Nesta entrevista exclusiva a CartaCapital, o ex-presidente também fala de Copa, manifestações, PT, mídia e campanha eleitoral.
por Luiz Gonzaga Belluzzo, Mino Carta
—
publicado
03/06/2014 04:32,
última modificação
04/06/2014 10:23
Jonas Tucci
Antes
de mais nada, impressiona a paixão. Aos 68 anos, Luiz Inácio Lula da
Silva não perdeu o vigor com que arengava à multidão reunida no gramado
da Vila Euclides no fim dos anos 70. E nos momentos em que sustenta algo
capaz de empolgá-lo, ocorrência frequente, aperta com força metalúrgica
o pulso do entrevistador mais próximo, como se pretendesse
transmitir-lhe fisicamente sua emoção. Assim se deu nesta longa
entrevista que o ex-presidente Lula deu a CartaCapital. No caso de Mino,
esta foi mais uma das inúmeras, a começar pela primeira, em janeiro de
1978.
CartaCapital: O senhor enxerga alguma relação entre a Copa do Mundo e a eleição? Se enxerga, por que e de que maneira?
Lula: Eu
acho difícil imaginar que a Copa do Mundo possa ter qualquer efeito
sobre a preferência por este ou aquele candidato. Por outro lado, se o
Brasil perder, acho que teremos um desastre similar àquele de 1950. Temo
uma frustração tremenda, e a gente não sabe com que resultado
psicológico para o povo. Em 50 jogaram o fracasso nas costas do goleiro
Barbosa.
CC: Em primeiro lugar do Bigode.
Lula: O
Barbosa carregou por 50 anos a responsabilidade, e morreu muito pobre,
com a fama de ter sido quem derrotou o Brasil. É uma vergonha jogar a
culpa num jogador. Se o Brasil ganha, a campanha passa a debater o
futuro do País e o futebol vai ficar para especialistas como eu.
CC: E as chamadas manifestações?
Lula:
Ainda há pouco tempo a gente não esperava que pudessem acontecer
manifestações. E elas aconteceram sem qualquer radicalização inicial,
porque as pessoas reivindicavam saúde padrão Fifa, educação padrão Fifa,
poderiam ter reivindicado saúde padrão Interlagos, quando há corrida,
ou padrão de tênis, Wimbledon, na hora do tênis. Eu acho que isso é até
saudável, o povo elevou seu padrão reivindicatório. E é plenamente
aceitável dentro do processo de consolidação democrático que vive o
Brasil. Eu acho que, ao realizar a Copa, o governo assumiu o compromisso
de garantir o bem-estar e a segurança dos brasileiros e dos torcedores
estrangeiros. Quem quiser fazer passeata que faça, quem quiser levantar
faixa, que levante, mas é importante saber que, assim como alguém tem o
direito de protestar, o cidadão que comprou o ingresso e quer ir ver a
Copa tenha a garantia de assistir aos jogos em perfeita paz.
CC: O
povo brasileiro amadureceu e nós entendemos que o resultado da Copa
será bem menos importante do que foi em 1950. Mesmo que a Seleção perca,
não haverá tragédia. Deste ponto de vista. Efeitos sobre as eleições
podem ocorrer em função das chamadas manifestações.
Lula: Eu
tenho certeza de que a presidenta Dilma e os governos estaduais estão
tomando toda a responsabilidade para garantir a ordem. Com isso podemos
ficar tranquilos, é questão de honra para o governo brasileiro. O que
está em jogo é também a imagem do Brasil no exterior. De qualquer
maneira, acho que não vai ter violência, e, se houver será tão marginal a
ponto de ser punida pela própria sociedade. Agora se um sindicato quer
fazer uma faixa “abaixo não sei o quê, 10% de aumento”, é seu direito.
Eu me lembro que disse ao ministro José Eduardo Cardozo, quando começou a
se aventar a possibilidade de uma lei contra os mascarados: “Olha,
gente, nem brincar com lei contra mascarados porque a primeira coisa que
iremos prejudicar vai ser o Carnaval, não os mascarados”. A
Constituição e o Código Penal definem claramente o que é ordem e o que é
desordem e, portanto, o governo tem mecanismos para evitar qualquer
abuso. Recomenda-se senso comum. Nesses dias tentaram até confundir uma
frase minha sobre uma linha de metrô até os estádios. Em 1950, no
Maracanã cabiam 200 mil pessoas, mais de duas vezes as assistências
atuais. É verdade, havia menos carros nas ruas, infinitamente menos
carros, mas também não havia metrô.
CC: De todo modo, vale a pena realizar uma Copa?
