Mesmo com as obras inacabadas, dinheiro público jogado fora e a violência dos protestos, os brasileiros estão prestes a desfrutar de um período histórico: o melhor campeonato de futebol em décadas
Amauri Segalla
Na semana
passada, quem esteve na Granja Comary, em Teresópolis, local de treinos
da Seleção Brasileira de Futebol, observou um espetáculo que se repete
quase todos os dias. Nas primeiras horas da manhã, uma densa neblina
cinzenta encobre o lugar, mas pouco depois ela é substituída por um sol
luminoso. Não poderia haver imagem mais precisa para descrever as
contradições da Copa do Mundo no Brasil. A Copa da incompetência, das
obras prometidas e não entregues, dos protestos violentos e do
oportunismo das greves está envolta por uma espessa camada de sombras,
como se nuvens escuras anunciassem uma tempestade que se aproxima. Mas
há uma outra Copa também, tão radiante quanto os dias ensolarados de
Teresópolis, e que poderá ser conhecida e reverenciada nos pés hábeis de
craques como Neymar e dos jogadores brasileiros concentrados na Granja
Comary. Sim, vai ter Copa, mas não uma só. Uma escancara, para o mundo
inteiro ver, as profundas mazelas nacionais. A outra será um torneio
extraordinário de futebol, provavelmente o melhor em décadas, marcado
por talentos excepcionais, rivalidades à flor da pele, embates para
entrar na história.
ÍDOLO
Neymar na saída de um amistoso do Brasil:
o que ele tem a ver com o dinheiro público desperdiçado?
Neymar na saída de um amistoso do Brasil:
o que ele tem a ver com o dinheiro público desperdiçado?
As duas faces da Copa são expostas todos os
dias – e certamente cada vez mais, até o apito final da competição. Na
terça-feira 27, durante um protesto contra o Mundial, um índio disparou
uma flecha em direção a um grupo de policiais que acompanhava o ato em
Brasília. O artefato atingiu a perna de um soldado, ferindo-o. Na mesma
terça, o lateral-esquerdo Marcelo, o último jogador que faltava para
completar o grupo dos 23 convocados, se apresentou na Granja Comary. A
flechada e o sorriso farto de Marcelo ao se encontrar com o técnico Luiz
Felipe Scolari são exemplos acabados do que está por vir. De um lado,
confrontos que produzem vítimas. De outro, a festa do futebol.
PROTESTO
Índio dispara flecha contra policiais diante do Estádio Mané Garrincha,
em Brasília. Abaixo, o soldado atingido
Índio dispara flecha contra policiais diante do Estádio Mané Garrincha,
em Brasília. Abaixo, o soldado atingido
Por que, afinal, tantas pessoas amam odiar a
Copa no Brasil? Desde as legítimas manifestações que começaram em junho
do ano passado, construiu-se a imagem de que o Mundial é responsável
pelas desgraças da nação. Essa percepção está correta? Talvez ela seja
resultado de uma mentira contada a partir de 2007, quando o Brasil foi
escolhido sede da Copa. Autoridades de governos, integrantes notáveis do
Comitê Organizador Local (COL) e a própria imprensa disseram, ou pelo
menos insinuaram, que o torneio de futebol seria o antídoto para todos
os males nacionais. Teríamos, enfim, aeroportos reluzentes, estradas
seguras, metrôs confortáveis, segurança pública eficiente. Quase nada
disso virou realidade. Pior ainda: ao desapontamento juntaram-se
denúncias de corrupção e muito dinheiro jogado na lata do lixo. O
resultado é conhecido. Hoje em dia, um contingente enorme de brasileiros
associa imediatamente Copa a roubalheira, futebol a ineficiência, Fifa a
abusos. Daí a possibilidade de amplos protestos durante a Copa. Para
contê-los, o governo federal aposta na militarização das ruas, com
tanques do Exército e policiais da Força Nacional de Segurança.
FESTA
Ruas decoradas em Natal: por que não admitir que a
Copa é bacana para um País como o Brasil?
Ruas decoradas em Natal: por que não admitir que a
Copa é bacana para um País como o Brasil?
