Como a bilionária Arena Corinthians transformou um bairro esquecido da periferia de São Paulo, abriu perspectivas para milhares de moradores e colocou a zona leste da cidade no centro do mundo
Amauri Segalla
É terça-feira à
tarde e o carro da reportagem está rodeando o Itaquerão, o estádio que
vai receber a primeira partida da Copa do Mundo. A uns 500 metros da
entrada principal, numa rua ladeada por prédios coloridos do conjunto
habitacional Cohab – edifícios verdes, amarelos, laranjas e vermelhos –,
uma gritaria chama a atenção. O carro para diante de um boteco
enfeitado com bandeiras do Brasil, e dá para ver o nome Bar da Rose ao
lado da televisão. No aparelho de LCD passa um daqueles modorrentos
amistosos pré-Copa e alguém manda aumentar o som. Em pé, com a mão no
peito, pelo menos 20 sujeitos cantam bem alto o “Hino Nacional”, mais
por farra do que por patriotismo. Enquanto deixam a camaradagem
fruir, movida por incontáveis litros de cerveja, o assunto não poderia
ser outro: o estádio construído no quintal da casa deles. “Isso aqui
ficou uma maravilha”, diz o “autônomo” (foi ele mesmo quem fez o gesto
clássico de aspas) Luciano Silva Costa, 35 anos, enquanto ergue os
óculos escuros para dar uma piscadinha. “Agora nóis é tudo playboy.”
Só quem nasceu e cresceu na zona leste de
São Paulo sabe como esse pedaço da capital foi, desde sempre, o túmulo
do progresso da cidade. A região foi a última a ter shopping center. Nos
anos 80, quando abriram um McDonald’s no Tatuapé, a criançada até fez
festa. Na mesma época chegaram as primeiras concessionárias de marcas
bacanas de carro, o primeiro hospital decente, a primeira balada com
shows ao vivo de bandas legais. A Radial Leste, a avenida que faz a
conexão com o centro, até hoje é um inferno com 30 quilômetros de
congestionamentos diários. O rio Aricanduva, que corta bairros populosos
como Penha e Vila Carrão, inundou e destruiu casas e famílias durante
30 anos e só recentemente, com os piscinões, saciou sua sede. Só quem
nasceu e cresceu na zona leste sabe que ela é a única região da cidade
que apelida seus moradores. Quem nasce e cresce na zona leste é chamado
pelos outros de “ZL”, como se isso fosse ofensivo. Não existe “ZN”, “ZO”
ou “ZS”. Nesse aspecto, os moradores da Zona leste sempre estiveram à
frente dos outros, que jamais possuíram uma identidade própria.
OPOSTOS
O campo de terra Negritude fica atrás do bilionário estádio do Corinthians,
a não mais de um quilômetro de distância
O campo de terra Negritude fica atrás do bilionário estádio do Corinthians,
a não mais de um quilômetro de distância
A Arena Corinthians foi a vingança
definitiva dos moradores da zona leste. No próximo dia 12 de junho,
quando Brasil e Croácia entrarem em campo, 1,5 bilhão de pessoas do
mundo inteiro terão seus olhos voltados para Itaquera, o bairro de 523
mil habitantes escolhido para a construção do estádio. “A gente ficou
orgulhoso, mas o que conta mesmo é que a vida vai melhorar”, diz o
técnico de raio X Alexandre Alves, um são-paulino de 30 anos. Para ele, o
Mundial será uma benção. “O pessoal da Ambev pagou R$ 25 mil para a
gente autorizar a pintura do prédio.” Alexandre vive em um dos edifícios
da Cohab a poucos metros da entrada do Itaquerão e que foram escolhidos
pela fabricante de cerveja para fazer desenhos alusivos à festa do
futebol. Segundo ele, os moradores ainda não decidiram se vão dividir o
dinheiro ou se farão melhorias na construção.
Na abertura da Copa, 1,5 bilhão de pessoas vão voltar
seus olhos para um bairro negligenciado pelos governos
seus olhos para um bairro negligenciado pelos governos
Se fosse preciso escolher uma única imagem
como símbolo máximo de Itaquera, essa imagem seria a de um prédio da
Cohab. A prefeitura estima que 40 mil pessoas vivam nos mais de 500
edifícios de cinco andares, sem elevador e com área média de 50 metros
quadrados, que constituem o conjunto criado na década de 60 sob o nome
de Companhia Metropolitana de Habitação de São Paulo. Para quem vive nas
zonas nobres da cidade, Cohab é sinônimo de moradia precária. Basta dar
uma olhada mais atenta nas construções que ficam no entorno do
Itaquerão para descobrir que isso não corresponde exatamente à
realidade. Se você tem uma mochila pesada nas costas, não é fácil subir,
de escada, cinco andares, mas alguns prédios oferecem certa
infraestrutura, como quadra de futebol e gramado para a molecada
brincar. “Em 2009, passei mais de um ano procurando apartamento para
comprar em São Paulo, e com os R$ 90 mil que tinha só consegui vir para a
Cohab”, diz a enfermeira baiana Patrícia Martins Silva.