Lula: Discordo
daqueles que defendem a Copa no Brasil dizendo que vão entrar 30
bilhões, ou que geraremos novos empregos. O problema não é econômico. A
Copa do Mundo vai nos permitir, no maior evento de futebol do mundo,
mostrar a cara do Brasil do jeito que ele é. O encontro de civilizações,
o resultado dessa miscigenação extraordinária entre europeus, negros e
índios que criou o povo brasileiro. Qual é o maior patrimônio que temos
para mostrar? A nossa gente.
CC: Em
que medida essas manifestações nascem do fato de que houve uma ascensão
econômica? Aqueles que melhoraram de vida reivindicam mais saúde, mais
educação.
Lula: Eu
acho que não há apenas uma explicação para o que está acontecendo.
Precisamos aprender a falar com o povo, para que entenda o momento
histórico. O jovem hoje com 18 anos tinha 6 anos quando ganhei a
primeira eleição, 14 anos quando deixei de ser presidente da República.
Se ele tentar se informar pela televisão, ele é analfabeto político. Se
tentar se informar pela imprensa escrita, com raríssimas exceções, ele
também será um analfabeto político. A tentativa midiática é mostrar tudo
pelo negativo. Agora, se nós tivermos a capacidade de dizer que
certamente o pai dele viveu num mundo pior do que o dele, e se
começarmos a mostrar como a mudança se deu, tenho certeza de que ele vai
compreender que ainda falta muito, mas que em 12 anos passos adiante
foram dados.
CC: O governo não soube se comunicar?
Lula:
Eu acho. Eu de vez em quando gosto de falar de problema histórico, para
a gente entender o que de fato aconteceu neste país. Já disse e repito:
Cristóvão Colombo chegou em Santo Domingo, em 1492, e em 1507 ali
surgia a primeira faculdade. No Peru, em 1550, na Bolívia, em 1624. O
Brasil ganhou a primeira faculdade com dom João VI, mas a primeira
universidade somente em 1930. Então você compreende o nosso atraso. Qual
é nosso orgulho? Primeiro, em 100 anos, o Brasil conseguiu chegar a 3
milhões de estudantes em universidades. Nós, em 12 anos, vamos chegar a
7,5 milhões de estudantes, ou seja, em 12 anos, nós colocamos mais
jovens na universidade do que foi conseguido em um século. Escolas
técnicas. De 1909 até 2002, foram inauguradas 140. Em 12 anos, nós
inauguramos 365. Ou seja, duas vezes e meia o número alcançado em um
século. E daí você consegue imaginar o que significa o Reuni ao elevar o
número de alunos por sala de aula, de 12 para 18. Ou o que significa o
Ciência Sem Fronteiras, o Fies: 18 universidades federais novas.
Pergunta o que o Fernando Henrique Cardoso fez? Se você pensar em 146 campi
novos, chegará à conclusão de que foi preciso um sem diploma na
Presidência da República para colocar a educação como prioridade neste
País. Nós triplicamos o Orçamento da União para a educação. É pouco? É
tão pouco que a presidenta Dilma já aprovou a lei permitindo 75% dos
royalties para a educação. É tão pouco que a Dilma criou o Ciência Sem
Fronteira para levar 65 mil jovens a estudar no exterior. É tão pouco
que ela criou o Pronatec, que já tem 6 milhões de jovens se preparando
para exercer uma profissão. Isso tudo estimula essa juventude a querer
mais. Tem de querer mais. Quanto mais ela reivindicar, mais a gente se
sente na obrigação de fazer. Quem comia acém passou a comer contrafilé e
agora quer filé. E é bom que seja assim, é bom que as pessoas não se
nivelem por baixo. Eu sempre fui contra a teoria de que é melhor pingar
do que secar. Quanto mais o povo for exigente e reivindicar, forçará o
governo a fazer mais.
O que é ruim? A hipocrisia. Nós temos um
setor médio da sociedade, que ficou esmagado entre as conquistas sociais
da parte mais pobre da população e os ricos, que ganharam dinheiro
também. A classe média, em vários setores, proporcionalmente ganhou
menos. Toda vez que um pobre ascende um degrau, quem está dez degraus
acima acha que perdeu algumas coisas. A Marilena Chauí tem uma tese que
eu acho correta: um setor da classe média brasileira que às vezes também
é progressista, do ponto de vista social, mas não aprendeu a socializar
os espaços públicos e então fica incomodado.
CC: Nós entendemos que o problema é representado pela elite brasileira. Quem se empenha contra a igualdade?
Lula: Eu
sou o mais crítico do comportamento da elite brasileira ao longo da
história. Este país foi o último a acabar com a escravidão, foi o último
a ser independente. Só foi ter voto da mulher na Constituição de 30.
