Um eventual candidato Joaquim Barbosa corre o risco de se tornar vítima do racismo à brasileira?
Na entrevista a Miriam Leitão publicada ontem no Globo, Joaquim Barbosa usou a questão racial para definir seu futuro político.
Tanto para falar de uma eventual candidatura presidencial, como
para explicar reportagens recentes a seu respeito, o presidente do STF
colocou o tema no centro das explicações e argumentos.
Não é a primeira vez que Joaquim age dessa forma. Num de seus
primeiros conflitos com jornalistas, assim que se tornou presidente do
STF, ele reagiu com truculência quando um repórter – negro – perguntou
se ele estaria mais tranquilo depois de ter sido confirmado no mais alto
posto da mais alta corte de Justiça do país.
Referindo-se ao repórter como “brother”, o ministro o acusou de
estar usando estereótipos racistas ao fazer a pergunta. Referindo-se a
outra jornalista que faz reportagens sobre o STF, definiu-a como
branquela.
Em sua entrevista, Miriam Leitão perguntou: “O Brasil está preparado para um “presidente da República negro?"
“Não”, disse Joaquim. E prosseguiu: “Porque acho que ainda há
bolsões de intolerância muito fortes e não declarados no Brasil. No
momento em que um candidato negro se apresente, esses bolsões se
insurgirão de maneira violenta contra esse candidato.”
Referindo-se a reportagens recentes sobre seu filho – e também
sobre seu apartamento em Miami –, o presidente do Supremo afirmou: “Já
há sinais disso na mídia. As investidas da 'Folha de S. Paulo' contra
mim já são um sinal. A 'Folha de S.Paulo' expôs meu filho, numa
entrevista de emprego. No domingo passado, houve uma violação brutal da
minha privacidade. O jornal se achou no direito de expor a compra de um
imóvel modesto nos Estados Unidos. Tirei dinheiro da minha conta
bancária, enviei o dinheiro por meios legais, previstos na legislação,
declarei a compra no Imposto de Renda. Não vejo a mesma exposição da
vida privada de pessoas altamente suspeitas da prática de crime.”
Reforçando a ideia de que sofre uma forma de perseguição, Joaquim Barbosa analisou:
“Há milhares de pessoas públicas no Brasil. No entanto, os jornais
não saem por aí expondo a vida privada dessas pessoas públicas. Pegue os
últimos dez presidentes do Supremo Tribunal Federal e compare.”
Em outro parágrafo, o presidente do STF criticou a atuação dos
jornais, com um raciocínio que, pronunciado por personalidades ligadas
ao governo, dificilmente deixaria de ser apontado aflitivamente como
ameaça à liberdade de imprensa:
“É um erro achar que um jornal pode tudo. Os jornais e jornalistas
têm limites. São esses limites que vêm sendo ultrapassados por força
desse temor de que eu eventualmente me torne candidato.”
Joaquim também ameaçou:
“Nos últimos meses, venho sendo objeto de ataques também por parte
de uma mídia subterrânea, inclusive blogs anônimos. Só faço um alerta: a
Constituição brasileira proíbe o anonimato, eu teria meios de, no
momento devido, através do Judiciário, identificar quem são essas
pessoas e quem as financia. Eu me permito o direito de aguardar o
momento oportuno para desmascarar esses bandidos.”
Há muito a falar sobre essa entrevista.
Eu acho que, do ponto de vista dos valores democráticos, a ideia
(“O Brasil está preparado” para Joaquim?”) contém um viés estranho.
É como se Joaquim Barbosa, até hoje um eventual candidato a
presidente, numa lista com pelo menos quatro nomes fortes entre os
oposicionistas, não fosse um concorrente igual a todos os outros – mas a
encarnação de um destino necessário para o bem de um país que, no
entanto, estaria relutando em reconhecer suas prerrogativas.
Numa democracia, não é um país que pode ou não estar preparado para
um presidente. Antes, é um candidato a presidente que deve se mostrar
preparado para governá-lo. Isso implica, como primeiro passo, ter
preparo para vencer eleições, o que só é possível através do debate
político. Sem esse debate, não estamos falando de eleição – mas de
coroação.
Há quase dois séculos, em 1823, Pedro I chegou a dizer que só iria
defender a Constituição “se ela fosse digna do Brasil e digna de mim.”
Lula, o mais popular político brasileiro da história, já foi
envolvido em visão semelhante. Durante três campanhas presidenciais
(1989, 1994 e 1998), vários dirigentes do PT adoravam dizer que Luiz
Inácio Lula da Silva não conseguia eleger-se porque havia preconceito
contra um trabalhador de fábrica, sem diploma universitário nem grande
educação formal.
Como é natural em sociedades capitalistas, a questão de classe pode
ser omitida, disfarçada, distorcida – mas é sempre fundamental.
Lula enfrentava – e enfrenta até hoje, apesar de tudo – um preconceito pesado em função de sua origem.
Era o eleitor que não estava preparado? Ou era o candidato?
