"João
Ubaldo era uma entidade que eu sentia sempre muito próxima. No dia
seguinte à minha chegada em Salvador, em 1960, eu o conheci, na
Biblioteca Pública. E logo sua voz grave
e sua eloquência irônica me atualizaram com o mundo da segunda metade
do século 20. Eu tinha 17 anos; ele, 18. Pouco depois, Glauber saudava o
lançamento de um livro de contos escritos por jovens baianos. Havia
modernismo bem assimilado espalhado pela turma. Sonia Coutinho usava
recursos gráficos em meio a epifânicas histórias claricianas. Outros
depuravam um lirismo em prosa que era justamente o que os críticos,
seguindo Lukacs, costumavam censurar. Gostei de tudo. Mas fiquei
fascinado com os contos mais físicos, "americanos", que eu supunha
influenciados pelos beatniks (que nunca li), assinados por João Ubaldo
Ribeiro, meu jovem guia casual da Biblioteca. Ele era diferente.
Original. Depois, tornou-se o grande autor de tantos grandes livros.
"Sargento Getúlio" (que ele próprio traduziu para o inglês, tendo o
livro e a tradução sido elogiados pelo New York Times) é uma peça
literária perfeita. Em "Viva o Povo Brasileiro", sua obra máxima, o
retrato do Nêgo Léu, a morte da mãe de santo, as paródias de Homero na
narração da Guerra do Paraguai, todo o seu exuberante talento redacional
e toda sua força cômica e comovida se derramam generosamente pelas
muitas páginas. "A Casa dos Budas Ditosos" é um poema claro sobre a
verdade do sexo na mulher, captada nas moças que nossa geração viu, com
olhos infantis, amadurecer depois da Segunda Guerra Mundial. Em todos os
seus livros (e todas as semanas na página do Globo), o prazer do texto
produzido por alguém com verdadeiro talento para escrever. Sua adorável
voz de caverna dava às histórias que ele contava (sobre Caymmi, sobre
Jorge Amado, sobre si mesmo, sobre amigos de Itaparica) um gosto de
fruta do mato oferecida em elegante bandeja urbana. Conversar com Ubaldo
era o céu. Ouvi-lo. Num Bloom's Day, organizado por Scarlet Moon (de
que Fernanda Torres e eu tivemos a honra de participar - e em que Lulu
Santos brilhou lendo trecho do "Retrato do Artista Quando Jovem"),
Ubaldo foi simplesmente divino. Ele dominava a língua inglesa como
falante e como escritor. Leu um trecho de "Ulysses" com dicção tão
clássica mas tão apropriada às invenções de Joyce, com voz tão grave
(fisica e emocionalmente), que tudo o mais calou-se. É incrível ver um
talento brotar e vingar nestas terras com tanta potência. Ao seu famoso
brado, a resposta do povo brasileiro é (como tantos já devem estar
dizendo ou escrevendo): Viva João Ubaldo Ribeiro."
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