Tudo por aqui resulta de um acordo, inclusive um acordo contra a
ascensão social. Na Guerra dos Guararapes, quando pretos e índios
quiseram participar, a elite disse “não, não vai entrar, porque depois
que terminar essa guerra vão querer se voltar contra nós”. Esta é a
história política do Brasil. Ocorre, porém, que a ascensão dos pobres
levou empresas brasileiras a ganhar como nunca. Não sou eu quem lembra:
em 1912, Ford dizia: “Quero pagar um bom salário para meus trabalhadores
para que eles possam consumir”. Por exemplo: pobre em shopping dá
lucro. Muitas vezes os donos não aceitam num primeiro momento, mas
depois percebem que é bom. Tínhamos 36 milhões de brasileiros viajando
de avião, agora temos 112 milhões.
CC: Notáveis avanços são inegáveis. Mas como vai ser daqui para a frente?
Lula:
Eu fazia debates mundo afora, com o Mantega, o Meirelles, às vezes a
Dilma. E eu dizia: esses ministros meus, eles falam da macroeconomia,
mas o que eles não dizem é que essa macroeconomia só deu certo por causa
da minha microeconomia. O que foi a microeconomia? Foi o aumento de
salário, foi a compra de alimentos, a agricultura familiar, foi o
financiamento, foi o crédito consignado, foi o Bolsa Família. Foi essa
microeconomia que deu sustentabilidade à macroeconomia. Na Constituição
de 46, quando o trabalho era o assunto, concluía-se: “Não pode dar 30
dias de férias para o trabalhador, porque o ócio o prejudica”. Chamavam
férias de ócio. Agora, as pessoas dizem que o Bolsa Família cria um
exército de vagabundos. E o futuro? Numa escada de dez degraus, os
pobres só subiram dois, um e meio, ainda falta muito para subir. Por
isso eu tenho orgulho da presidenta Dilma, ela sabe que muita gente vai
se bater contra ela a sustentar que, para controlar a inflação e fazer o
País crescer, é preciso ter um pouco de desemprego, arrocho no salário
mínimo, ou seja, que é preciso fazer o que sempre foi feito neste País e
que não deu certo. Então, o que o governo tem de garantir é o aumento
da poupança interna, mais investimento do Estado, mais junção entre
empresa privada e pública, mais capital externo para investir no setor
produtivo. Para tanto, é indispensável dar continuidade à ascensão dos
mais pobres. Porque é isso que também vai garantir a ascensão do Brasil
no mundo desenvolvido, com alto padrão de qualidade de vida, renda per
capita de 20 mil, 30 mil dólares, e até mais. O Brasil não pode parar
agora. Está tudo mais difícil, mas temos agora o que a gente não tinha
há cinco anos, vamos contar com o pré-sal, daqui a pouco.
CC: Temos
um agronegócio muito exuberante, muito produtivo e competitivo: é
possível mobilizar essa capacidade para estimular a indústria de
equipamentos agrícolas?
Lula: Nós
já temos uma indústria de equipamentos agrícolas muito boa. Quando na
Presidência, cansei de discutir com empresários que feiras de
agronegócio nós precisamos é fazer na Argentina, no México, Nigéria,
Angola, Índia. Temos de mostrar nossa capacidade nos outros mercados.
Esta é uma área na qual o Brasil está pronto, não só porque tem
conhecimento tecnológico, mas também porque tem capacidade de área
agriculturável, terra, sol e água. Sem a vergonha de dizer que
exportamos commodities. Hoje, a commodity tem preço. O que nós
precisamos é produzir não só o alimento, mas a indústria de alimento,
não só a soja, mas o óleo de soja.
CC: Permita-nos insistir: como vencer as resistências da elite, atiçada pela mídia?
Lula: No
movimento sindical, em 1969, e comecei a negociar com a Fiesp,
certamente a elite era muito mais retrógrada do que hoje. Eu lembro
quando nós constituímos a primeira grande comissão de fábrica na
Volkswagen nos anos 80, nós fomos pedir a Antônio Ermírio de Moraes a
criação de uma comissão de fábrica na sua indústria química de São
Miguel Paulista, e significava trabalhador querendo mandar na empresa
dele. Hoje tem uma classe empresarial, mais jovem, que já compreende a
importância da negociação coletiva. Mesmo assim, permanecem setores
retrógrados. Ainda temos coronel que mata gente por esse Brasil afora
por briga de terra. Nesses dias a Nissan americana não queria deixar seu
pessoal sindicalizar-se por lá mesmo e eu tive de mandar uma carta para
o presidente da empresa. Mas voltemos à mídia.
