamento clínico, mas não estão dispostos a continuar respeitando as limitações que ele impõe. Querem deitar-se logo depois do jantar, comer os alimentos de que gostam, embora agravem os episódios de refluxo, e não querem tomar remédios diariamente. São candidatos também os pacientes que não respondem bem a ao tratamento clínico, apesar de seguirem todas as recomendações médicas.
Não se pode esquecer, porém, de que o ácido subindo para o esôfago pode provocar esofagite de vários graus de intensidade. Quando muito grave, as células do revestimento do esôfago podem ser substituídas por outras com alteração na forma e no comportamento, dando origem a um tumor maligno. Apesar de poderem ser tratados clinicamente, esses pacientes são sérios candidatos à cirurgia para evitar que o ácido continue traumatizando o revestimento do esôfago.
Gostaria de enfatizar que de forma alguma indicamos cirurgia para todos os pacientes com refluxo gastroesofágico, mesmo porque sabemos que 7% da população (um número bastante expressivo) têm refluxo e sentem azia, queimação e o gosto do suco gástrico na boca. Na maior parte das vezes, porém, eles se automedicam, pois sabem que aquela pastilhinha branca alivia os sintomas.
Drauzio – Você poderia descrever as cirurgias endoscópicas?
Marcelo Averbach – Os procedimentos por endoscopia são indicados para os pacientes com refluxo que não tenham hérnia de hiato muito grande.
Através da própria endoscopia, é feita uma pequena sutura que dificulta a migração do suco gástrico para o esôfago. Esse método terapêutico permite também a colocação de alguns implantes especiais na transição entre o estômago e o esôfago. Como são procedimentos novos, não é grande o seguimento dos pacientes submetidos a esse tipo de tratamento, que parece ser boa opção para casos selecionados.
Drauzio – E a cirurgia laparoscópica?
Marcelo Averbach – O resultado da laparoscopia é exatamente o mesmo da cirurgia convencional: fecha-se a abertura por onde o esôfago passa para o abdômen e confecciona-se uma válvula, porém a agressão cirúrgica é muito menor. O paciente é internado num dia para o procedimento laparoscópico e, no máximo dois dias mais tarde, recebe alta e pode alimentar-se normalmente.
A laparoscopia é uma técnica cirúrgica minimamente invasiva e tem-se mostrado efetiva no controle do refluxo gastroesofágico.
Os alimentos mastigados na boca passam pela faringe, pelo esôfago (um tubo que desce pelo tórax na frente da coluna vertebral) e caem no estômago situado no abdômen. Entre o esôfago e o estômago, existe uma válvula que se abre para dar passagem aos alimentos e se fecha imediatamente para impedir que o suco gástrico penetre no esôfago, pois a mucosa que o reveste não está preparada para receber uma substância tão irritante (imagem 1).
Quando existe alguma fraqueza nessa região provocada por alterações funcionais do próprio músculo ou porque o diafragma (músculo que separa o tórax do abdômen) não consegue conter as estruturas que estão abaixo dele, o estômago sobe e forma uma protrusão chamada hérnia de hiato. Nesse caso, um líquido ácido escapa do estômago, atinge o esôfago e pode alcançar outros órgãos dos aparelhos digestivo e respiratório.
A imagem 2 ajuda a entender o percurso do suco gástrico até faringe e a boca, e a irritação que pode provocar nas estruturas da cavidade oral. Como a parte superior do aparelho digestivo está em contato íntimo com o aparelho respiratório (a faringe é separada da laringe pela epiglote), o suco gástrico pode alcançar a glote e penetrar na laringe, traqueia, brônquios e pulmões e provocar problemas graves no organismo.
MECANISMO
Drauzio – Como o suco gástrico consegue manter-se restrito ao estômago?
Marcelo Averbach – É tudo um jogo de pressão. No interior do estômago, ela é maior do que no esôfago, daí a tendência de o conteúdo estomacal subir em direção do esôfago. Isso não acontece porque a natureza lança mão de outros mecanismos de pressão que impedem tal migração. O principal deles é o esfíncter inferior do esôfago que se situa entre o estômago e o esôfago, uma área de alta pressão. Ele se chama esfíncter funcional e funciona como uma verdadeira válvula que não deixa o material do estômago refluir para o esôfago.
Drauzio - Que alteração nesse mecanismo possibilita o refluxo gastroesofágico?
Marcelo Averbach – Presença de refluxo gastroesofágico é sempre sinal que algo errado está acontecendo nessa região do organismo. O indivíduo pode ter hérnia de hiato, isto é, um deslocamento da transição entre o esôfago e o estômago que se projeta para dentro da cavidade torácica, ou outra alteração funcional do mecanismo que possibilita o retorno do suco gástrico.