A pergunta deixou de fazer sentido quando Lula deixou de se
apresentar como predestinado (“trabalhador vota em trabalhador”, dizia
na primeira campanha) e conseguiu oferecer uma proposta política
abrangente, coerente com sua biografia e suas relações com os
trabalhadores, capaz de falar aos interesses do conjunto da sociedade,
em especial dos brasileiros mais humildes. Foi assim que se tornou um
candidato imbatível, com três vitórias presidenciais consecutivas no
currículo.
A pergunta de fundo é outra.
Um eventual candidato Joaquim corre o risco de se tornar vítima do racismo à brasileira?
Minha resposta é depende. No mundo da cultura moderna, o
preconceito é uma sobrevivência real, mesmo em declínio. Perde
funcionalidade, embora ajude a manter hierarquias e privilégios.
Em função disso pode ser reconstruído, enfraquecido, fortalecido ou
combatido ao sabor das circunstâncias e conveniências de cada momento, a
partir de opções culturais, políticas e históricas aquele universo que
se chama indústria cultural – onde os jornais, revistas e TV ocupam um
lugar central.
Até novelas podem servir para debater questões dessa natureza, nós
sabemos. Atitudes preconceituosas podem ser estimuladas com maior ou
menor sutileza, em determinado momento e tratadas de forma crítica, como
estigma, em outro.
A lendária “falta de preparo” de Lula para governar o país foi uma
observação permanente de seus adversários – e da maioria dos meios de
comunicação -- antes e depois da vitória de 2002. A tese cumpria a
função política de criar uma rejeição acima de qualquer análise
racional. Nem sei se todos observadores acreditavam naquilo que diziam e
escreviam. Suas palavras expressavam a visão política de quem
considerava que as ideias que Lula trazia na bagagem não eram
convenientes a seus interesses.
A partir deste critério é preciso reconhecer, para além de todos os
méritos e talentos individuais, que Joaquim Barbosa só tornou-se uma
personalidade popular, a ponto de ser reconhecido em pesquisas
eleitorais, porque foi endeusado pelos meios de comunicação durante o
julgamento do mensalão. Não quero julgar cada uma de suas sentenças ou
acusações. Mas fatos são fatos.
Chega a ser preocupante saber que Joaquim não está satisfeito com o
tratamento que recebe dos meios de comunicação. Fica até difícil
imaginar até onde vai seu palmômetro.
Em 40 anos de jornalismo, nunca vi aplauso igual desde que Joaquim
aceitou a denuncia contra os réus do mensalão. Em 2012, durante o
julgamento, foram quatro meses consecutivos de aplausos, elogios,
imagens dramáticas e reportagens favoráveis. Revistas competiam para ver
quem fazia a comparação mais favorável e produzia o editorial mais
elogioso. Jornalistas tarimbados e jornais de prestígio renunciaram a
qualquer espírito crítico para fazer uma cobertura unilateral e
tendenciosa, contra os réus e contra os argumentos da defesa.
Ainda agora, quando os acórdãos trouxeram supressões e alterações
que chamam a atenção de todo leitor mais atento, não vejo quem ouse
discutir – com seriedade – os argumentos que questionam a consistência
de várias decisões.
Em agosto, quando o julgamento deve ser retomado, os meios de
comunicação irão cobrar de Joaquim aquilo que ele já deixou claro que
pretende oferecer: penas duríssimas, condenações longas, prisões, muitas
prisões, e mais prisões, e revisões magras – se houverem.
Não vejo divergências nem discordâncias. O jogo está definido.
Com ênfase e convicção, espera-se que Joaquim faça aquilo que lhe pedem e será bem tratado.
O jogo é político. Interessa, a partir de agosto, reconstruir o
ambiente de espetáculo do segundo semestre de 2012, preparando a
sucessão presidencial, em 2014.
Com a clareza que mestres de sua estatura podem exibir, o professor
Umberto Eco, que aprendi a ler na rebeldia de minha pós-adolescência, e
tive a honra de contratar para ser colunista da Época quando era
diretor de redação, acaba de publicar um artigo onde diz que “nos dias
de hoje, um país pertence a quem controla os meios de comunicação.” (O
titulo do artigo, curiosamente, é: “Por uma guerrilha da semiótica”).
Se houver interesse numa candidatura presidencial de Joaquim
Barbosa, decisão que envolve diversas considerações de ordem política, o
presidente do STF será autorizado a mobilizar o eleitorado negro para
tentar dar votos à oposição. Basta conversar com esses cidadãos para
encontrar, em todos eles, uma admiração real pela posição que Joaquim
Barbosa ocupa. A carta racial terá, neste caso, grande utilidade
eleitoral, não tenham dúvida. Joaquim poderá falar a uma parcela imensa
de brasileiros que recebe um tratamento discriminatório desde a abolição
da escravatura.
Será um debate riquíssimo, quando se recorda que, em nome de sua
herança, Dilma Rousseff terá inúmeras realizações a apresentar,
inclusive um programa de cotas que possíveis aliados de Joaquim
combateram de todas as formas, inclusive com recursos ao Supremo e
intelectuais recrutados especialmente para o mesmo fim.
Inventora da falsa doutrina da “democracia racial,” a cúpula da
sociedade brasileira saberá esconder o próprio racismo se isso for
conveniente para seus interesses.
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