CC: A mídia nutre essa elite.
Lula: Eu
certamente não sou especialista nesta questão da mídia e nunca tive
muita simpatia dos seus donos. Toda vez que tentei conversar com eles,
cuidei de explicar que ao governo não interessa uma mídia chapa-branca,
com foram no governo Fernando Henrique Cardoso. Eu não quero isso, não
quero que tratem o PT como trataram a turma do Collor nos dois primeiros
anos do seu mandato. Agora, também é inaceitável a falta de respeito
com Dilma. Se querem falar mal, façam-no no editorial do jornal. Na hora
da cobertura do fato, publiquem o fato como ele é. Nunca liguei para o
dono de mídia pedindo para fazer essa ou aquela matéria, mas o respeito
há de ter, tanto mais por parte da comunicação, que é concessão do
Estado. Respeito à instituição, e acho que eles saíram de um momento em
que lambiam as botas da ditadura e evoluíram para o pensamento único a
favor de FHC, e contra o meu governo e contra o da Dilma, e contra a
presidenta com agressividade ainda maior.
CC: E em termos de informação?
Lula:
Quando eu cito os números da educação, por exemplo, é porque nunca
foram divulgados por esta mídia. É como se houvesse a obrigação de
omitir, sem perceber que com isso desrespeita o próprio público, que lê,
ouve ou assiste. Nem o recente Ibope eles divulgaram. Nem comentaram a
inauguração da Rodovia Norte-Sul, que passaram três anos criticando. Há
uma predisposição do negativismo, e isso contribui para uma
desinformação da sociedade brasileira. E uma questão é ideológica, se
fosse econômica, eles deveriam ir todo dia à igreja acender uma vela
para mim, porque muitos estão quebrados e se salvaram no meu governo. Eu
estou com a alma tão leve, eu até acho normal o que eles fazem. Vem
esse metalúrgico, que a gente supunha destinado a um fracasso total, e é
um sucesso. Vem essa mulher aí, que a gente achava um poste, e ela não é
um poste. E essa mulher vai se eleger outra vez.
CC: Na verdade, o que está esmaecendo no Brasil e no mundo é o espírito crítico.
Lula:
Porque interessa a uma parte da elite brasileira a negação da política.
O que vem depois é sempre pior, quando você nega a política. A ditadura
brasileira foi a negação da política. O que é muito grave, porque, se
você atravessa um momento sem nenhuma referência, sem ninguém em
condições de controlar a situação, o próprio Estado vai à deriva.
CC: Insistimos novamente: o governo não se comunica?
Lula: Vocês
estão certos, não se comunica, eu tenho falado para Guido Mantega, para
a Dilma: vendo como está o mundo hoje, a cada dois meses o governo tem
de fazer igual uma empresa com seus acionistas, que têm fundos de
pensão. Ou seja, você tem de fazer viagens e convencer o fundo de que a
sua empresa é rentável e vale a pena investir. Então, a cada dois meses o
governo brasileiro tem de ir a Nova York, não para falar com
aposentados brasileiros, mas com o investidor. Já falei com o Itamaraty,
com Bradesco, Santander, todos se dispõem a articular os maiores
debates brasileiros para mostrar ao mundo realizações e potencialidades.
A Petrobras tem de viajar a cada 30 dias para onde tem investidor. Não
podemos ficar por conta de um jornalista inglês que copiou matéria de um
jornalista que vive no Rio de Janeiro e fica procurando matéria em
jornal para se inspirar. O Brasil precisa reconhecer enquanto vira a
sétima economia mundial com viés de ser a quinta, que lá fora já não se
fala bem da gente. José Luis Fiori escreveu um artigo comparando Brasil e
México para acabar com o complexo de vira-lata de quem fala que o
Brasil está pior que o México. O que o México tem melhor que o Brasil?
Eu quero que o México fique cada vez mais rico, mas a comparação com o
Brasil é inadequada, porque o Brasil é maior que o México em tudo. Dias
atrás, estava aqui com meu amigo Gerdau e perguntei: como está o setor
siderúrgico? E ele: não está muito bem. Perguntei: quanto é que você
está ganhando no Brasil? Somente aqui, respondeu. Perguntem para o Josué
Gomes da Silva, da Coteminas, onde ganha dinheiro? No Brasil. O mercado
interno brasileiro é uma bênção de Deus que a elite não sabia existir,
eles nunca imaginaram que podíamos ultrapassar os 35 milhões de
consumidores.
CC: Que chances há de mudar esta falha do governo?