FARTURA
Alexandre Alves, diante de seu prédio (com o número 58), e Rosilene Cabral,
dona do Bar da Rose: ele ganhou dinheiro para autorizar a
pintura e ela vai aumentar o preço de seus produtos
Alexandre Alves, diante de seu prédio (com o número 58), e Rosilene Cabral,
dona do Bar da Rose: ele ganhou dinheiro para autorizar a
pintura e ela vai aumentar o preço de seus produtos
Patrícia nasceu na Chapada Diamantina, um
paraíso ecológico na Bahia, mas veio para São Paulo estudar. Quando
fechou negócio, não tinha a menor ideia de que a Arena Corinthians seria
erguida diante da janela de sua sala. O apartamento dela, de dois
dormitórios e 58 metros quadrados, aconchega bem duas pessoas (Patrícia
vive ali com a filha pré-adolescente), tem tevê de plasma e aparelho de
som de qualidade. Graças à decisão dos organizadores da Copa, ela
melhorou de vida. “Há alguns dias venderam um apartamento igual ao meu,
aqui ao lado, por R$ 200 mil.” Não é preciso muito esforço para
entender o milagre da multiplicação do patrimônio. “O Itaquerão fez
minha casa valer o dobro.”
Enquanto vê o Brasil fazer uma partida
morna contra o Panamá, a turma reunida no Bar da Rose tem histórias
parecidas para contar. Todos dizem que, de uma forma ou de outra,
lucraram e lucram com o estádio. No domingo 1º, o técnico de raio X
Alexandre Alves, o mesmo que faturou um dinheiro com a pintura
patrocinada pela Ambev, saía de casa quando um carro cheio de turistas
estacionou diante de seu prédio. “Eles olharam para mim e perguntaram
quanto era”, diz Alexandre. “Não entendi e os caras falaram alguma coisa
sobre o preço para estacionar.” Maroto, respondeu que custava R$ 20.
“Deveria ter falado R$ 100, porque os bacanas iam pagar.”
Dona do Bar da Rose, Rosilene Cabral, 51
anos, não tem dado conta do número de pessoas, inclusive estrangeiros,
que aparecem em seu boteco depois de visitar a Arena Corinthians. Ela
faz um caldo de feijão caprichado e cobra atualmente R$ 6,50 por ele.
“Na semana que vem, durante a Copa, acho que vou cobrar uns R$ 10.” Seu
bar fica na zona de exclusão definida pela Fifa, mas ela até agora não
tem ideia se poderá ou não abri-lo durante o Mundial.
TRANSFORMAÇÃO
As centenas de Cohabs em Itaquera e o muro na Radial Leste grafitado
por artistas plásticos: pressa para deixar o bairro bonito para a Copa
As centenas de Cohabs em Itaquera e o muro na Radial Leste grafitado
por artistas plásticos: pressa para deixar o bairro bonito para a Copa
O Itaquerão não terá impacto positivo
apenas para um número pequeno de moradores. As obras nos arredores do
estádio, inauguradas com atraso e que na semana passada ainda estavam
passando por ajustes, devem dar maior fluidez ao caótico trânsito da
região. Um trecho da Radial Leste foi duplicado, viadutos e túneis foram
construídos. “Antes, eu levava 40 minutos para sair de carro da minha
casa e fazer o retorno para a Radial no sentido centro”, diz o motorista
de ônibus Paulo César Leite. “Agora, faço o mesmo percurso em dez
minutos.” Uma bela passarela de vidro permitirá que moradores cruzem a
Radial em direção ao estádio, em vez de atravessar a perigosa avenida.
Na semana passada, quem visitava Itaquera
tinha a noção exata do jeito brasileiro de ser. Em toda parte do bairro
centenas de profissionais plantavam grama, arrumavam canteiros, limpavam
muros pichados, passavam cimento em calçadas quebradas, varriam o lixo
das ruas. Na estação Corinthians-Itaquera, uma das duas que desembocam
no estádio (a outra é a Arthur Alvim), o barulho de furadeiras pregando
placas indicativas era infernal. É inegável que Itaquera está ficando
bonita para receber a maior festa do esporte mundial, mas isso não
exclui o fato de que tudo deveria ter sido feito com mais antecedência. O
que está pronto, porém, enche os moradores de orgulho. O que mais
impressiona são os quatro quilômetros de muros grafitados por 70
artistas plásticos e que enfeitam a Radial até a entrada do estádio. O
canteiro central da avenida foi pintado de verde e amarelo e é
impossível não entrar no clima da Copa ao se deparar com tudo isso.
EM OBRAS
Novo viaduto e nova passarela construídos para melhorar
o fluxo de carros e de pessoas no entorno do estádio
Novo viaduto e nova passarela construídos para melhorar
o fluxo de carros e de pessoas no entorno do estádio
Por mais que Itaquera tenha se transformado
nos últimos anos, ela é, afinal de contas, um bairro periférico da
maior cidade do País. A fotografia que aparece na primeira página desta
reportagem foi tirada no Campo do Negritude, onde funciona a Escola de
Futebol Cohab 1. Rodeado por prédios, o terrão fica atrás da Arena
Corinthians, a não mais de um quilômetro de distância. É um lugar
modesto, cheio de buracos e com vira-latas passeando enquanto os
moleques jogam bola. Ali dá para ouvir o som da torcida gritando no
estádio bilionário. “Um dia vou jogar no Itaquerão”, diz Pablo Everton
Souza Santos, o garoto de meião azul que aparece na foto. Por enquanto, o
que separa Pablo do Itaquerão são alguns poucos prédios da Cohab.
Fotos: João Castellano/Ag. Istoé; Edson Lopes Jr/A2 FOTOGRAFIA, Alex silva/Estadão Conteúdo; Friedemann Vogel/FIFA
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