Existe, porém, o refluxo fisiológico que todos temos um pouquinho de vez em quando. Nesse caso, o líquido que reflui é eliminado naturalmente pelos movimentos do esôfago. É um processo de limpeza chamado clareamento que o esôfago faz em si mesmo quando o ácido estomacal chega até ele.
Drauzio – Nos episódios de refluxo, até onde pode chegar o suco gástrico?
Marcelo Averbach – O refluxo pode chegar até a boca e provocar alterações dentárias e gosto ruim, mas pode também subir pelo esôfago e comprometer a laringe e os pulmões.
SINTOMAS
Drauzio – Qual a relação entre refluxo gastroesofágico e azia?
Marcelo Averbach – Na verdade, azia é um dos inúmeros sintomas que as pessoas com a doença do refluxo apresentam.
Drauzio – Azia é um sintoma fácil de entender. Quando o suco gástrico sobe, queima as paredes do esôfago e aparece o ardor característico da azia. Quais são os outros sintomas?
Marcelo Averbach – A doença do refluxo se manifesta de forma extremamente ampla. São sintomas próprios do refluxo no esôfago a queimação e a dor torácica, uma dor tão intensa que às vezes simula a dor da angina, do infarto ou da isquemia no coração.
Quando atinge a laringe, o refluxo pode provocar inflamação acompanhada de tosse seca.
ALTERAÇÕES NO APARELHO RESPIRATÓRIO
Drauzio – Em geral, as pessoas custam a entender como um problema no estômago pode provocar tosse.
Marcelo Averbach – Eventualmente, pacientes com laringite de refluxo que têm tosse podem ter o esôfago normal, porque o ácido passa sem machucá-lo muito. O único sintoma é mesmo a tosse e por isso eles acabam procurando um otorrinolaringologista ou um pneumologista que reconhecem as alterações sugestivas de refluxo.
Drauzio – Que outras alterações o ácido estomacal pode provocar no aparelho respiratório?
Marcelo Averbach – Se for aspirado, o refluxo gastroesofágico pode ir parar dentro dos pulmões e causar as doenças pulmonares propriamente ditas: pneumonias, bronquites e asma. Muitos pacientes jovens com asma desencadeada pelo refluxo melhoram muito do quadro asmático quando recebem tratamento para o refluxo.
Drauzio – A asma é uma doença autoimune e as mais variadas substâncias funcionam como gatilho das crises. O que leva o médico a desconfiar de que o suco gástrico migrou, entrou pela glote e atingiu o aparelho respiratório?
Marcelo Averbach – Até alguns anos atrás, considerava-se que o refluxo provocava basicamente esofagite de refluxo. Hoje se sabe que ele atua em diversos segmentos. Por isso, ao tratar um paciente com asma ou pneumonias de repetição, o médico precisa levantar a hipótese de a doença do refluxo estar causando alterações fora do aparelho digestivo.
SITUAÇÕES DESFAVORÁVEIS
Drauzio – Em que situações o refluxo é mais frequente?
Marcelo Averbach – Pode-se dizer que os episódios de refluxo são mais frequentes quando a pessoa está deitada. Em pé, a gravidade ajuda a impedir a migração do conteúdo gástrico para o esôfago. Na verdade, a situação ideal para o refluxo é a do indivíduo que, depois de um dia trabalhando, chega em casa cansado, com fome, faz uma refeição volumosa e se deita logo após o jantar.
Drauzio – O ideal seria que ele comesse menos no jantar e respeitasse um intervalo de quantas horas entre o jantar e ir para cama?
Marcelo Averbach – Três horas seria o tempo ideal entre a refeição da noite e o deitar-se. Seria interessante também fracionar a dieta ao longo do dia, ou seja, a pessoa deveria alimentar-se de forma adequada no café da manhã, almoço, lanche da tarde e jantar, evitando assim que ele fosse a principal refeição do dia.
ALTERAÇÕES ANATÔMICAS E FUNCIONAIS
Drauzio – Existem alterações anatômicas ou funcionais que levam ao refluxo?
Marcelo Averbach – A obesidade é um fator de risco importante para o refluxo. Pacientes obesos com pressão abdominal aumentada, que fazem refeições volumosas e se deitam em seguida, estão mais sujeitos a episódios desse tipo e muitos, quando emagrecem, deixam de apresentar o problema.