Lula:
Não é fácil, eu sei o que foram meu primeiro e segundo mandatos. Tenho
dito com a Dilma que não tem de dar ouvidos a quem fala que gastamos
muito com publicidade. Eu acho que, se foi anunciado um programa hoje, e
no segundo dia não houve repercussão, vai em rede nacional. O governo
tem de dizer o que a mídia não divulgou, porque se não disser, o
silêncio se fecha sobre o fato. Dois dias de tolerância, e coloca um
ministro em rede nacional, não precisa ir a presidenta todo dia. Mas não
fiquemos nisso. O Marco Regulatório tem de ser compreendido. Não é
censura, queremos é fazer valer a Constituição de 88, tanto mais quando
entram em cena Facebook e companhia, eu nem sei o nome de tudo. Existe
Marco Regulatório de 1962. O Franklin Martins foi feliz ao observar: “Em
62, a gente tinha mais televizinhos do que televisores”. Eu lembro que
menino ia à casa do vizinho ver televisão, a gente só podia sentar no
chão, o sofá era do dono da casa e ainda ele pisava no dedo da gente.
Para assistir luta livre, tinha de gastar dinheiro no bar, o dono
cobrava. Hoje acontece essa revolução tecnológica e você não quer
discutir sua regulamentação? Então, o Marco Regulatório e a reforma
política são dois temas de ponta que o PT tem de assumir. Temos de
convocar uma Constituinte própria para fazer uma reforma política.
CC: O que seria esta Constituinte própria?
Lula:
Não se destinaria a elaborar uma nova Constituição, e sim discutir a
reforma política, exclusivamente. O Congresso tem de aprovar a ideia do
plebiscito, e na convocação você diz o que é. E aí, não faltam recursos
jurídicos para adotar a nomenclatura adequada. É insuportável governar
com o Congresso tomado por tantos partidos. É preciso ter critério para
organizar um partido, tem de haver cláusula de barreira.
CC: Este
problema não resulta do fato de que os partidos brasileiros nunca foram
o intermediário necessário entre a nação e o governo?
Lula:
O Brasil não tem tradição de partido nacional, a tradição são tribos
locais, com caciques regionais. Depois do PCB, o PT tornou-se o único
partido nacional, cuja atuação partidária a direção decidia. Mas o PT
erra quando começa a entrar na mesmice dos outros partidos. Erra quando
usa a mesma prática dos outros partidos. Eu não quero voltar às
origens, briguei a vida inteira para ser classe média e agora vou voltar
a brigar. O PT, tem que saber, criar esse partido não foi fácil. Lembro
de alguém que vendeu uma cabrita, que dava leite para amamentar o
filho, para legalizar o PT. E até hoje há gente que anda três, quatro
dias de canoa para participar de uma convenção. A gente não pode
permitir que meia dúzia de pessoas deformem esse partido, ele é muito
grande. É um partido que o próprio povo dirige. Não é uma coisa simples,
nós temos de valorizar isso. Já disse na convenção do PT: quero ajudar o
PT a voltar ao seu leito natural. Se tem uma coisa que o PT tem de se
notabilizar, é voltar à sua tradição política. É isso que dá autoridade
moral e força para a gente.
CC: Não é fácil manter a coerência na hora da coalisão...
Lula:
Não é vergonha você repartir administração com outros partidos, sempre
que pastas sejam definidas na base da afinidade. A reforma política é a
briga que nós temos de ter hoje. Não acho que tenha de ser da Dilma. Ela
é candidata, acho que a briga tem de ser de todo o partido. O Rui
Falcão tem sido de grande valia nessa luta. Agora vou fazer campanha
pelo Nordeste, essa é a contribuição que me cabe no momento. E, se eu
fosse o governo, ficaria ouvindo todo programa de rádio, de televisão, e
o que não for verdade, pedir direito de resposta. Utilizar a internet e
não ficar chorando “a Globo não me dá espaço”. A gente tem outros
instrumentos para dizer o que quer. Estou muito disposto, física e
psicologicamente, para rodar o Brasil.
CC: A campanha, assumir os palanques...
Lula:
Assumir os palanques. Estarei com Dilma onde ela achar conveniente
estar. Preciso tomar muito cuidado, porque haverá na base aliada
interesses de que eu não vá, porque a Dilma não pode ir, ela é candidata
e da base aliada, mas eu tenho compromisso com o meu partido. Eu sei
que isso vai ser um problema, a gente vai ter de conversar e negociar
muito. Estou feliz, sabe por quê? Eu sempre achei que quem deixa a
Presidência fica pensando: como eu estarei daqui a algum tempo? Porque
as pessoas vão esquecendo, você vai perdendo importância. Eu lembro que
em 2002, 2006, ninguém queria o FHC no palanque. Nem Serra colocou. Em
2010, Serra me apresentou como amigo dele e não colocou o FHC. Então, eu
me sinto feliz, eu estou bem, eu ainda tenho consciência de que sou uma
pessoa importante na política brasileira, e como tal direi que Dilma é a
pessoa mais talhada para cuidar do Brasil.