A Copa será realizada num momento em que o
Brasil dá motivos para o descontentamento. Basta dar uma olhada em
alguns indicadores para conhecer o alto grau de incivilidade a que nos
submetemos diariamente. Na semana passada, saíram os resultados do “Mapa
da Violência”, estudo anual que detalha as mortes por causas extremas. O
Brasil retrocedeu mais de três décadas, atingindo a maior taxa de
homicídios de que se tem registro desde 1980. Isso depois de incontáveis
anúncios de políticas de segurança e após vultosos investimentos
financeiros. Só os brasileiros sabem como tem sido difícil admirar o
País. O transporte público é horrível. A economia não anda. Hospitais
matam em vez de salvar. Falta água. Tudo é caro. São flagelos demais
para uma nação inteira ignorar. “A população nas ruas é uma indicação de
que os canais existentes para exercer a cidadania não são suficientes”,
diz Gustavo Azenha, diretor do centro de estudos brasileiros da
Columbia University.
FORÇAS NAS RUAS
Tropa do Exército na base aérea de Salvador (abaixo) e treinamento
de policiais em Brasília: atentos às manifestações
Tropa do Exército na base aérea de Salvador (abaixo) e treinamento
de policiais em Brasília: atentos às manifestações
E o futebol, como fica nessa história?
Reconheça-se que fizemos quase tudo errado, mas por que não admitir que é
bacana demais uma Copa do Mundo no Brasil? Por que não separar os
problemas da nação de algo totalmente diferente – as jogadas geniais, os
dribles desconcertantes, os gols sensacionais? O que Neymar tem a ver
com o dinheiro público despejado vergonhosamente nos estádios? Ou Messi?
Ou Cristiano Ronaldo? Os três são as maiores estrelas do torneio e
certamente entrarão para a história como figuras gigantescas do futebol.
Por que não desfrutar, neste momento único, do que elas têm para
oferecer? Dentro dos gramados, a Copa do Brasil vai reunir, como poucas
vezes se viu, uma constelação de craques no auge da forma, seleções que
são verdadeiros esquadrões e tudo isso sob os olhos de uma torcida que
sabe celebrar como ninguém. “Como o Brasil é o País mais festejado do
mundo do futebol, cria-se a expectativa de ser uma Copa inesquecível”,
diz Tostão, titular da Seleção tricampeã em 1970 e hoje um analista
reconhecidamente independente.
Mesmo fora do universo do futebol, a Copa
não deixará apenas legados nefastos. Há algo de positivo também. No
turismo, espera-se a chegada de 600 mil visitantes, mas esse não é o
único ponto favorável. “Com a Copa, o Brasil vai economizar na
propaganda dos destinos, o que normalmente tem um custo enorme”, diz
Elzário Pereira da Silva Júnior, presidente da Associação Brasileira de
Profissionais do Turismo. “O Mundial será benéfico para o turismo do
País inclusive depois de acabar.” Em termos de infraestrutura, a Copa
acelerou obras importantes. É um absurdo as reformas dos aeroportos não
terem terminado a tempo, mas elas pelo menos estão em andamento. Sem a
Copa, as autoridades teriam disposição política para começá-las? Muitas
obras de mobilidade urbana também saíram do papel graças ao torneio de
futebol. No Rio, o corredor expresso Transcarioca, que liga a Barra ao
Aeroporto do Galeão, terá 20 de suas 45 estações funcionando durante os
jogos, e as demais devem ficar prontas até o final do ano. Em Itaquera,
onde se dará a partida inaugural, as obras viárias do entorno do estádio
devem melhor a vida dos moradores do bairro periférico de São Paulo. A
Copa trará nuvens pesadas para os céus brasileiros, mas o sol brilhará
também.
Com reportagem de Camila Brandalise
Fotos: Sérgio Lima/Folhapress, Bruno Kelly/Reuters; Luciano da Matta/A Tarde/Ag. O Globo; Andre Borges/ComCopa
Fotos: Sérgio Lima/Folhapress, Bruno Kelly/Reuters; Luciano da Matta/A Tarde/Ag. O Globo; Andre Borges/ComCopa
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