Ranço neoliberal
A obsessão dos ricos pelo ajuste
fiscal permanente, o desvio de recursos decorrentes da injustiça
tributária, e a privatização do patrimônio e da gestão põem o Estado em
xeque: miopias a ser superadas
por Marcio Pochmann
publicado
Wilson Dias/Agência Brasil
Manifestação em Brasília denuncia que até o final do ano mais de R$ 400 bilhões em impostos serão sonegados
No Brasil do início do século 21, a continuidade dos
êxitos alcançados depende – em grande medida – da reorganização do
Estado brasileiro. Isso porque prevalece de um lado a herança do modo
autoritário, burocrático e patrimonialista conferido à gestão pública
pela Ditadura Militar (1964-1985) a constranger avanços da democracia
participativa no interior da função pública em praticamente todas as
esferas governamentais.
De outro, o espraiamento da cultura gerencialista
implantada pelos governos neoliberais dos anos de 1990 inoculou o
sentido privatista no interior da administração pública brasileira.
Assim, a prática do planejamento indicativo nas decisões administrativas
foi substituída pela sedução anárquica do ativismo de "curtoprazismo",
responsável pela desestabilização do comportamento de gestão pública
consagrado internacionalmente.
Em síntese, o Brasil carrega hoje três âncoras do
atraso que aprisionam a administração pública. A primeira delas
refere-se ao desejo dos ricos de promover o ajuste fiscal permanente,
capaz de mobilizar governos na sanha arrecadatória e contenção de gastos
estratégicos para a população pobre.
Em função disso, governos neoliberais buscaram
modernizar o Estado fundamentalmente para torná-lo imbatível na
arrecadação de impostos, taxas e contribuições, sobretudo na população
mais pobre, uma vez que em relação aos segmentos ricos manteve silêncio
profundo. A elevação da arrecadação de tributos ocorreu, sobretudo, no
consumo e renda do trabalho, enquanto houve corpo mole dos governos para
a tributação sobre a renda da propriedade dos ricos (lucros, juros,
aluguéis e renda da terra).
A segunda âncora do atraso pode ser identificada na
transferência para o setor privado de parte do patrimônio do Estado e da
gestão pública. Pela privatização de parcela do setor público estatal
nos anos de 1990 houve a demissão de mais de meio milhão de funcionários
públicos e a arrecadação de próximo de US$ 100 bilhões. Essa quantia
imensa de recursos, equivalente a 15% do PIB da época, não se direcionou
a ampliação dos investimentos públicos ou do gasto social, mas à
contenção do papel do Estado e pagamento do endividamento público.
Pela terceirização da mão de obra no exercício da
função pública tem sido atendidas exigências da Lei de Responsabilidade
Fiscal, que compromete gasto de pessoal até de determinado parâmetro.
Assim, o Sistema Único de Saúde (SUS) opera nacionalmente, por exemplo,
por meio de ampla presença de OS (organizações sociais), o que faz com
que a maior parcela dos trabalhadores do SUS seja contratada no regime
da terceirização.
Por fim, a terceira âncora se relaciona aos desvios
para os ricos dos recursos públicos para o incremento da política
social. Para financiar a bolsa ao setor privado de alta classe média e
ricos, o neoliberalismo não apenas avançou na arrecadação sobre os
pobres, como também drenou recursos orçamentários da área social por
meio da Desvinculação de Recursos da União (DRU) e, ainda, implantou a
“canga” do superávit fiscal (economia para pagar juros da dívida
interna).
A cada ano, a Receita Federal deixa de arrecadar um
volume de recursos equivalente ao montante comprometido com o Bolsa
Família, isso se somente considerar os abatimentos realizados na
declaração do Imposto de Renda pelos gastos privados com saúde, educação
e previdência. Ao mesmo tempo manifestam-se práticas de isentar
tributos aos ricos na forma de impostos diretos por parte de governos
estaduais e municipais, como nos casos dos grandes proprietários rurais
(ITR), da especulação imobiliária e supermansões (IPTU), dos donos de
aviões, helicópteros e lanchas (IPVA), entre outros.
O atraso se mostra inequívoco, aprisionando parte
importante da administração pública à cultura do descrédito e do
apequenamento na eficiência das políticas públicas por recorrente
fragmentação. Essa miopia anacrônica do gerencialismo na gestão pública
tem sido combatida a partir de 2003, conforme comprovam iniciativas
direcionadas à desoneração fiscal no consumo, à reversão do processo
privatista e de extensão da terceirização precarizante, à contenção da
bolsa de juros aos ricos e à diminuição da DRU e do superávit fiscal.
O êxito da experiência democrática e popular
alcançado desde a última década requer a sua continuidade por meio do
decisivo enfrentamento às três âncoras gestadas pelo neoliberalismo.
Isso implica reforçar a democrática concepção estratégica do Estado em
sua relação com o mercado, bem como a inovação permanente no interior da
gestão pública brasileira.
Marcio Pochmann é professor do Instituto de
Economia e pesquisador do Centro de Estudos Sindicais e de Economia do
Trabalho da Universidade Estadual de Campinas
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