CC: E essa história que a imprensa criou do “Volta Lula”?
Lula: O
“Volta Lula” começou já na época que eu era presidente, quando pediam o
terceiro mandato. Eu, graças a Deus, aprendi a ter responsabilidade
muito cedo. E aprendi que, ao aceitar o terceiro mandato, por me achar
insubstituível, poderia permitir que outros também achassem, com a
possibilidade de alguém, algum dia, tentar o quarto. Não é prudente
brincar com democracia. Cumpri meus dois mandatos, saí cercado pelo
carinho do povo. Se, em algum momento, tiver de voltar, posso daqui a
quatro anos. Mas não é a minha prioridade. Estarei então com 72 e acho
que tem de ser gente mais jovem, com mais vigor físico e capacidade de
administração. Mas em política a gente não pode dizer que não, nem sim.
Nunca me passou pela cabeça voltar. Em todo caso, minha relação com a
Dilma é muito forte, e de muito respeito e admiração pelo carácter dela.
Bem formada ideologicamente e muito leal. Nunca iria disputar sua
candidatura.
Não faltou quem quisesse minha volta, mas
quando o Rui Falcão botou em votação, deixei claro: “Quero que saibam,
sou candidato a cabo eleitoral da companheira Dilma Rousseff para o
segundo mandato à Presidência da República”.
CC: E quanto aos adversários?
Lula: Conheço
o Eduardo Campos, é meu amigo, gosto dele profundamente. Conheço o
Aécio, ele não tem a mesma firmeza ideológica do Eduardo, tem outro
compromisso, é um representante mais afinado com a elite. Mas a Dilma é a
mais preparada. Fico triste que não conseguimos construir algo capaz de
manter o Eduardo Campos junto da gente. Mas era destino.
CC: E a Marina?
Lula: Eu gosto
muito da Marina, como figura humana. Foi minha companheira no PT por 30
anos, tenho por ela um carinho muito grande, mas acho que, de vez em
quando, comete equívocos na análise política dela, meio messiânica.
Imaginei-a candidata, e agora entra de vice. Nisso não consigo entender a
Marina. Mas não confundo relação de amizade com a minha decisão
política. Tenho amizade com o Aécio mais formal do que com o Eduardo e
sua família.
CC: Dilma ganha no primeiro turno?
Lula: A
ganhar no primeiro turno por 51% a 49% prefiro ganhar no segundo turno,
com 65% a 35%. Reeleição é sempre muito difícil, mas no segundo turno
você pode consolidar um processo de alianças com a coalisão e você é
eleito com mais desenvoltura, e também permite fazer um debate mais
profundo. No primeiro turno todo mundo fala a mesma coisa, promete tudo
para o povo. Eu acho que a Dilma está tranquila. Se em 2002 a esperança
venceu o medo, acho que agora a esperança e a certeza do que pode ser
feito pode vencer o ódio.
CC: A campanha será sangrenta?
Lula: Pelas
características dos candidatos, acho que não. De resto, o resultado de
uma campanha não define apenas vencedor e derrotados, é o grau de
politização da sociedade, é o gosto pela política, é perceber que
durante a campanha os candidatos aprenderam alguma coisa e deram um
salto de qualidade. Quando disputei com o Serra, nós tivemos uma
campanha mais civilizada do que com o Alckmin. Ele se apresenta como
cidadão refinado, mas foi de extrema agressividade.
CC: Qual seria o adversário mais provável para o segundo turno?
Lula:
Eu acho que, em um segundo turno, será tucano. O PSDB tem base
partidária mais organizada, governam São Paulo, Paraná, alguns estados
importantes no Nordeste, e tem mais tradição de palanque. Já o PSB tem
pouco palanque estadual, a campanha do Eduardo vai ser mais difícil do
que em 1989.
CC: E o Padilha, candidato petista em São Paulo?
Lula:
O Padilha é um daqueles fenômenos. Eu disse outro dia em Sorocaba ao
Padilha: “Depois de quem o precedeu, Arruda Sampaio, Suplicy, Dirceu,
Marta, Genoino, Mercadante, você é o melhor candidato de todos nós, o
mais alegre, o mais simpático, sua capacidade de comunicação com o povo é
fantástica, unificou o partido”. Mas é uma campanha difícil. Primeiro,
porque os tucanos têm uma base sólida em São Paulo, e há conservadorismo
no estado e isso dá quase que uma garantia. Não sei se Paulo Skaff vai
ser candidato, faz dois anos que faz campanha não como candidato, mas
como presidente da Fiesp. Agora o desafio para o PT é ter os votos que o
partido tem habitualmente na cidade, todas as eleições.