Roupas apertadas também facilitam o refluxo gastroesofágico por aumentar a pressão intra-abdominal.
DIETA ADEQUADA
Drauzio – Você disse que o refluxo pode estar associado a refeições volumosas ingeridas antes de ir para a cama. Existe algum tipo de alimento que favorece o refluxo?
Marcelo Averbach – Existem alimentos que favorecem e alimentos que provocam o refluxo, porque ajudam a comprometer a mucosa do esôfago e do estômago. Classicamente, é o caso do café, mas também do chá preto e chá mate, que também contêm cafeína, do chocolate, dos alimentos ácidos, molho de tomate, bebidas alcoólicas e bebidas gasosas (o gás promove o aumento da pressão intragástrica).
Drauzio - Qualquer tipo de bebida alcoólica, ou algumas provocam mais refluxo do que outras?
Marcelo Averbach – A rigor, qualquer tipo de bebida alcoólica, mas a reação varia de pessoa para pessoa. Por exemplo, a cerveja que é habitualmente ingerida em volumes maiores e tem gás deveria ser menos tolerada por indivíduos com refluxo. No entanto, há os que se queixam de que o vinho tinto provoca situações de desconforto piores do que a cerveja.
REFLUXO NA INFÂNCIA
Drauzio – Refluxo não aparece apenas nos adultos. Crianças pequenas também têm refluxo.
Marcelo Averbach – Nas crianças pequenas, os tecidos não estão totalmente formados e existe certa fragilidade principalmente na transição entre o estômago e o esôfago. Além disso, e o mais importante, é que a criancinha mama e deita, quer dizer, deixa de ter a seu favor a gravidade.
Felizmente, esse tipo de refluxo acaba sendo resolvido espontaneamente em virtude do desenvolvimento dos tecidos e da mudança da alimentação. No início, o bebê toma só leite; depois são introduzidas papinhas e alimentos sólidos que refluem com menor facilidade.
Por fim, há a alteração do decúbito. A criancinha que passava o dia inteiro deitada, fica sentada e em pé, dá os primeiros passos, o que favorece a boa evolução do quadro de refluxo.
Drauzio – Toda mãe sabe que depois de amamentar deve pôr a criança em pé e bater em suas costinhas para eliminar o ar que ficou preso no estômago. O que mais deve ser recomendado?
Marcelo Averbach – A rigor, nada. No entanto, se a criança tem refluxo que provoca problemas respiratórios ou pneumonias de repetição, a conduta precisa ser mais agressiva e exige orientação médica especializada. Alguns poucos casos, inclusive, requerem tratamento cirúrgico.
DIAGNÓSTICO
Drauzio – Há quadros de refluxo bastante sugestivos. Há outros um pouco mais complicados. Quais são os métodos usados para confirmar o diagnóstico?
Marcelo Averbach – O melhor método é a medida do pH do trato digestivo para medir o grau de acidez do estômago e do esôfago. Essa medida é tomada durante 24 horas por um exame chamado pHmetria.
Habitualmente, não se começa por ele. Começa-se pela endoscopia digestiva alta até porque algumas doenças se manifestam do mesmo modo que o refluxo e a endoscopia alta permite observar se o esôfago está inflamado (esofagite) ou se há uma hérnia de hiato.
Drauzio – Em linhas gerais, como é medido o pH?
Marcelo Averbach – Uma sonda muito fina com vários pequenos sensores é introduzida no nariz do paciente, locada em seu esôfago e faz anotações eletrônicas do que acontece naquele meio. Paralelamente, a pessoa vai registrando tudo o que sentiu ou fez no decorrer do exame. Se teve dor ou azia, sinaliza. Se fez uma refeição ou deitou-se, sinaliza. A composição dos dados obtidos permite verificar a presença de refluxo em determinados momentos.
Todavia é preciso ressaltar que a pHmetria feita em qualquer um de nós vai revelar a ocorrência de refluxo fisiológico sem complicações clínicas maiores.
Drauzio – É muito desagradável esse exame?
Marcelo Averbach – Não é muito desagradável. Os pacientes toleram bem a sonda que é fininha, embora alguns demonstrem certa aversão por fazê-lo.
A pHmetria é um exame ambulatorial, que deixa a pessoa meio fora do circuito, porque fica com a sonda durante 24 horas. Nesse tempo, ela deve agir como está habituada para estimular situações do dia a dia que possam desencadear as crises de refluxo.
TRATAMENTO
Drauzio – Feito o diagnóstico, qual o tratamento indicado para o refluxo?