CC: Fale da central de boatos a respeito do seu filho Fábio.
Lula: Ao
mesmo tempo que sou defensor intransigente da liberdade que temos na
internet, acho que somos vítimas dessa liberdade, porque o cidadão entra
no seu quarto, seu escritório, e fala a besteira que quiser. Há muito
tempo vêm denúncias, outro dia mostraram a sede da Esalq e disseram que
era a casa do meu filho, outro dia ele era dono da Friboi, um dia desses
ele foi à Itaipu com o Samec passear, daí um jornal disse que ele
estava fazendo negócios, inventaram que ele tem um jato. Conseguimos
detectar o paradeiro de dez pessoas, uma era do Instituto Fernando
Henrique Cardoso, filho do ex-ministro Graziano. Os envolvidos foram
acionados, um veio prestar depoimento, disse: “Mas eu sou eleitor do
Lula, eu só citei, não sabia se era verdade, mas coloquei”. Muitos pedem
desculpas. O Graziano veio aqui também. Quando, muito tempo atrás, eu
fui contra a invasão do Afeganistão pela então URSS, diziam que eu era
da CIA, depois eu era visto pela direita como o cara do Partidão. Isso
me permitiu continuar percorrendo o caminho do meio. Mas vale acentuar
que nós chegamos à excrescência da excrescência do comportamento humano.
Um dia desses eu vejo O Que Eu Sei do Lula, um livro. O autor
não conviveu comigo um único segundo para escrever a orelha do livro.
Fico pensando o que faço com um cidadão desse? Acabo percebendo que o
melhor é a desmoralização pela mentira. O Romeu Tuma Jr. não merece o
comportamento do pai dele. O pai dele foi um cidadão digno. Quando a
minha mãe estava para morrer, ele, meu carcereiro, me deixava sair da
cadeia às 2 da manhã para visitá-la. Então, quando um cidadão conta uma
mentira dessa, o que fazer? Processar? Acho que falta um pouco de senso
de responsabilidade no comportamento das pessoas. De verdade, falta
reconstruir a estrutura social da família. Quando eu era pequeno, tinha
vontade de comer uma maçã embrulhada em papel azul, e ficava diante da
barraca olhando e olhando, e sabe por que eu não pegava e não saía
correndo? Para não envergonhar a minha mãe. Ela era a minha referência
de comportamento.
CC: Mas uma política social que conseguisse alcançar certo grau de igualdade, isso não recriaria automaticamente valores perdidos?
Lula: Há
todo um conjunto de fatores viáveis, não concordo com você diminuir a
idade penal e colocar mais polícia na rua para coibir a violência. Isso
não vai funcionar. Eu acho que, se houver mais gente na escola e mais
gente trabalhando, vamos caminhar no rumo certo.
CC: Seria
correto dizer que há uma concepção errada da polícia num Estado
democrático. Trata-se de uma instituição absolutamente necessária, mas
muito maltratada, porque ela não é para reprimir, é para prevenir. Será
que não vivemos uma crise institucional dos poderes que haveriam de
constituir um Estado moderno?
Lula: Quando a
gente fala em reforma, precisamos reformar também o Poder Judiciário. É
tudo muito lento. Mas a Justiça pede por uma reforma, porque é justo
exigir mais competência, é preciso ter mais estrutura para chegar a um
cargo na Justiça. Quanto à polícia, tenho uma observação. A nossa
polícia sabe que em muitos casos o crime organizado está mais preparado
do que ela. Todo ser humano tem medo. Há casos em que o policial tira a
farda para ninguém saber que ele é policial. Ele vai trabalhar com um
pouco de medo, e o medo faz você mais violento. Se você aborda o
suspeito, já de revólver em punho, caso este reaja, você puxa o gatilho.
Como é que você resolve isso? Nós cometemos um erro na Constituição,
que foi dar muita autonomia aos estados para que sua polícia se
desvincule com muita autonomia da PM. Dá a impressão de que os estados
saberiam lidar com a criminalidade, mas na prática muitos estados ficam
reféns da própria polícia. Primeiro, seria preciso que os policiais se
formassem por cursos de inteligência, assim como se formam em tiro ao
alvo e arte marcial. Segundo, é preciso pagar melhor. Acho que, no caso
da organização da polícia, o problema está na Constituição de 88. Nas
Forças Armadas, nós liberamos 7 mil, 8 mil fardados por ano, que
poderiam ser chamados diretamente para a polícia. Mas não, têm de
prestar concurso. É preciso rediscutir a respeito. Sem deixar de partir
do pressuposto de que nenhum governador quer abrir mão do controle da
polícia. Decisivo seria definir o papel de cada um. Porque, quando um
governador prende um bandido, ele gosta de aparecer na televisão, mas,
quando ele não prende, o governo federal é o culpado. Essa ponderação
explica-se a outros campos. A educação. Quem é que cuida? O governo
federal, estadual ou prefeitura? E no ensino técnico? Saúde? Nós
precisamos definir tudo isso. Temos de repactuar os entes federados.
Construir um pacto federativo, não só a partir da discussão financeira,
mas também de acordo com a responsabilidade de cada um. Penso que no
segundo mandato a Dilma terá de fazer coisas novas, é importante
promover debates que ainda não foram feitos. Só se fala em política
tributária, e ninguém quer política tributária. Eu tentei implementar
duas vezes, ninguém quis. Dilma tem de fazer um esforço muito grande
para destravar este país.
CC: Até que ponto o senhor pode influenciar Dilma na escolha dos futuros ministros?
Lula:
Eu não quero influenciar a Dilma. Faço política por uma transferência
de confiança. Eu confio na Dilma. Se for eleita, vai fazer suas
escolhas, vou torcer para dar certo. Se achar que ela está errada, vou
dar uns palpites. Se em algum momento ela resolver discutir comigo
alguns nomes, eu também não terei dúvidas em ajudá-la.
CC: Digamos que a presidenta não queira ouvir ninguém, quem quer que seja.
Lula: Não existe isso.
CC: Admitamos uma sugestão não solicitada: “Este cara é muito bom”.
Lula:
Vamos supor que a Dilma seja eleita e eu resolva indicar o Belluzzo. E
ela falasse “não”. O que iria acontecer? Ia ficar um arranhãozinho na
nossa relação de amizade. Daí eu preferir não indicar. É mais saudável,
nem eu nem ela teremos decepções. Agora, se o partido vier discutir
comigo quais nomes vai indicar, eu direi o que acho a respeito. Com ela,
não. A não ser que a escolha me pareça absurda e então não hesitarei:
“Este é problema”.
CC: Como analisar o avanço na relação dos BRICS?
Lula:
Nesse mundo globalizado a gente tem de procurar parceiros. Acabou o
tempo em que o mundo pobre esperava tudo da Europa e dos Estados Unidos.
Então, eu penso que o Brasil tem de fortalecer as suas relações. Eu sou
da tese de que a gente tem de criar um colchão de proteção do Brasil em
suas relações externas, do ponto de vista estratégico, do ponto de
vista da segurança, econômico, do ponto de vista estratégico do
desenvolvimento científico-tecnológico. Porque quem já tem não quer
repartir com a gente.
Por isso o Brasil há de fortalecer cada
vez mais sua participação, sobretudo na América do Sul. E ter aqui, na
América do Sul, algo muito forte na área do comércio e da interação das
nossas empresas. Ter empresas fortes e bancos de desenvolvimento fortes.
O BNDES tem de arcar com um papel mais importante e a gente tem de
construir o Banco Sul. Acho que temos de fazer o mesmo com a África,
porque agora, no século XXI, a África dará um salto de qualidade.
E com os BRICS, precisamos tomar decisões
políticas. Nós somos uma espécie de pêndulo do planeta Terra, então não
podemos ficar dependendo do dólar para fazer negócio. Temos de
construir, e não esperar que o mundo construído no século XIX, no começo
do século XX, venha nos salvar. Nós podemos fazer a diferença. Eu acho
que esse acordo da Rússia com a China, esse negócio do gás, foi um tapa
com luva de pelica na cara da Aliança do Atlântico. Acho que os BRICS
devem funcionar como uma espécie de segurança na relação de cinco
economias importantes. Por que eu falo isso? O Mercosul, quando cheguei à
Presidência, não valia nada. A Alca é que estava na moda. Nós não
implantamos a Alca e o Mercosul passou de 10 bilhões para 49 bilhões de
fluxo de comércio exterior. A América do Sul não valia nada, o Brasil
não conversava com ninguém, ninguém conversava com o Brasil.
CC: Não é do interesse da elite que esses dados apareçam.
Lula: O Brasil é o
primeiro produtor, e primeiro exportador, de carne processada, suco de
laranja, tabaco, o segundo de soja. Tudo que você imaginar, o Brasil
está entre os cinco do mundo. Vamos gostar deste País!
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