Marcelo Avebach – O tratamento para refluxo pode ser clínico, endoscópico e cirúrgico. O tratamento clínico inclui a administração de drogas que diminuem a produção de ácido pelo estômago e melhoram a motilidade do esôfago. Concomitantemente, o paciente é orientado a perder peso, a evitar alimentos e bebidas que pioram o refluxo, a não se deitar logo após as refeições e a fracionar a dieta. Ele é estimulado também a praticar exercícios físicos.
Tais recomendações o paciente com refluxo deve seguir durante a vida toda e a grande maioria responde bem e se beneficia com esse tipo de tratamento.
Drauzio – A orientação dietética é complementar ao tratamento medicamentoso?
Marcelo Averbach – É complementar. Na verdade, o indivíduo obeso que consegue emagrecer pode deixar de ter refluxo e levar vida normal.
Drauzio - Qual é o objetivo do tratamento cirúrgico?
Marcelo Averbach – A proposta do tratamento cirúrgico é confeccionar uma válvula. Quando se fala em válvula, logo se pensa num dispositivo colocado dentro do corpo para impedir o refluxo. Não é isso. Trata-se de uma dobra feita ao redor do esôfago para que o estômago, quando cheio, comprima a parte terminal do esôfago e impeça o refluxo. Nos casos de hérnia, sutura-se o hiato esofágico para que desapareça o espaço por onde passa o refluxo, e isso põe fim no problema.
A cirurgia pode ser feita de maneira convencional, ou seja, abrindo a barriga, ou por via laparoscópica. Neste caso, através de dois furinhos, introduz-se uma microcâmara para orientar o procedimento.
Drauzio – Na verdade, o objetivo da cirurgia é estrangular a passagem do esôfago para o estômago a fim de impedir que o líquido estomacal reflua…
Marcelo Averbach – Não sei se a palavra é estrangular. O que se pretende é deixar a passagem o mais normal possível, evitando que o estômago permaneça fora de posição e, ao mesmo tempo, construir uma válvula para que o refluxo não ocorra.
Drauzio – Quais os casos em que a cirurgia é a melhor indicação?
Marcelo Averbach – São candidatos à cirurgia pacientes com refluxo que não querem ser tratados clinicamente. Às vezes, estão respondendo bem ao tratamento clínico, mas não estão dispostos a continuar respeitando as limitações que ele impõe. Querem deitar-se logo depois do jantar, comer os alimentos de que gostam, embora agravem os episódios de refluxo, e não querem tomar remédios diariamente. São candidatos também os pacientes que não respondem bem a ao tratamento clínico, apesar de seguirem todas as recomendações médicas.
Não se pode esquecer, porém, de que o ácido subindo para o esôfago pode provocar esofagite de vários graus de intensidade. Quando muito grave, as células do revestimento do esôfago podem ser substituídas por outras com alteração na forma e no comportamento, dando origem a um tumor maligno. Apesar de poderem ser tratados clinicamente, esses pacientes são sérios candidatos à cirurgia para evitar que o ácido continue traumatizando o revestimento do esôfago.
Gostaria de enfatizar que de forma alguma indicamos cirurgia para todos os pacientes com refluxo gastroesofágico, mesmo porque sabemos que 7% da população (um número bastante expressivo) têm refluxo e sentem azia, queimação e o gosto do suco gástrico na boca. Na maior parte das vezes, porém, eles se automedicam, pois sabem que aquela pastilhinha branca alivia os sintomas.
Drauzio – Você poderia descrever as cirurgias endoscópicas?
Marcelo Averbach – Os procedimentos por endoscopia são indicados para os pacientes com refluxo que não tenham hérnia de hiato muito grande.
Através da própria endoscopia, é feita uma pequena sutura que dificulta a migração do suco gástrico para o esôfago. Esse método terapêutico permite também a colocação de alguns implantes especiais na transição entre o estômago e o esôfago. Como são procedimentos novos, não é grande o seguimento dos pacientes submetidos a esse tipo de tratamento, que parece ser boa opção para casos selecionados.
Drauzio – E a cirurgia laparoscópica?
Marcelo Averbach – O resultado da laparoscopia é exatamente o mesmo da cirurgia convencional: fecha-se a abertura por onde o esôfago passa para o abdômen e confecciona-se uma válvula, porém a agressão cirúrgica é muito menor. O paciente é internado num dia para o procedimento laparoscópico e, no máximo dois dias mais tarde, recebe alta e pode alimentar-se normalmente.
A laparoscopia é uma técnica cirúrgica minimamente invasiva e tem-se mostrado efetiva no controle do refluxo gastroesofágico.
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